sábado, 24 de outubro de 2020

E se Sherazade tomasse o poder na milésima segunda noite?


José Eduardo Agualusa

A escritora marroquina Fatema Mernissi nasceu num harém, em 1940. Morreu em 2015. É considerada uma das principais vozes do feminismo árabe. Fatema é autora de um livro interessantíssimo, “O harém e o Ocidente”, no qual desmonta, com inteligência e ironia, muitos dos preconceitos ocidentais relativamente à cultura islâmica.

Em “O harém e o Ocidente”, Fatema lembra que a avó, Yasmina, sabia de cor os contos das “Mil e uma noites”. Mais tarde, Fatema descobriu que os contos que a avó lhe contava eram bastante diferentes das versões escritas. Na opinião de um amigo de juventude, Kemal, as mulheres analfabetas, como Yasmina, seriam muitíssimo mais subversivas do que as instruídas, porque introduziam distorções heréticas nos contos. Além disso, ao contrário dos escritores, conseguiam escapar à censura, dada a impossibilidade de apreender ou queimar a voz viva de um contador de histórias — a menos que se apreendesse e queimasse o próprio contador.

Fatema ilustra esta tese com um dos contos, que na versão escrita tem por título “A história de Hassan al-Basri”, e ao qual Yasmina chamava “A mulher com o vestido de penas”. É a história de um homem que vê um grande pássaro pousar numa praia. Percebe a seguir que não se trata de um pássaro, mas de uma mulher lindíssima, vestida de penas. O homem apaixona-se por essa mulher e se casa com ela. Para que não fuja, enterra o vestido de penas. Anos mais tarde, contudo, a mulher encontra o vestido e voa de regresso ao seu país, uma pequena ilha chamada Wak Wak, habitada somente por mulheres. Na versão escrita, o marido recupera a esposa. Na versão de Yasmina, não. Ela consegue fugir para Wak Wak, com os filhos, e o marido nunca mais a encontra. Assim, na versão de Yasmina, aquele conto aparentemente inócuo transforma-se num vigoroso manifesto pela libertação da mulher.

Vivo em Moçambique, país onde o fascismo islâmico tem vindo a ganhar terreno. Nos últimos anos, um movimento radical islâmico, sobre o qual ainda se sabe muito pouco, assassinou no norte do país dezenas de camponeses, atrasando dessa forma a implementação de um vasto projeto de exploração de gás natural, que poderia contribuir para o enriquecimento e desenvolvimento de toda a região.

Mesmo na Ilha de Moçambique — pequena cidade histórica, com uma profunda e centenária tradição de ecumenismo e tolerância religiosa, racial e étnica, e onde o islã se deixou africanizar, misturando-se harmoniosamente com a fé animista —, há crescentes sinais de crispação.

É por tudo isto que venho pensando na tese de Fatema Mernissi. As mulheres são as principais vítimas do radicalismo islâmico. Se o queremos combater por dentro, de forma profunda e definitiva, talvez devêssemos começar por escutar as mulheres, por lhes dar voz, apoiando os movimentos feministas em todos os países onde exista forte presença islâmica.

Na minha versão, Sherazade toma o poder na milésima segunda noite, prende o rei, que assassinara tantas esposas antes de casar com ela, acaba com a monarquia, e instaura uma democracia multipartidária, com forte participação feminina. Fim.

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