sábado, 31 de outubro de 2020

Sem cabeça



A terra à vista


Nilson Lage

Parece estranho que maré tão assustadora de ódio, atraso e ignorância nos assalte, invocando atávicos exércitos de fantasmas, justamente quando a revolução industrial e o avanço científico urbanizaram os países, prolongaram o tempo médio de vida e permitiram à maioria dos homens sonhar com as próprias utopias.

Por que justamente agora, na etapa final da vida, assistir a tal descompasso, que revive, com mais sombras e menos esperanças, o mesmo clima do tempo em que nasci, há 84 anos?

Acho que sei a resposta, ou, pelo menos, parte dela.

É que rumamos para um porto a que os comandantes do navio não querem chegar. Todo poder deles -- os que, há pouco, trocaram a riqueza real por moeda, patentes e direitos, --depende ainda da exploração dos trabalhadores, e isso será cada vez mais difícil para além da praia a que nos atira o determinismo da História.

Eles estão com medo e, por isso, apostam no retrocesso.

Lá, no tempo previsto dos equipamentos inteligentes e das multidões avulsas, o lucro extraído do trabalho humano só será possível se o custo por trabalhador – o de sua sobrevivência – for menor do que a amortização do investimento nas máquinas, a energia que as move, a locação do espaço que ocupam, a manutenção e depreciação. Não há como extrair sobre-esforço de máquinas.

Comparem o desempenho de um motorista de caminhão, um operador de guindaste, um escrivão de cartório ou um controlador de estoques com o de dispositivos eletrônicos capazes de realizar essas mesmas operações sem paixões, emoções, cansaço e tudo mais que é humano. Parece claro que a competição desigual exigirá desses trabalhadores níveis de vida mais do que miseráveis. Como conter tal legião de escravos?

A terra à vista – na qual, possivelmente, não pisaremos – exigirá ampla racionalidade no sistema produtivo, planejamento e novas formas de ver a vida. Teremos que discernir o que essencial – a que todos têm direito – do que é eletivo, vocacionado, aberto ao desejo individual e à escolha de consumo. São coisas difíceis de conceber em uma democracia como a que imaginamos até aqui, mas não nessa república platônica em que triunfe a razão, agora sonegada.

Só a estabilidade institucional, a garantia de educação e atendimento básico de saúde poderão cria espaço para a livre iniciativa, limitada por um poder central que impeça a acumulação excessiva de poder vinculado à riqueza.

Isso nos parece claro e explica a incrível rapidez com que vem decaindo o Ocidente a partir da falência das sociedades de bem-estar social.

Não é um ideal socialista; acredito que é a única alternativa para a maioria de nós (para ser exato, de vós).

Glenn Greenwald explica sua saída do Intercept


O jornalista Glenn Greenwald, fundador do Intercept, explica por que deixou o veículo de comunicação que criou, em entrevista à TV 247, em entrevista aos jornalistas Leonardo Attuch e Tereza Cruvinel.

A Maior Democracia do Mundo


Olhem pro próprio rabo

De quatro em quatro anos, o mundo se horroriza com o sistema eleitoral dos Estados Unidos.

Nem indireta é a eleição, pois o colégio eleitoral não se compõe proporcionalmente aos votos dos cidadãos – com exceção de dois dos 50 estados. Parece jogo de pôquer: quem ganha leva tudo.

Cada estado e condado faz suas regras, com casuísmos, racismo e bandalheiras de toda ordem.  

E ainda querem ser a palmatória democrática do mundo.


Sérgio Buarque de Gusmão

Morre Sean Connery

Sir Sean Connery, lendário intérprete de James Bond, morre aos 90 anos

Fonte

O escocês Sir Sean Connery morreu aos 90 anos, disse sua família. O ator ficou mais conhecido por sua interpretação de James Bond, sendo o primeiro a levar o papel para a tela grande e aparecendo em sete dos thrillers de espionagem.

Sua carreira de ator durou décadas e seus muitos prêmios incluíram um Oscar, dois prêmios Bafta e três Globos de Ouro.

Outros filmes de Sir Sean incluem A Caçada ao Outubro Vermelho, Indiana Jones e a Última Cruzada, O Nome da Rosa e A Rocha.

Ele foi amplamente considerado como o melhor ator a interpretar 007 na longa franquia, muitas vezes sendo citado como tal nas pesquisas.

Seu Oscar veio em 1988, quando foi eleito o melhor ator coadjuvante por seu papel como policial irlandês em Os Intocáveis.

Ele foi nomeado cavaleiro pela Rainha no Palácio de Hollywood em 2000.

Em agosto, ele comemorou seu 90º aniversário.

Cinco anos de lama e impunidade


Ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama em Mariana 
Cinco anos depois do maior desastre socioambiental do Brasil —o colapso da barragem de Fundão, em Mariana (MG)—, os atingidos vivem uma tragédia judicial. Até hoje ninguém foi responsabilizado criminalmente pela hemorragia de lama e de descaso que matou 19 pessoas em 5 de novembro de 2015. Dos 22 denunciados, 15 já se livraram do processo.

Além disso, as vítimas têm que lidar com uma disparidade de forças descomunal no Judiciário para tentar obter justas reparações. É difícil entender que as duas maiores mineradoras do mundo, Vale e BHP (controladoras da Samarco, dona da barragem), não tenham sido capazes de realizar estudos sobre o impacto da lama de rejeitos de minério na saúde dos moradores da bacia do rio Doce.

Sem esses estudos, como estabelecer valores adequados para as compensações? É sobre esse pano de fundo que se desenrola a trama judicial. Um episódio recente é esclarecedor. O Ministério Público Federal entrou com mandado de segurança contra atos do juiz Mário de Paula Franco Júnior, encarregado dos processos cíveis.

Segundo o MPF, nos acordos de indenizações, homologados pelo juiz, as pessoas só recebem os pagamentos se assinarem a quitação definitiva e a desistência de qualquer ação no exterior. A cláusula chama atenção porque a Justiça britânica está para decidir se aceitará uma ação bilionária contra a BHP, que tem uma de suas sedes no Reino Unido. Um escritório de lá representa 200 mil atingidos, alegando a morosidade do Judiciário brasileiro.

As indenizações, segundo o MPF, foram fixadas em tempo recorde, sem prévia análise de danos e em valores irrisórios. O dano moral, por exemplo, foi calculado em R$ 10 mil. Os procuradores levantam suspeitas de "lide simulada" entre o escritório de advocacia que lidera os pedidos de indenização (formado em junho deste ano) e as mineradoras, que, de forma inusual, não contestaram as sentenças. O juiz Mário Franco Júnior disse que não se manifestará.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Confundindo pra melhor confundir



Agora vai!


O que está em jogo nas eleições dos Estados Unidos


Como você votará em 2020?
 Genocídio por lucro
 Genocídio por lucro 

Como os milicianos tomaram a República


Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro

Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.

O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.

O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.

Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.

O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Até então, sua incursão de mais fôlego no Rio havia sido durante a cobertura que fizera, para “O Estado de S. Paulo”, da intervenção policial no Morro do Alemão durante o governo Sérgio Cabral, em 2007. Nas pesquisas para o livro foi descobrindo um clientelismo que, ao contrário daquele que observara em São Paulo, não havia enfrentado a concorrência do sindicalismo industrial ou das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. É ao entrar em Rio das Pedras, na zona Oeste do Rio, que o autor encontra a chave para entender o fenômeno exportado para o resto do Brasil com a eleição de 2018.

Fora da caixinha dos estereótipos, encontra uma comunidade em tudo diferente da Copacabana decadente em que costumava se hospedar. Vê uma comunidade barulhenta, jovem, com letreiros chamativos a anunciar de médicos a lojas de lingerie e restaurantes de sushi. A pujança mostrava o dinheiro posto em circulação pelas milícias, que, em parceria com a polícia, se tornara donas de parte dos negócios despojando receita do poder público e das grandes empresas de gás, luz, transporte e internet sem precisar desperdiçar com armamentos como nas favelas comandadas pelo tráfico.

