quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Morto aos 92, o ilusionista James Randi se dedicou a combater charlatães

Marcelo Coelho  

Mágico que foi além da sua profissão, ele publicou 'Faith Healers' (curandeiros seria uma boa tradução) com Carl Sagan  

Se me perguntarem qual é a profissão mais ética que existe, acho que meu voto iria para a de mágico.

Um especialista em truques de cartas poderia arrancar fortunas dos otários numa mesa de jogo. É ainda mais fácil iludir uma viúva rica com supostas aparições sobrenaturais.

Um bom mágico faz prodígios, entretanto, sem se passar por médium ou gênio no pôquer —e recebe pouco dinheiro em troca de seus talentos.

Claro, um mágico pode roubar os segredos de outro, ou revelá-los ao público. Atitudes condenáveis, por certo. Do meu ponto de vista, aliás, não faz mal que digam como funciona o truque. Continuo gostando do mesmo jeito.

O fato é que o mágico põe a arte acima do seu interesse material. Afirma honestamente que todos seus prestígios são pura psicologia, habilidade manual e uso de dispositivos engenhosos. Engana a gente, sem enganar ninguém.

Morreu há poucos dias, aos 92 anos, um mágico que foi além da sua nobre profissão. Nascido no Canadá, James Randi ("The Amazing Randi") dedicou-se por décadas a desbancar todo tipo de fraude parapsicológica, medicinal e religiosa, associando-se ao divulgador científico Carl Sagan (1934-1996), com quem publicou "Faith Healers" (curandeiros seria uma boa tradução).

Ele é bem menos conhecido, acho, do que Uri Geller —o "prodígio" israelense que, na década de 1970, entortava colheres na TV. Randi não só demonstrou como se faz o truque, como também aprontou uma armadilha para Uri Geller.

O famoso entortador ia aparecer num talk show americano, e Randi combinou com o entrevistador de trocar as colheres que Geller iria usar na proeza. Os poderes de Geller abandonaram-no, curiosamente, naquele momento. Veja no YouTube, procurando por "Johnny Carson - Uri Geller".

Claro, uma coisa que não acontece é muito menos interessante do que uma coisa que "acontece". O programa de Johnny Carson ficou chato de assistir, enquanto as inúmeras exibições de colheres entortadas ainda impressionam os espectadores por aí.

Lembro-me de ter visto, num show de mágica, alguém escrever o próprio nome numa carta de baralho, guardá-la direitinho no bolso, até que, depois de um longo tempo, o mágico tira a carta marcada de dentro de uma laranja.

Um suposto vidente, conta Randi numa palestra publicada na revista online Skeptic.com, deixou num cofre fechado a previsão de algo que iria acontecer em poucos dias. Passado o prazo, abriram o cofre. E encontraram um papel registrando a ocorrência de um acidente aéreo nas ilhas Canárias --que de fato tinha acabado de acontecer!

Não é difícil perceber que o mecanismo da carta de baralho na laranja foi utilizado.

Só que todo mundo acreditou no ato de vidência. Foi noticiado pelo New York Daily News; todos certos de que algo paranormal tinha acontecido. Por sorte, o tal vidente apareceu para uma entrevista. E contou que todo o fenômeno era apenas publicidade para o show de mágica dele em Nova York naquela semana.

James Randi organizou uma fundação, com site, que entre outras coisas tem palestras criticando as diversas formas de medicina alternativa.

Assisti a um vídeo sobre acupuntura. A palestrante, uma médica, é terrivelmente sem graça, e suas considerações são fortemente adjetivadas e insistentes: "isso não existe, isso não foi verificado, isso não tem prova".

Seria necessário algo mais espetacular para desanimar os crentes. Uma coisa engraçada, entretanto, aparece no vídeo sobre acupuntura. Especialistas nessa arte aplicam-na à veterinária e indicam como espetar os pontos que ativam a vesícula biliar de um cavalo.

Detalhe: cavalos não têm vesícula biliar. Esse órgão não existe no inocente equino.

O problema é que o crente pode responder: existe, mas é invisível. Existe, mas num plano cármico. A crença continua, naturalmente, blindada. Mil farsantes são desmascarados, mas o 1.001º, ah, esse tem poderes reais.

Mágicos como James Randi ajudaram muito numa área em que cientistas, por vezes, caem na esparrela. Mas a luta é árdua. Talvez comediantes pudessem ajudar. O ridículo é uma arma, quando o bom senso peca pela sem-gracice.

O "inexplicável" tende a ser mais fascinante, e menos chato, do que a explicação. O ato de acreditar gasta menos neurônios do que o de entender.

"Ah, pode ser que seja mentira, mas vai saber. Eu acredito." A teimosia de um burro pode parecer sinal de força, mas ele empaca por preguiça.

Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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