sábado, 31 de outubro de 2020

A terra à vista


Nilson Lage

Parece estranho que maré tão assustadora de ódio, atraso e ignorância nos assalte, invocando atávicos exércitos de fantasmas, justamente quando a revolução industrial e o avanço científico urbanizaram os países, prolongaram o tempo médio de vida e permitiram à maioria dos homens sonhar com as próprias utopias.

Por que justamente agora, na etapa final da vida, assistir a tal descompasso, que revive, com mais sombras e menos esperanças, o mesmo clima do tempo em que nasci, há 84 anos?

Acho que sei a resposta, ou, pelo menos, parte dela.

É que rumamos para um porto a que os comandantes do navio não querem chegar. Todo poder deles -- os que, há pouco, trocaram a riqueza real por moeda, patentes e direitos, --depende ainda da exploração dos trabalhadores, e isso será cada vez mais difícil para além da praia a que nos atira o determinismo da História.

Eles estão com medo e, por isso, apostam no retrocesso.

Lá, no tempo previsto dos equipamentos inteligentes e das multidões avulsas, o lucro extraído do trabalho humano só será possível se o custo por trabalhador – o de sua sobrevivência – for menor do que a amortização do investimento nas máquinas, a energia que as move, a locação do espaço que ocupam, a manutenção e depreciação. Não há como extrair sobre-esforço de máquinas.

Comparem o desempenho de um motorista de caminhão, um operador de guindaste, um escrivão de cartório ou um controlador de estoques com o de dispositivos eletrônicos capazes de realizar essas mesmas operações sem paixões, emoções, cansaço e tudo mais que é humano. Parece claro que a competição desigual exigirá desses trabalhadores níveis de vida mais do que miseráveis. Como conter tal legião de escravos?

A terra à vista – na qual, possivelmente, não pisaremos – exigirá ampla racionalidade no sistema produtivo, planejamento e novas formas de ver a vida. Teremos que discernir o que essencial – a que todos têm direito – do que é eletivo, vocacionado, aberto ao desejo individual e à escolha de consumo. São coisas difíceis de conceber em uma democracia como a que imaginamos até aqui, mas não nessa república platônica em que triunfe a razão, agora sonegada.

Só a estabilidade institucional, a garantia de educação e atendimento básico de saúde poderão cria espaço para a livre iniciativa, limitada por um poder central que impeça a acumulação excessiva de poder vinculado à riqueza.

Isso nos parece claro e explica a incrível rapidez com que vem decaindo o Ocidente a partir da falência das sociedades de bem-estar social.

Não é um ideal socialista; acredito que é a única alternativa para a maioria de nós (para ser exato, de vós).

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