A comunidade é parte da jurisdição do 18º Batalhão da Polícia Militar do Rio, o mesmo em que o sargento Fabrício Queiroz e o capitão Adriano da Nóbrega se conheceram. O livro reconstitui a ficha criminal que construíram juntos sob a proteção da família Bolsonaro e do Tribunal de Justiça do Rio.

Bruno Paes Manso descreve uma Rio das Pedras marcada pelo coronelismo dos imigrantes nordestinos, apesar de o primeiro chefe local se chamar Octacílio Bianchi e o maior beneficiário político da propagação de seu modelo de empreendedorismo ser um paulista de Eldorado que levou seus modos bandeirantes para a Presidência da República.

Foi 1964 que deu às comunidades milicianas seu DNA. Com o golpe, a violência e a tortura policial se aproximaram dos porões da ditadura e, juntos, enterraram a utopia de nação que o Rio encarnava, com a sofisticação da bossa nova e a genialidade do samba de morro. O livro escolhe o capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras em 1962, como símbolo da aliança entre bicheiros e policiais endossada pelo regime.

Guimarães era protegido de oficiais envolvidos com o terrorismo de Estado que marcaria a derrocada do regime. Com o planejamento de explosões em Agulhas Negras e numa adutora da capital fluminense, o capitão Jair Bolsonaro se filiaria a esta linhagem. Com a abertura, a entrada do insubordinado capitão na política se daria pela legitimação dos crimes da polícia. “Em vez de lutar pela defesa da pátria, a polícia passou a matar além do limite em nome do ‘cidadão de bem’”, diz Bruno.

As milícias, porém, não se beneficiaram apenas da proteção e das condecorações dos Bolsonaro, mas da vista grossa que lhe fizeram todos os governantes do Rio, de Leonel Brizola a Moreira Franco, passando pelo ex-prefeito Cesar Maia, que fez de Rio das Pedras um curral de votos para a eleição do seu filho, Rodrigo, hoje presidente da Câmara dos Deputados.

Com as Unidades de Polícia Pacificadora, instaladas pelo ex-governador Sérgio Cabral, o tráfico foi expulso da zona sul, para limpar o cenário da Copa e da Olimpíada. Nesse período, também se espraiaram as associações entre traficantes e milicianos. Esta sociedade prosperou com o propósito de combater o Comando Vermelho, organização nascida no presídio de Ilha Grande do convívio entre presos comuns e políticos na década de 1970.

A explosão da violência causada por esses conflitos e a busca do governo Michel Temer por uma marca positiva levou à intervenção militar no Rio, marcada, logo no seu primeiro trimestre, pelo assassinato de Marielle Franco. Bruno Paes Manso levanta as hipóteses para o crime sem cravar em nenhuma delas - provocação aos militares para mostrar quem manda no Rio, reação às denúncias da vereadora contra a violência policial e retaliação ao então deputado estadual, hoje na Câmara dos Deputados, Marcelo Freixo. O deputado teve uma atuação desabrida na Assembleia Legislativa, da CPI das Milícias aos esquemas, comandados pelos caciques locais do MDB, de distribuição de propinas de empresários de transportes.

A única aposta do autor é no poder do jogo de dissimulações envolvidas, que passa até mesmo por telefonemas forjados entre suspeitos que se sabiam grampeados para incriminar inimigos. Foi a reação de um deles, Orlando Curicica, miliciano preso por homicídio e associação criminosa, que levou à prisão de Élcio Queiroz e Ronnie Lessa. A partir dos relatórios a que teve acesso, Bruno Paes Manso descreve as manobras contra a elucidação do crime que ruma para mil dias sem a prisão de seus mandantes.

A chegada ao Palácio da Guanabara de Wilson Witzel, outro paulista emigrado para o Rio pelo sonho de uma carreira nas Forças Armadas, reincorpora à polícia civil e militar, com status de secretarias, personagens afastados desde os governos Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão.

A queda de Witzel, que, de aliado, virara desafeto da família Bolsonaro, e a posse do vice, Claudio Castro, promove alguns desses personagens. Alan Turnowski, por exemplo, passa de braço direito a secretário de Polícia Civil, com o apoio da família do presidente da República. Em outro depoimento de Curicica ao qual o repórter Allan de Abreu, da revista “Piauí”, teve acesso, Turnowski e o atual secretário da Polícia Militar, Rogério Figueredo, são detalhadamente acusados de ligação com as tiranias paramilitares que ocupam a cidade. Ambos negaram as imputações à revista.

O pacote de rearranjos acordados entre o novo governador do Rio e os Bolsonaro ainda passa pela substituição do procurador-geral do Ministério Público do Rio, José Eduardo Gussem, cujo mandato acaba em dezembro. É Gussem quem tem, em grande parte, garantido a autonomia da investigação do esquema de rachadinhas no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio. A negociação que está em jogo na substituição de Gussem por um nome de interesse da família presidencial passa pelo atendimento das demandas do governador em relação à Superintendência da Receita Federal e à Polícia Federal.

A presença de Castro no governo do Estado é a blindagem com a qual a família Bolsonaro conta como anteparo à ascensão do ex-prefeito Eduardo Paes (Democratas) ou da delegada Marta Rocha (PDT), que substituiu Turnowski na chefia da Polícia Civil, em 2011. Paes e Marta aparecem nas pesquisas como os mais cotados para o lugar do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente. É cedo para dizer se a ascensão de um ou outro à Prefeitura levará o DEM ou o PDT, dois anos depois, ao Palácio da Guanabara. Os grupos políticos de ambos pagaram pedágio às milícias quando estiveram no poder, mas não exerceram o poder em nome delas.

Como mostrou o Mapa dos Grupos Armados do Rio, 57% da área da cidade está hoje sob domínio das milícias. Esse avanço se deu ao longo de um governo federal que flexibilizou o porte e afrouxou o controle de comercialização e sob administrações locais que lhes franquearam espaços.

A República das Milícias, retratada por Bruno Paes Manso, chegou ao poder com Bolsonaro, mas o extrapola. Está entranhada no dia a dia das comunidades, dos serviços de transporte público às licenças de construção, cujos despachantes, nas Câmaras de Vereadores e nas prefeituras, serão definidos pelas urnas em 15 de novembro. Depois de ler o livro, fica difícil acreditar que seja possível mudar o país em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político.

O grande escândalo que Greenwald denuncia


João Ximenes Braga

Eu não tenho roupa pra entrar nessa polêmica do Greenwald Gate, mas, depois de ler o texto dele e a repercussão no Twitter, alguns pitacos:

1. Comecei achando que era tudo da mesma linha Lulinha Gamecorp, vago, impreciso e sem crime detectável, até chegar à informação de que Biden, ainda enquanto vice de Obama, teria interferido na escolha do procurador geral da Ucrânia. É grave. Grave o suficiente para fazer o eleitor de Biden mudar pra Trump? Claro! O eleitor americano está sempre muito preocupado com que seus líderes não saiam por aí dando golpes em outros países.

