terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Se viralizou, boa coisa não é

 Alceu Castilho

Cheguei a um ponto da carreira (e de um estado de desânimo em relação à humanidade) que quando um texto meu viraliza muito eu me pergunto: "Será que errei em algo?"

Digo isto em relação a uma publicação escrita na madrugada de ontem, no embalo do Fantástico, sobre o professor de Zootecnia em Minas que, segundo o Ministério do Trabalho, escravizava uma mulher chamada Madalena. E que, em uma tese de doutorado, escreveu: "Aos suínos, meu eterno respeito”.

(Não que o post original tenha viralizado tanto. Mas a publicação de um sociólogo dando crédito a um certo @castilhoalceu, meu perfil no Instagram, rede onde nunca publiquei nada, sim.)

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Eu me pergunto se errei em algo porque os fenômenos de viralização costumam estar vinculados a certo efeito de manada, acrítico. Não necessariamente, é bem verdade. Mas em muitos casos, sim. Certamente o professor Dalton terá de se ver com a Justiça, mas fico a pensar se não ajudei a sociedade a saciar sua necessidade cíclica de se proclamar civilizada. Como se, em uma sociedade especificamente sem Daltons (e seus irmãos de fé), fôssemos nos tornar melhores.

Em princípio a ideia do texto era soar humanista. Mostrar que o professor que explorava uma mulher negra não se lembrou dela em um momento-chave. Preferiu agradecer aos porcos. Teve gente que pensou no documentário "Ilha das Flores". Houve até quem invocasse George Orwell. (O máximo que fiz foi me lembrar do "Animals" do Pink Floyd.)

Mas aí li muito comentário desumanizador. Como se a reação civilizada fosse pendurar o professor em algum poste, arrancar dele  qualquer resquício de dignidade. E nessas horas eu temo, sinceramente, que uma crônica sobre as dedicatórias de um doutor escravista possa ter soado parecida com a vociferação de algum Datena qualquer, tenha dialogado excessivamente com o jornalismo cão — já que estamos no campo das metáforas bestiais.

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Claro que avaliar depois o resultado do que escrevemos pode soar injusto em relação às motivações. De qualquer forma eu me sinto não arrependido, mas cabreiro. Por que tanta coisa elaborada que a gente escreve, sem algum vilão definido no discurso, ganha repercussões pífias? Por que textos com nuances, com reflexões supostamente mais sutis (nesse caso até tive alguma pretensão nesse sentido, não sei se bem sucedida) entram em um limbo das publicações, mesmo entre pessoas acostumadas a raciocínios mais elaborados, mesmo em nosso acanhado campo da resistência?

Até porque, como escrevi no texto sobre Madalena, a família Dalton é uma família de classe média. Sim, ele é um professor universitário, o que torna a história mais macabra. Mas não é — apesar da violência explícita que protagonizou — o representante mais exato de nossas elites genocidas. E eu creio (sinceramente creio) que precisamos tomar as elites genocidas como alvos preferenciais de nossas exclamações e mobilizações e protestos.

(Espero que ninguém distorça o texto. Sou a favor de uma punição dura para esse senhor e aquelas senhoras. Mas que seja reparadora, em termos financeiros. E sou a favor de que sejam discutidas políticas públicas de prevenção. Que voltemos a discutir a miséria e a fome e a infância e a exploração do trabalho, para muito além de casos caricaturais.)

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Sei que tudo isso soa muito rabugento. "Alceu nunca está feliz". (Este texto não será viralizado e ninguém dirá que @castilhoalceu nunca está feliz.) E, bom, é isso mesmo. Nós, eremitas e leitores vorazes do "Lobo da Estepe", podemos até nos sentir injustiçados em relação a certas hostilidades e invisibilidades (tanta gente por aí sem ter o que dizer com tanto espaço) intrínsecas a esta nossa sociedade adoecida, mas ao mesmo tempo... desconfiamos.

Essencialmente desconfiamos. Não deixo de reconhecer que o mundo e este país implodido precisem de reações mais contundentes em relação à desigualdade estrutural. Que passa pelo racismo. Em algum momento, porém, desconfio que esta nossa gramática não seja exatamente o contraponto devido ao massacre — a partir do momento que seja percebida também como massacre, e não algo que contribua para algum resgate civilizatório.

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