sábado, 19 de dezembro de 2020

A felicidade das galinhas

O Paraíso inclui a serpente, mas hoje quase ninguém se lembra disso. De certa forma é a serpente quem autentica o Paraíso 
Acordo, e mesmo antes de me levantar ligo o iPad e leio os jornais. É como ser atacado por um bando de corvos. A imagem ocorre-me porque vi ontem um macaco sendo atacado por corvos. Acompanhei o pobre animal pulando desesperado, de quintal em quintal, com os pássaros gritando atrás dele. Nos dias que atravessamos todas as notícias me soam como ameaças, repetidas em várias línguas num feroz crocitar.

Desligo o aparelho e tento relaxar. Não consigo. Então, levanto-me e vou ao quintal ver Sanji, a minha galinha. Comprei-a há pouco mais de um mês. Não tenho intenções de a comer. Comprei-a para a ver ciscar ao sol, no quintal. No fundo, comprei-a para poder assistir ao pequeno espetáculo da felicidade dela.

Já em criança eu ia para o quintal ver as galinhas esgaravatando a terra, e isso me acalmava. Até hoje associo galinhas à felicidade. A felicidade delas vem da ignorância. São felizes porque não sabem que vão ser comidas. São felizes porque não leem jornais.

Entendam-me: não gostaria de ter a felicidade das galinhas. Não quero ser feliz por não saber. Como Neo, no filme “Matrix”, também eu escolheria a pílula vermelha. Prefiro a realidade, por mais angustiante que seja, do que viver num paraíso ilusório. A expressão “paraíso ilusório”, aliás, é um redundância — todos os paraísos são ilusórios.

Acontece estar estendido ao sol, de olhos fechados, numa das praias da Ilha de Moçambique, onde estou vivendo, e escutar os comentários deslumbrados dos turistas: “Que mar maravilhoso. Isto é um paraíso!” — insistem todos. Não lhes digo que já fotografei nestas águas, em diversas ocasiões, exemplares de peixe-dragão e de peixe-pedra, além de umas pequenas serpentes listradas. Todos esses animais são venenosos. A picada do peixe-pedra pode matar. O peixe-dragão talvez seja o mais perigoso porque é lindíssimo e não foge diante da presença de pessoas e de outros eventuais predadores. Não foge porque não precisa, é claro. Infelizmente, os banhistas incautos não sabem disso.

O Paraíso incluí a serpente, mas hoje quase ninguém se lembra disso. De certa forma é a serpente quem autentica o Paraíso.

Voltando à minha galinha: Sanji é de uma burrice maravilhosa. Tiro-lhe os ovos, todos os dias, substituindo-os por outros de madeira. Ela não se apercebe da fraude e insiste em chocá-los. Imagino um conto para crianças sobre uma galinha tão empenhada em chocar ovos de madeira que Deus, ao vê-la, se comove e faz nascer dos ovos falsos pintinhos autênticos. Eu faria, se fosse Deus.

Continuarei a ler os jornais, todas as manhãs, e a deprimir-me com o estado do mundo. Saber magoa, mas é melhor do que não saber. O exercício de ver o mundo como ele não é, através dos olhos de Sanji, talvez vos pareça uma fuga patética. Será. Contudo, apazigua. Também a alegria da minha filha pequena me alegra. A felicidade dos inocentes é que nos salva.

Assim que terminar esta coluna irei nadar. Caminharei cinco minutos até encontrar uma longa ponte-cais. Normalmente o mar está liso e transparente. Nadaria com mais tranquilidade se não soubesse da existência dos peixes-dragão. Uma vez que os conheço, porém, posso tentar evitá-los. É também para isso que servem os bons jornais.

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