2. Não vou me apressar em escolher minha teoria conspiratória nesse momento. Acabo de ler que Gloria Steinheim era agente da CIA e Naomi Klein é sua sucessora. Não tenho roupa pra isso, não mesmo (pensando de forma mais literal, depois de sete meses em casa, não tenho roupa nem pra reunião no Zoom). Descobriram um artigo de 2005 do Glenn criticando as esquerdas latino-americanas de forma tão idiotizada e infantilizada que, se confirmado que é dele, não prova que ele é de direita, só meio tosco, ou pelo menos era na época. Em outras palavras, não vou me meter a tirar conclusões sobre intenções (aquilo que os anglicistas de hoje chamam de "agenda"), seja do Greenwald ou da Klein, simplesmente porque não há como fazê-lo sem partir de ilações. Isto dito, a história de como esses emails vieram a público parece coisa de um John Le Carré emaconhado. Um laptop molhado esquecido casualmente com um técnico de computador apoiador de Trump em Delaware. Vale lembrar que um repórter ético, honesto e bem intencionado também corre risco de ser manipulado por sua fonte. Uma palavra pra vocês pensarem a respeito: Pasadena.

3. O grande escândalo que Greenwald denuncia, a censura, o conluio da grande imprensa americana para proteger o candidato democrata contra o republicano, soa um tanto quanto banal para quem vive no país da mais tosca farsa jornalística da História, o triplex do Guarujá, e parte de uma visão purista e vestal do que seria a ética jornalística, que é bem parente da suposta ética que se vê por aqui de chamar negacionistas, terraplanistas e fascistas para dar "o outro lado". A falsa equivalência, a falsa simetria que se estabeleceu no Brasil entre política e fascismo é o que está nos destruindo. E até agora o que Glenn parece estar cobrando da imprensa americana é que faça o mesmo. Ah, e o eleitor americano está muito preocupado que a imprensa tenha um candidato de preferência...

4. Não existe Esquerda e Direita nos EUA. Existem os confederados escravagistas e os estados do Norte, e, mais que nunca, isso está claro nestas eleições. Assim como aqui o que existe é Tiradentes e Joaquim Silvério. E isso, mais que nunca, ficou claro desde Temer, o maior Joaquim Silvério do século XXI. Seja por má fé ou por realmente acreditar nessa "ética" da imparcialidade que promove a falsa equivalência, falta à crítica de Greenwald à imprensa americana análise política e perspectiva histórica.

5. E a Vaza-Jato nisso tudo? Bem, já tem um monte de teoria conspiratória sobre isso, escolha a sua e se lambuze. Até agora, não vejo qualquer indicação concreta de que uma coisa comprometa a outra.

Liberalismo é a ditadura da burguesia


Jones Manoel

Uma questão rápida.

Hoje, na abertura de um programa liberal que assisto, o apresentador falou que o caso do Glenn não tinha como ser censura porque o The Intercept é uma empresa e quem aplica censura é o Estado.

É pura ideologia liberal e cínica a ideia de ver o Estado como o reino potencial ou real de toda negação da liberdade e o mercado, ou a "sociedade civil", como portador de toda virtude, e por essência, impossível de negar a liberdade, dado que as relações são contratuais, "consensuais". 

Essa visão, além de filosoficamente tosca, é uma brutal fuga ou negação da história. Nesse tipo de visão, a censura objetiva que os monopólios de mídia privados - não tem uma TV que defenda reforma agrária, por exemplo - é legitimada, naturalizada e apoiada. 

Aliado a isso, fica difícil explicar como os principais grupos de comunicação da América Latina apoiaram os golpes e as ditaduras militares ou então como legitimam o extermínio e o genocídio cotidiano do povo negro. Na prática, como todo liberal, o que ele chama de liberdade  é o direito do capital fazer o que quiser, como quiser e quando quiser. Ou seja, transformam o interesse particular da burguesia de dizer o que quiser numa personificação do interesse universal da liberdade de expressão.

Pura ideologia, safadeza, burrice e canalhice. 

E ainda chamam de autoritário o governo ou projeto político que busca democratizar a comunicação e acabar com a censura objetiva realizada pela burguesia, como o Governo de Hugo Chávez.

E ainda tem gente que se considera de esquerda que cai nesse papo de otário.  

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Glenn Greenwald acusa Intercept de censura e anuncia saída do site

Folha de S. Paulo 

O jornalista americano Glenn Greenwald anunciou que pediu demissão do Intercept, site de notícias que ajudou a fundar em 2013.

Em um longo texto publicado na internet nesta quinta-feira (29), Greenwald afirmou que o motivo de sua saída é a censura imposta pelos editores do portal a um texto que, segundo ele, traria críticas ao candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden.

O Intercept foi procurado, mas não respondeu até a conclusão deste texto.

O jornalista disse que seu direito contratual de liberdade editorial foi quebrado. Ainda de acordo com ele, a condição para que o texto fosse publicado era que as críticas fossem removidas.

Ele afirmou que o artigo discorda da conduta de Biden em relação à Ucrânia e à China, levantadas com base em emails revelados recentemente e depoimentos de testemunhas.

Greenwald escreveu que Biden é "veementemente apoiado por todos os editores" da sede do Intercept, em Nova York, e que também foi solicitado a ele que não publicasse o texto em nenhuma outra publicação.

Disse, ainda, que não se opunha à discordância dos editores com suas opiniões e que sugeriu a eles que escrevessem seus próprios artigos expondo seus pontos de vista, deixando que os leitores decidam quem está certo.

No artigo que alega ter sido censurado, Greenwald critica a forma como a mídia americana tratou o caso revelado pelo tabloide americano New York Post contra Joe Biden, com supostos detalhes de negociações entre o filho do democrata, Hunter, e uma empresa de energia ucraniana. O jornal afirma ter tido acesso a um email que indica que Hunter apresentou o pai, à época vice-presidente dos EUA, a um empresário ucraniano.

Segundo o jornalista, as revelações nunca foram contestadas por Hunter nem pela campanha de Biden, mas a imprensa americana estaria tratando o caso com desprezo e como "desinformação russa". Ainda segundo Greenwald, a mídia americana tem uma ânsia "quase explícita" pela vitória de Biden.

"Um fator importante é a verdade inegável de que jornalistas com veículos nacionais baseados em Nova York, Washington e cidades da costa oeste não apenas favorecem Joe Biden, mas estão desesperados para ver Donald Trump derrotado", afirmou.

O final




O delírio contra a "vacina chinesa"

Sergio Fausto

Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós

O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.

Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.

Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.

A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.

Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.

Basta observar a queda na cobertura vacinal da população brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal.

Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização” do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?

A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle sobre a mudança climática.

Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará importante mudança política naquele país.

Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19. Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos cooperaram em questões vitais.

Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua destruição nuclear entre as duas grandes potências.

Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2 milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com outras tantas e com a logística de distribuição.

Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe esclarecer: isso é uma ironia.

Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP

Linguiça

Luis Fernando Verissimo 

Para o Brasil ser um circo, só faltam os palhaços. Somos nós 

Minha avó Ema usava uma expressão que nunca chegamos a decifrar exatamente, embora seu sentido fosse claro: “Pendura na linguiça”. Uma notícia sem importância, uma informação absolutamente inútil, uma fofoca irredimível? Pendura na linguiça. De onde a vó Ema tirara a linguiça, de que lembrança de um remoto passado rural ela trouxera a frase pronta, ninguém sabia — acho que nem ela. Mas a frase foi adotada pela família. O destino do que era falso ou irrelevante era ser pendurado numa linguiça, na companhia presumível de tudo o que tradicionalmente enche as linguiças.

Grande parte do discurso público ouvido no Brasil não merece outra coisa além de ser pendurado na linguiça. Não se trata de fake news fabricada especificamente para confundir, ou da retórica vazia do discurso político, facilmente caricaturável, nem do folclore instantâneo do mal explicado dinheiro entre as nádegas. Trata-se do discurso oficial, ou pseudo-oficial, do governo, da língua com a qual o poder se comunica e se desnuda, e expõe sua mediocridade. A língua de um governo de generais de fatiota, comandados por um capitão e seus filhos, e dividido em facções que não se entendem só pode ser a língua do caos disfarçado. Pior do que isso é quando o próprio capitão parece ter um gosto pelo caos.

Para um dos seus musicais de sucesso na Broadway, o compositor americano Stephen Sondheim escreveu uma canção em que uma veterana atriz lamenta que sua vida acabou como um circo vazio, sem público, sem brilho, sem amor, sem nada. E ela canta “Que entrem os palhaços”, pois só faltam palhaços para que o cenário da sua tristeza volte a ser um circo. O mesmo melancólico fim nos espera num Brasil que cada vez mais se parece com um circo falido. Para ser um circo, só faltam os palhaços. Onde estão os palhaços? Não é preciso procurá-los. Os palhaços somos nós.

Engatar a segunda pelo clima

José Eli da Veiga

Transição para a descarbonização parece sair da primeira marcha graças a súbito despertar dos grandes negócios

A substituição das energias fósseis por renováveis na matriz energética global foi vagarosa demais, durante mais de um quarto de século. Enormes subsídios às primeiras e parcos incentivos às menos nocivas mantiveram o comboio em marcha lenta. Para piorar, a estrutura regulatória montada pela Convenção do Clima, de 1992, favoreceu a tergiversação institucional ao longo de 25 conferências das partes (CoP).

Ultimamente, contudo, a transição descarbonizadora parece querer sair da primeira marcha, especialmente graças a um súbito despertar dos grandes negócios. Mas, também, à recentíssima inflexão política da ditadura chinesa, a ser turbinada por provável virada democrata nos EUA. Se estas três mudanças se confirmarem, poderá deixar de ser ilusória a previsão para este século da chamada “neutralidade carbono”. Mesmo não sendo o fim do problema, tal conquista poderá reduzir as incertezas sobre as chances de possível solução.

Do lado dos negócios, o ponto de mutação parece ter ocorrido em dezembro de 2017, exatos dois anos depois do tão festejado Acordo de Paris, no âmbito do “One Planet Summit”, realizado em repúdio ao negacionismo de Donald Trump. Ali, começou a brotar a “Climate Action 100+”, principal iniciativa pró-clima do setor privado. Seus atuais 518 membros têm ativos estimados em US$ 47 trilhões, segundo o Financial Times.

No mês passado, a “CA100+” anunciou um esquema de vigilância do comportamento das 161 maiores empresas do mundo, com o propósito de avaliar o quanto continuam distantes da neutralidade carbono. Qualquer destas empresas precisará se preocupar com sua reputação, mesmo se cética sobre os riscos reais impostos pelo clima. Este tipo de pressão esteve bem longe de existir nos quase três decênios de marcha lenta.

Do lado político, somente há quarenta dias surgiu algo comparativamente tão promissor. Na sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o ditador Xi Jinping anunciou o compromisso unilateral de a China atingir a neutralidade carbono antes de 2060. Isto exigiria US$ 15 trilhões nas próximas três décadas, segundo estimativa do Boston Consulting Group. Uma reviravolta, se a referência for a atitude do país, cinco anos antes, nas negociações do Acordo de Paris.

É pequena a probabilidade de ter sido mera astúcia diplomática, ou operação propagandístico-demagógica. A questão climática parece mesmo estar entrando no radar da elite dirigente, como séria ameaça à estabilidade interna, fator de fraqueza em disputas com rivais sistêmicos. O futuro do regime seria muito mais incerto em mundo sem freios ao aquecimento global. Mais importante, então, é saber quais podem ser as principais mudanças, caso o compromisso seja mesmo para valer.

Como a China - sozinha - tem emissões superiores às da dupla EUA-Europa, é fácil perceber o impacto de seu possível esforço descarbonizador. Cabe às três potências a responsabilidade por pouco mais da metade da encrenca. Porém, é fora desse trio que as emissões mais tenderão a aumentar. Qualquer perspectiva de estabilização capaz de levar à neutralidade carbono global em meados do século dependeria, cada vez mais, do comportamento de emergentes (como Índia, Brasil e Indonésia), de gigantes populacionais (como Paquistão, Bangladesh e Nigéria), e de grandes produtores de energias fósseis (como os países do Golfo, Rússia, Canadá e Austrália).

A principal dúvida, portanto, é se haverá chance de o compromisso de neutralidade carbono antes de 2060 chegar à política externa chinesa. Se houver, seu principal vetor será o programa “Nova Rota da Seda”. Os 126 países nele envolvidos somam dois terços da população mundial, 23% do PIB global e uns 28% das emissões. Tão ou mais importante, abrigam 75% das reservas de energias fósseis.

Se os 126 continuarem sem compromissos descarbonizadores, em 2050 poderão vir a ser responsáveis por 66% das emissões. O suficiente para a inevitabilidade do desastroso cenário de 3 graus centígrados de aquecimento global. Ao contrário, para uma adesão dos 126 países da Nova Rota da Seda a um cenário de 2 graus, o Banco de Desenvolvimento da China precisaria investir, até 2030, cerca de US$ 785 bilhões ao ano, segundo ótimo relatório elaborado pela Tsinghua University.

A comprovação do engate de segunda marcha pelo clima será a China vir a ser pressionada nessa direção por aliança da União Europeia com os Estados Unidos, em caso de vitória de Joe Biden. Para tanto, o melhor arranjo institucional será o G-20, mesmo sem participação direta de países como Bangladesh, Egito, Etiópia, Irã, Nigéria ou Paquistão. Um pacto descarbonizador no G-20 seria a chave-mestra para o sucesso das negociações diplomáticas no âmbito da Convenção do Clima.

Seria um grande trunfo para o mundo poder ir bem adiante do tímido Acordo de Paris. Negar esta saída é o pior defeito do excelente artigo do professor Adam Tooze, da Columbia University, publicado pela revista Foreign Affairs do último dia 17.

José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP

Confie no mito e aguarde

Segunda onda na Europa é um alerta para a epidemia e economia do Brasil


Números gerais não permitem descartar um recrudescimento da epidemia por aqui

Vinicius Torres Freire

A segunda onda da epidemia nos grandes países da Europa ficou evidente na mesma data: começo de setembro. É quando acabam as férias de verão. Foi então que o número de mortes começou a aumentar de modo inegável. Em meados de outubro houve a disparada. Em países como Alemanha, Espanha, França, Itália e Reino Unido, as taxas mínimas de morte haviam ocorrido em julho, mais ou menos.

O número diário de novas mortes por milhão anda entre 2,5 e 3,5 nesses países, com exceção da Alemanha, onde está por volta de 0,5 por milhão (média móvel de sete dias). No Brasil, o morticínio agora está perto de pouco mais 2 novas mortes por milhão, em queda lenta, faz algum tempo. No pico da mortandade nesses países europeus, a taxa diária de mortes por milhão ficou em torno de 15 (com exceção, outra vez, da Alemanha (que chegou perto de 3).

É um alerta para o Brasil? Sempre é. Aprendeu-se que a epidemia é, até certo ponto e tempo, regional, o que é um aspecto muito significativo em um país do tamanho e população como o nosso. Ainda assim, convém dar uma olhada em estatísticas mais gerais, ao menos para dar a escola de grandeza do problema.

O número de mortes pode ser um indicador aproximado do tamanho da epidemia, do número total de infectados. Sim, existe grande controvérsia sobre a letalidade da doença. Isto é, quantas pessoas morrem entre aquelas que foram infectadas. Como se tornou evidente, as pesquisas na população têm dificuldade de estimar o número total de infectados. Logo, a taxa de letalidade da doença é motivo de polêmica.

Suponha-se que ela seja aproximadamente igual e que se leve em conta as diferenças demográficas (a Covid mata mais os idosos. Tudo mais constante, países com mais idosos terão mais mortes). A taxa de mortes por milhão no Brasil é maior do que a da Espanha, o país grande da Europa mais afetado. A do estado de São Paulo é ainda maior. Levando em conta a idade da população, a diferença aumenta.

A taxa de mortes do estado de São Paulo, sem qualquer ajuste, é de 866 por milhão. A da Espanha, 755. A julgar apenas pelo número de mortes e pela hipótese de que certo número de mortes esteja associado a uma taxa de infecção, seria possível especular que um recrudescimento da epidemia não pode ser descartado por aqui. O estado de São Paulo ainda conta 2 mortes diárias por milhão. A Espanha da segunda onda conta 3,3.

Nem de longe, claro, é prognóstico. Em meses de conversas com excelentes epidemiologistas do Brasil, muito cientista dedicado observou que levou dribles e outros bailes da epidemia. O que todos dizem é que não dá para relaxar, que cada medida de alívio das restrições tem de ser muito bem fundamentada, que aglomerações são insanidades, que se deve usar máscara, que é preciso fazer mais testes e tentar encurralar a doença.

A nova onda europeia ainda está longe de ser tão mortífera quanto em abril. Mas a mortandade afeta o mundo inteiro pela economia, é preciso e horroroso dizer. A percepção de riscos aumentados e a incerteza vão ecoar pelo mundo, como se viu nos mercados financeiros desta quarta-feira, e a segunda onda vai atingir a atividade econômica em alguma medida. Alemanha e França vão ter isolamentos duros durante novembro inteiro.

Os alertas estão aí. O controle da epidemia no Brasil foi vergonhoso; o governo federal não se ocupa nem ao menos do manual básico da economia. Estamos sem imunidade na política sanitária e na econômica.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

SUS



Apenas mais um cofre pra arrombar...


Dólar turismo chega a R$ 6,35 em SP; euro vai a R$ 7,47, e libra, a R$ 8,52

Do UOL, em São Paulo 

O dólar comercial chegou a subir quase 2% hoje, encostando em R$ 5,79. O Banco Central interveio para tentar conter a alta e, por volta das 15h25, a moeda norte-americana subia 0,83%, negociada a R$ 5,729 na venda. Para quem vai viajar, o preço do dólar turismo é ainda mais alto.

Em casas de câmbio de São Paulo, por exemplo, o dólar em dinheiro vivo chegava a custar R$ 6,08 hoje, já considerado o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras). Para quem compra no cartão pré-pago, o valor é ainda maior: até R$ 6,35.

No caso de quem vai comprar euro, os preços chegavam a R$ 7,06, no dinheiro, e a R$ 7,47, no cartão pré-pago. Para comprar libra esterlina, o preço atingia R$ 7,97, no dinheiro, e R$ 8,52, no cartão pré-pago.

Os valores foram consultados pela reportagem no site MelhorCâmbio.com por volta das 15h30 desta quarta (28).

Veja abaixo as cotações encontradas pelo UOL, já incluído o IOF de 1,1% para dinheiro vivo e de 6,38% para cartão (os valores variam durante o dia). Os valores estão sujeitos a alterações.

Dólar:

GetMoney: R$ 5,98 (dinheiro) e R$ 6,34 (cartão pré-pago)

Ourominas: R$ 5,98 (dinheiro) e R$ 6,35 (cartão pré-pago)

Faster Câmbio: R$ 5,99 (dinheiro)

Maxi Câmbio: R$ 6,08 (dinheiro)

Forex Câmbio: R$ 6,35 (cartão pré-pago)

Euro:

GetMoney: R$ 7,03 (dinheiro) e R$ 7,45 (cartão pré-pago)

Ourominas: R$ 7,04 (dinheiro)

Safemoney Exchange: R$ 7,07 (dinheiro)

Sagitur Câmbio: R$ 7,06 (dinheiro)

XTrade Câmbio: R$ 7,47 (cartão pré-pago)

Libra

GetMoney: R$ 7,96 (dinheiro) e R$ 8,48 (cartão)

Vision Câmbio: R$ 7,97 (dinheiro) e R$ 8,51 (cartão pré-pago)

Patacão DTVM: R$ 7,97 (dinheiro)

Forex Câmbio: R$ 8,51 (cartão pré-pago)

Ideal Seven Câmbio: R$ 7,97 (dinheiro) e R$ 8,52 (cartão pré-pago)

Por que os valores são mais altos?

O valor sempre é maior para turistas do que o divulgado no câmbio comercial. O valor do dólar divulgado diariamente pela imprensa, inclusive o UOL, refere-se ao dólar comercial, que tem cotação menor que o dólar das casas de câmbio. O mesmo vale para o euro.

O dólar comercial é utilizado para movimentações financeiras do governo no exterior e empréstimos de brasileiros residentes fora do país, além de ser usado por grandes empresas para a realização de importação e exportação de mercadorias.

Nas casas de câmbio, onde as pessoas comuns compram a moeda, o valor é maior. Ela é vendida para os pequenos compradores, que utilizam o dólar para viajar. O dólar turismo também é usado na conversão dos débitos realizados em moeda estrangeira no cartão de crédito, por exemplo.


A cigana te enganou?

Cristofobia




O Brasil não é o Chile

Sem organização e mobilização popular, nada vai mudar

Luis Felipe Miguel

Tenho visto várias análises sobre o porquê do Brasil parecer incapaz de copiar o Chile. Várias apontam - corretamente, a meu ver - o eleitoralismo da nossa esquerda como um dos problemas.

Eleitoralismo é subordinar toda a estratégia política à disputa eleitoral. É colocar a relação com os movimentos populares a serviço desse objetivo. É reduzir os partidos a máquinas de apresentação de candidaturas. É estar pronto a pagar qualquer preço para obter uma vitória nas eleições, mesmo que isso implique mutilar o projeto político.

A luta política fica restrita à sua dimensão institucional. Isso sempre vale só para a esquerda, é claro: a burguesia nunca se eximiu de usar as armas à sua disposição, da ameaça de desinvestimento e da corrupção aos generais e aos marines, para garantir que seus interesses seriam preservados.

A democracia eleitoral funciona como o canto de sereia, atraindo todas as forças políticas para esse caminho. A igualdade formal do voto tende a deslegitimar simbolicamente outras formas de manifestação política: a eleição é o momento "certo" para a expressão da vontade popular. As vantagens obtidas com uma vitória eleitoral são suficientemente robustas para justificar concessões pontuais e rechaçar qualquer purismo. Quanto mais alto o prêmio, isto é, mais importante o cargo a ser conquistado, maiores as concessões que se justificam.

Foi assim que o sistema político brasileiro domesticou o PT, que nasceu com uma perspectiva diversa. Tenho para mim que o grande ponto de inflexão foi a disputa presidencial de 1989, quando Lula quase chegou lá. Parecia claro que o jeito de chegar ao poder era obter alguns votos a mais, bem mais fácil do que o trabalho de mobilização de base em que o partido apostava antes.

E chegou mesmo, se não ao poder, pelo menos ao governo, onde implementou políticas que beneficiaram os mais pobres. O preço que pagou, porém, foi o abandono de um horizonte de transformação social radical, as alianças com a elite política tradicional, o mergulho na promiscuidade com os donos do dinheiro. E a desmobilização total de sua base, a tal ponto que, quando seus novos aliados decidiram descartá-lo por meio de um golpe, não teve força para resistir.

Temos, aqui, que reconhecer o mérito dos golpistas de 1964. Ao contrário do que ocorreu no restante do Cone Sul, eles mantiveram a competição partidária, as eleições, o Congresso aberto. Tudo como simulacro, mas ainda assim oferecendo recompensas para os vitoriosos. Fomos ensinados não só a canalizar nossos esforços para a disputa eleitoral como também a aceitar que essa disputa fosse ostensivamente tutelada. Esse treinamento continua ecoando na nossa classe política, mesmo em seu setor democrata.

Os chilenos têm muitos desafios pela frente, começando por fazer com que a constituinte que eles aprovaram por vasta maioria seja uma constituinte de verdade, não a engambelação que Piñera quer impor.

O desafio que nós, brasileiros, enfrentamos é mais básico - e ainda mais difícil. É fazer com que nossas lideranças virem a chave e percebam que sem organização e mobilização popular, nada vai mudar.

Morto aos 92, o ilusionista James Randi se dedicou a combater charlatães

Marcelo Coelho  

Mágico que foi além da sua profissão, ele publicou 'Faith Healers' (curandeiros seria uma boa tradução) com Carl Sagan  

Se me perguntarem qual é a profissão mais ética que existe, acho que meu voto iria para a de mágico.

Um especialista em truques de cartas poderia arrancar fortunas dos otários numa mesa de jogo. É ainda mais fácil iludir uma viúva rica com supostas aparições sobrenaturais.

Um bom mágico faz prodígios, entretanto, sem se passar por médium ou gênio no pôquer —e recebe pouco dinheiro em troca de seus talentos.

Claro, um mágico pode roubar os segredos de outro, ou revelá-los ao público. Atitudes condenáveis, por certo. Do meu ponto de vista, aliás, não faz mal que digam como funciona o truque. Continuo gostando do mesmo jeito.

O fato é que o mágico põe a arte acima do seu interesse material. Afirma honestamente que todos seus prestígios são pura psicologia, habilidade manual e uso de dispositivos engenhosos. Engana a gente, sem enganar ninguém.

Morreu há poucos dias, aos 92 anos, um mágico que foi além da sua nobre profissão. Nascido no Canadá, James Randi ("The Amazing Randi") dedicou-se por décadas a desbancar todo tipo de fraude parapsicológica, medicinal e religiosa, associando-se ao divulgador científico Carl Sagan (1934-1996), com quem publicou "Faith Healers" (curandeiros seria uma boa tradução).

Ele é bem menos conhecido, acho, do que Uri Geller —o "prodígio" israelense que, na década de 1970, entortava colheres na TV. Randi não só demonstrou como se faz o truque, como também aprontou uma armadilha para Uri Geller.

O famoso entortador ia aparecer num talk show americano, e Randi combinou com o entrevistador de trocar as colheres que Geller iria usar na proeza. Os poderes de Geller abandonaram-no, curiosamente, naquele momento. Veja no YouTube, procurando por "Johnny Carson - Uri Geller".

Claro, uma coisa que não acontece é muito menos interessante do que uma coisa que "acontece". O programa de Johnny Carson ficou chato de assistir, enquanto as inúmeras exibições de colheres entortadas ainda impressionam os espectadores por aí.

Lembro-me de ter visto, num show de mágica, alguém escrever o próprio nome numa carta de baralho, guardá-la direitinho no bolso, até que, depois de um longo tempo, o mágico tira a carta marcada de dentro de uma laranja.

Um suposto vidente, conta Randi numa palestra publicada na revista online Skeptic.com, deixou num cofre fechado a previsão de algo que iria acontecer em poucos dias. Passado o prazo, abriram o cofre. E encontraram um papel registrando a ocorrência de um acidente aéreo nas ilhas Canárias --que de fato tinha acabado de acontecer!

Não é difícil perceber que o mecanismo da carta de baralho na laranja foi utilizado.

Só que todo mundo acreditou no ato de vidência. Foi noticiado pelo New York Daily News; todos certos de que algo paranormal tinha acontecido. Por sorte, o tal vidente apareceu para uma entrevista. E contou que todo o fenômeno era apenas publicidade para o show de mágica dele em Nova York naquela semana.

James Randi organizou uma fundação, com site, que entre outras coisas tem palestras criticando as diversas formas de medicina alternativa.

Assisti a um vídeo sobre acupuntura. A palestrante, uma médica, é terrivelmente sem graça, e suas considerações são fortemente adjetivadas e insistentes: "isso não existe, isso não foi verificado, isso não tem prova".

Seria necessário algo mais espetacular para desanimar os crentes. Uma coisa engraçada, entretanto, aparece no vídeo sobre acupuntura. Especialistas nessa arte aplicam-na à veterinária e indicam como espetar os pontos que ativam a vesícula biliar de um cavalo.

Detalhe: cavalos não têm vesícula biliar. Esse órgão não existe no inocente equino.

O problema é que o crente pode responder: existe, mas é invisível. Existe, mas num plano cármico. A crença continua, naturalmente, blindada. Mil farsantes são desmascarados, mas o 1.001º, ah, esse tem poderes reais.

Mágicos como James Randi ajudaram muito numa área em que cientistas, por vezes, caem na esparrela. Mas a luta é árdua. Talvez comediantes pudessem ajudar. O ridículo é uma arma, quando o bom senso peca pela sem-gracice.

O "inexplicável" tende a ser mais fascinante, e menos chato, do que a explicação. O ato de acreditar gasta menos neurônios do que o de entender.

"Ah, pode ser que seja mentira, mas vai saber. Eu acredito." A teimosia de um burro pode parecer sinal de força, mas ele empaca por preguiça.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Devo, não nego, julgo quando quiser

Conrado Hübner Mendes

STF trata sua pauta como rascunho, não como roteiro das urgências constitucionais do país

Hoje poderia ser dia de celebração de direitos indígenas no STF. O tribunal teria a chance de se corrigir e dizer que o direito indígena à terra não supõe presença física, nas respectivas áreas, em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição. A tese do “marco temporal” foi inventada pelo STF anos atrás e passou a integrar a jurisprudência constitucional da vergonha alheia.

A decisão infame inspirou parecer da AGU, que generalizou o critério do marco temporal para demarcação de terras. A partir daí, a omissão do Executivo, somada a decisões judiciais desencontradas, produziu notável prejuízo ao projeto constitucional. Recentes decisões monocráticas do STF já interromperam demarcações que tramitavam há mais de três décadas.

Luiz Fux, porém, resolveu tirar o caso da agenda e deixá-lo para outra hora, para a hora que lhe der na telha. Numa frívola canetada, dias antes da sessão de julgamento, e sem qualquer explicação, limitou-se a registro burocrático: “excluído da sessão de 28/10”. A vida institucional segue como se nada de extraordinariamente errado tivesse passado.

A falta de decisão do STF, enquanto isso, só faz acirrar conflitos fundiários e violência.

Foi um gesto rotineiro de descaso, deslealdade e desrespeito a todos que levam o tribunal a sério e se mobilizam, na data marcada, para cada julgamento. Incorrem em custos para ir até Brasília, publicam artigos, reaquecem argumentos, promovem reuniões e debates. Os juristas Oscar Vilhena Vieira e Fábio Comparato, por exemplo, aproveitaram a ocasião para publicar neste jornal textos sobre o tema. Foram deixados no vácuo, como tantos outros.

Presidentes do STF tratam pauta do tribunal como rascunho de seus caprichos, não como roteiro dramático das urgências constitucionais do país. Mais do que agredir a democracia e a esfera pública, viola regra constitucional que obriga motivação de atos judiciais, tanto processuais quanto administrativos (art. 93, inciso X, da Constituição). Não há poder de decidir sem fundamentar. Essa vacina contra o autoritarismo vale até para presidente do STF.

A maior semelhança entre o STF e o Congresso Nacional não é o hábito de o STF “legislar”. O exercício da interpretação constitucional, ao contrário do que se pensa, supõe o poder de colegislar. O STF não usurpa função de ninguém quando o faz. É da sua própria natureza. Pode cometer erros grotescos, claro, mas não porque “legislou”, foi “ativista” ou “usurpador”.

Se quiser traçar a linha entre “aplicar” a Constituição e “legislar”, e daí definir se o STF é ativista, boa sorte, o caminho não tem volta. Quem imagina uma fronteira fixa reservada à função judicial na separação de Poderes está mal informado na teoria, na prática e na história.

Mais produtivo perguntar como, quando, quanto e por que um tribunal constitucional pode colegislar. A análise fica mais afiada, ganha contexto, presta atenção no procedimento e na qualidade dos argumentos. Escapa, enfim, do slogan impressionista, preguiçoso e sumário.

Mas o STF perigosamente se assemelha, sim, ao Congresso Nacional quando rompe com a obrigação de decidir, premissa exclusiva da função judicial. O STF não tem poder de não decidir ou de manipular sua própria pauta com o objetivo de evitar casos incômodos. Não tem o poder de escolher, entre os milhares de casos em suas gavetas, quais levar adiante e quais deixar apodrecer. Luiz Fux não é Rodrigo Maia no contrato constitucional.

O poder de julgar o que quiser, quando quiser, foi construído pelo STF à margem da Constituição e da lei. E assim nos obrigou a conviver com uma incerteza jurídica de segunda ordem: em cada caso, não perguntamos apenas “qual” será a decisão do STF (se vai respeitar precedente, se vai inovar etc.), mas “se” haverá decisão.

A próxima vez que vir um ministro do STF se reunir com executivos para uma palestra fechada sobre segurança jurídica, saiba do que estão falando. Tanto a “palestra” quanto a ideia de “segurança jurídica” são eufemismos para outra coisa.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

O quadrado do Supremo

Brasil não precisa que o STF entre numa guerra da vacina

Elio Gaspari

Com quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em 1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que na saúde pública.

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha: “Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.

O capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para isso.

Pode-se discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.

O quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid. Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?

A criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional. Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra. Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.

Tudo indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição. Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.

Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.



terça-feira, 27 de outubro de 2020

Haja mamadeira de piroca


Leandro Fortes

PASTOS

O termo “gado bolsonarista” traz uma contradição em si, pois se se deriva da analogia com a resignação bovina diante dos fatos, destoa da reação pacífica que se espera das boiadas. No pasto bolsonarista, as reses ruminam rações diárias de ódio a elas dadas, nas redes sociais, na crença de que, integradas à manada, não serão abatidas pela ideologia destrutiva que emana – desde sempre – da Casa Grande.

Trata-se, portanto, de um gado violento, posto que a serviço de um projeto de degradação ostensiva da institucionalidade, firmado nas bases mais dogmáticas do fascismo político: o anti-intelectualismo, anticientificismo e o antiacademicismo, uma espécie de tripé contra civilizatório vendido antes como uma revanche dos medíocres do que como uma solução social, esta, obviamente, inviabilizada, a priori.

Essa hostilidade ao pensamento crítico e filosófico, característica clássica do nazifascismo, está, contudo, na base do debate sobre o uso e a obrigatoriedade de vacinas, e não apenas as que se projetam contra a Covid-19. Isso porque o efeito hiperimbecilizante do fluxo de informações das redes sociais sobre um enorme contingente de analfabetos políticos, sobretudo as mensagens disseminadas em grupos de WhatsApp, impôs sobre a lógica científica um sistema de crenças pessoais e coletivas onde os processos de relativização se tornaram, ora anárquicos, ora ininteligíveis.

O resultado dessa jornada semicognitiva foi o surgimento de um estrato social numericamente relevante e extremamente orgulhoso da própria ignorância, a qual defende diuturna e irascivelmente com base em argumentos enviesados quase sempre recolhidos junto ordenadores de notícias falsas. Estes que atuam alegremente nesse campo fértil de demência coletiva que se convencionou chamar de “bolsonarismo”.

Assim, pessoas que nunca tiveram o hábito da leitura e passaram a vida anestesiadas por telenovelas, jogos de futebol e apavoramentos circunstanciais provocados pelo Jornal Nacional, estão, agora, no centro das discussões sobre o uso de vacinas contra a mais grave pandemia da história da humanidade.

Haja mamadeira de piroca.

Ninguém pode nos obrigar


André Dahmer 


Reciclagem

Laerte


Evolução


Caco Galhardo


Assembleia Nacional Constituinte

A ideia de uma Assembleia Nacional Constituinte é um haraquiri institucional. Uma estultice epistêmica, se me permitem um sarcasmo. É inconstitucional. Aliás, tão inconstitucional que o porteiro do STF declararia inconstitucional.

Fico pensando a bancada da bala colocando a pena de morte e a carreira de carrasco na nova Constituição. Minha curiosidade é se haveria prova prática, se me permitem mais um sarcasmo.

Lenio Luiz Streck



Dando nome aos bois

Roberto Irineu Marinho, Ministro Gilmar Mendes e Ricardo Teixeira


Bruno Carazza 

Processo sobre imposto sobre doações é exemplo de concentração de renda

No início dos anos 2000, uma notinha da coluna Radar, na revista Veja, contou que um ascendente empresário de São Paulo, mostrando-se interessado em comprar um jatinho Gulf Stream de última geração, perguntou a Abílio Diniz sobre os custos de manutenção da aeronave. O então dono do Grupo Pão de Açúcar teria respondido nos seguintes termos: “Se você se preocupa com esse tipo de questão, certamente ainda não está preparado para ter um avião como esse”.

De acordo com os registros da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), existem 46 jatinhos Gulf Stream voando pelos céus brasileiros. Quatro deles são modelos da sexta geração, cujo preço se situa acima de US$ 60 milhões, e foram comprados ou arrendados pelas famílias Diniz, Oliveira Andrade (Caoa) e Sanchez (farmacêutica EMS), além de uma empresa de táxi aéreo.

O que pouca gente sabe é que a propriedade de jatinhos de luxo não é tributada no Brasil graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2007. Valendo-se de um malabarismo semântico e de uma frágil interpretação da evolução histórica da legislação, o ministro Gilmar Mendes convenceu a maioria de seus pares de que a determinação da Constituição de instituir impostos sobre a “propriedade de veículos automotores” (art. 155, III) só se aplica a veículos terrestres, não devendo ser estendida a aeronaves e embarcações (RE 379.572-4). A partir daí, ao contrário dos pobres mortais que pagam IPVA sobre seus carrinhos, os jatos, helicópteros, iates e lanchas dos multimilionários estão isentos.

Na última sexta (23/10) a instância máxima de nosso Judiciário iniciou um julgamento que pode ratificar uma nova benesse para os 0,001% mais ricos. Amparando-se numa ambivalência de outro dispositivo constitucional (desta vez o art. 155, § 1º, inciso III, alínea a), algumas das famílias mais ricas do Brasil recorreram ao STF para não terem de pagar tributos sobre recursos transferidos ou gerados no exterior por seus patriarcas e que agora retornam ao país na forma de doações a seus herdeiros. Alegando que o Congresso Nacional não aprovou uma lei complementar que deveria tratar da cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) quando o doador tiver residência no exterior, nossos bilionários pretendem ratificar uma lucrativa estratégia de planejamento sucessório.

As alíquotas do imposto sobre heranças e doações no Brasil situam-se na faixa de 4% a 8%, a depender do Estado. Trata-se de um patamar bem inferior ao de países como Japão, Coreia do Sul, França, Inglaterra e Estados Unidos, onde superam 40%. No entanto, são tantas as isenções e regras especiais criadas justamente para beneficiar os mais abastados, que a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem defendido sua completa reformulação, mudando sua incidência do doador para o recebedor das transferências de renda intrafamiliares. De acordo com a proposta, o valor recebido como herança ou doação deveria ser considerado renda, e taxado na fonte com alíquotas bem mais altas.

Por aqui, em vez de ampliarmos o debate por uma maior igualdade e progressividade na tributação, as discussões sobre a reforma são interditadas pela gritaria de setores que se dizem prejudicados com as PECs que criam um Imposto sobre Valor Agregado de alíquota única e simplificada, aplicado de forma justa e igualitária para todos os bens e serviços. E enquanto a reforma tributária empaca no Congresso Nacional, o topo do topo da pirâmide de distribuição de renda recorre ao Judiciário para sacramentar seu “planejamento tributário” que envolve remessas de valores para paraísos fiscais e sua posterior repatriação sem imposto, com o consentimento do STF.

Quando estudamos as causas do subdesenvolvimento das nações, as elites econômicas e políticas são frequentemente apontadas como responsáveis pela criação de mecanismos que levam à concentração de renda e de poder nas mãos de poucos, em detrimento de milhões. Mas na maioria das vezes as críticas ocorrem em bases genéricas, sem apontar quem são essas elites e tampouco quais engrenagens elas utilizam.

No caso específico do julgamento do ITCMD sobre as heranças, temos uma rara oportunidade de dar nome aos bois. No parágrafo anterior, onde está escrito “elite econômica”, segundo levantamento feito pelas repórteres do Valor Joice Bacelo, Beatriz Olivon e Adriana Cotias, estamos tratando dos herdeiros das famílias Safra, Depieri (laboratórios Aché), Steinbruch (CSN), Bellini (Marcopolo) e os já citados Diniz, entre outros.

Já no polo da “elite política” estão os onze ministros do Supremo Tribunal Federal, que pode ratificar mais esse episódio de concentração de renda (RE nº 851108). Aliás, o relator Dias Toffoli já votou em parte favorável à tese dos mais ricos - o processo foi suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

As estimativas indicam que, só no Estado de São Paulo, esse presente para os bilionários pode passar de R$ 60 bilhões. Essa é a medida de mais um episódio explícito de benefícios concentrados para poucos e custos difundidos por toda a sociedade - afinal, todos nós acabaremos pagando o pato por essa perda fiscal, seja por meio do aumento de outros tributos, com juros mais altos ou uma maior inflação.

É bem verdade que nossa Constituição garante a qualquer pessoa recorrer ao Judiciário quando entender que seus direitos estão sendo lesados. Mas quando empresários bilionários se valem da Justiça para pagar menos impostos, eles perdem a legitimidade de reclamar do tamanho da carga tributária no Brasil e de suas distorções, pois eles são ampliados muitas vezes por privilégios criados em seu benefício.

Também não dá mais para admitir que a cúpula do Judiciário se valha de interpretações literais das normas para agravar um sistema de concentração de renda que se perpetua por décadas.

O caso da isenção da cobrança do ITCMD sobre a repatriação de recursos do exterior é mais um exemplo do mecanismo de concentração de renda brasileiro funcionando em toda a sua extensão.

Imposto zero.

Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

Minha vida daria...

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A história de uma ideia infame


Luis Felipe Miguel

Flat Earth: the history of an infamous idea, de Christine Garwood, é um livro interessante para quem deseja conhecer um aspecto da insanidade atual. Confesso que achei um pouco detalhado demais para meu grau de curiosidade sobre o assunto, mas ainda assim a leitura vale a pena.

Ela mostra que a crença na Terra plana é um fenômeno moderno. Muitos de nós julgamos que na Idade Média se acreditava nisso, mas essa lenda foi criada depois. Segundo Garwood, a história de que a viagem de Colombo pretendia comprovar que a Terra é redonda foi disseminada por Washington Irving (autor de Rip van Winkle), em sua biografia romanceada do navegador. Na época das grandes navegações, ninguém duvidava do formato da Terra, só da possibilidade prática de circunavegá-la.

De fato, os gregos já sabiam que a Terra é redonda. Curiosamente, essa ideia partiu não da observação, mas de um dogma. Os pitagóricos decidiram que a Terra era esférica porque a esfera era a forma geométrica perfeita. Em seguida, porém, as evidências foram sendo acumuladas. Por volta do século 4 a.C., a ideia da Terra esférica era amplamente aceita entre as pessoas educadas dos povos gregos.

Os pais da Igreja primitiva não questionaram. Garwood enfatiza que eles não eram literalistas bíblicos; na maioria acreditavam que a Terra era redonda ou não lidavam com a questão. Agostinho afirmou que a Terra era redonda, posição apoiada, ainda que de forma vaga, por Isidoro de Sevilha, e mais enfaticamente por Beda, cujas obras faziam parte do ensinamento padrão dos monastérios. Pouquíssimos autores cristãos iniciais, obscuros e sem grande influência, argumentaram em favor da Terra plana; eles foram alçados à posição de pensadores medievais típicos por racionalistas vitorianos, interessados em construir a oposição entre Igreja e ciência.

O problema principal para os teólogos era a existência ou não de pessoas vivendo nos antípodas. Caso existissem, conflitariam com a crença na unidade da espécie humana, descendente de Adão e Eva, e também com a visão de que os apóstolos teriam divulgado os Evangelhos para todas as nações. A ideia de que não existia humanidade no Hemisfério Sul se apoiava também em evidência empírica: os marinheiros sentiam aumento da temperatura conforme viajavam para o Sul (aproximando-se do Equador). A crença era que temperatura continuaria aumentando continuamente, tornando impossível a vida nos antípodas.

Minoritária e carente de credibilidade desde a Antiguidade, praticamente ausente da Europa a partir do século XII, como revelam a literatura e a iconografia, a noção de um Terra plana ressurge no século XIX pelas mãos de um orador, ex-socialista owenista, que adotava o pseudônimo de Parallax. Ele criou seu próprio modelo de universo, com a Terra achatada e imóvel no centro. Questões complicadas eram resolvidas com soluções ad hoc: o eclipse lunar seria causado por um corpo celeste misterioso e as marés seriam efeito do balanço das águas primordiais nas quais a Terra flutuaria. Faltou explicar porque essas águas primordiais balançariam, na ausência da atração gravitacional... E porque esse balanço não afetaria a terra firme.

Na época, Parallax já denunciava uma conspiração elitista e defendida uma ciência feita pelo “homem comum”, partindo do zero e sem levar em conta as teorias aceitas, que chamava de “zetética”. Pela sua experiência no owenismo, ele conhecia o anti-elitismo prevalente na cultura científica da classe trabalhadora, formada em escolas de adultos e publicações de divulgação científica, e tirava proveito dele. Assim, mesclava o discurso de “poder para o povo” com literalismo bíblico. Tinha dom para a propaganda e a polêmica que gerava ampliava o público de suas palestras (pagas) e dos panfletos que vendia.

No começo do século XX, Parallax foi redescoberto por Samuel Shenton. Autodidata, Shenton inventou uma forma de transporte aéreo estacionário: a carga ficaria parada no ar enquanto a Terra rodava. Seu slogan era “deixe a Terra fazer o esforço do transporte aéreo”. Quando universidades e departamentos governamentais não se interessaram por sua ideia, ele passou a desconfiar de que havia uma conspiração – e aí aderiu ao terraplanismo. Foi seu maior porta-voz, até mesmo em um período particularmente árduo para os adeptos da teoria – os anos 1950 e 1960, quando, embalados pela corrida especial, União Soviética e Estados Unidos produziam continuamente fortes evidências da rotundidade do nosso planeta.

A Terra plana, conclui a autora, é o ponto mais radical do criacionismo, exigindo uma interpretação literal da Bíblia mesmo em um dos pontos mais evidentes e mais facilmente refutáveis. Por isso, os criacionistas em geral insistem que a Bíblia não ensina que a Terra é plana, guardando distância de uma visão tão difícil de ser sustentada. E os terraplanistas veem essa prudência como prova da falta de fibra moral dos criacionistas, que oscilam na defesa da literalidade bíblica conforme as conveniências...