Transição para a descarbonização parece sair da primeira marcha graças a súbito despertar dos grandes negócios
A substituição das energias fósseis por renováveis na matriz energética global foi vagarosa demais, durante mais de um quarto de século. Enormes subsídios às primeiras e parcos incentivos às menos nocivas mantiveram o comboio em marcha lenta. Para piorar, a estrutura regulatória montada pela Convenção do Clima, de 1992, favoreceu a tergiversação institucional ao longo de 25 conferências das partes (CoP).
Ultimamente, contudo, a transição descarbonizadora parece querer sair da primeira marcha, especialmente graças a um súbito despertar dos grandes negócios. Mas, também, à recentíssima inflexão política da ditadura chinesa, a ser turbinada por provável virada democrata nos EUA. Se estas três mudanças se confirmarem, poderá deixar de ser ilusória a previsão para este século da chamada “neutralidade carbono”. Mesmo não sendo o fim do problema, tal conquista poderá reduzir as incertezas sobre as chances de possível solução.
Do lado dos negócios, o ponto de mutação parece ter ocorrido em dezembro de 2017, exatos dois anos depois do tão festejado Acordo de Paris, no âmbito do “One Planet Summit”, realizado em repúdio ao negacionismo de Donald Trump. Ali, começou a brotar a “Climate Action 100+”, principal iniciativa pró-clima do setor privado. Seus atuais 518 membros têm ativos estimados em US$ 47 trilhões, segundo o Financial Times.
No mês passado, a “CA100+” anunciou um esquema de vigilância do comportamento das 161 maiores empresas do mundo, com o propósito de avaliar o quanto continuam distantes da neutralidade carbono. Qualquer destas empresas precisará se preocupar com sua reputação, mesmo se cética sobre os riscos reais impostos pelo clima. Este tipo de pressão esteve bem longe de existir nos quase três decênios de marcha lenta.
Do lado político, somente há quarenta dias surgiu algo comparativamente tão promissor. Na sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, o ditador Xi Jinping anunciou o compromisso unilateral de a China atingir a neutralidade carbono antes de 2060. Isto exigiria US$ 15 trilhões nas próximas três décadas, segundo estimativa do Boston Consulting Group. Uma reviravolta, se a referência for a atitude do país, cinco anos antes, nas negociações do Acordo de Paris.
É pequena a probabilidade de ter sido mera astúcia diplomática, ou operação propagandístico-demagógica. A questão climática parece mesmo estar entrando no radar da elite dirigente, como séria ameaça à estabilidade interna, fator de fraqueza em disputas com rivais sistêmicos. O futuro do regime seria muito mais incerto em mundo sem freios ao aquecimento global. Mais importante, então, é saber quais podem ser as principais mudanças, caso o compromisso seja mesmo para valer.
Como a China - sozinha - tem emissões superiores às da dupla EUA-Europa, é fácil perceber o impacto de seu possível esforço descarbonizador. Cabe às três potências a responsabilidade por pouco mais da metade da encrenca. Porém, é fora desse trio que as emissões mais tenderão a aumentar. Qualquer perspectiva de estabilização capaz de levar à neutralidade carbono global em meados do século dependeria, cada vez mais, do comportamento de emergentes (como Índia, Brasil e Indonésia), de gigantes populacionais (como Paquistão, Bangladesh e Nigéria), e de grandes produtores de energias fósseis (como os países do Golfo, Rússia, Canadá e Austrália).
A principal dúvida, portanto, é se haverá chance de o compromisso de neutralidade carbono antes de 2060 chegar à política externa chinesa. Se houver, seu principal vetor será o programa “Nova Rota da Seda”. Os 126 países nele envolvidos somam dois terços da população mundial, 23% do PIB global e uns 28% das emissões. Tão ou mais importante, abrigam 75% das reservas de energias fósseis.
Se os 126 continuarem sem compromissos descarbonizadores, em 2050 poderão vir a ser responsáveis por 66% das emissões. O suficiente para a inevitabilidade do desastroso cenário de 3 graus centígrados de aquecimento global. Ao contrário, para uma adesão dos 126 países da Nova Rota da Seda a um cenário de 2 graus, o Banco de Desenvolvimento da China precisaria investir, até 2030, cerca de US$ 785 bilhões ao ano, segundo ótimo relatório elaborado pela Tsinghua University.
A comprovação do engate de segunda marcha pelo clima será a China vir a ser pressionada nessa direção por aliança da União Europeia com os Estados Unidos, em caso de vitória de Joe Biden. Para tanto, o melhor arranjo institucional será o G-20, mesmo sem participação direta de países como Bangladesh, Egito, Etiópia, Irã, Nigéria ou Paquistão. Um pacto descarbonizador no G-20 seria a chave-mestra para o sucesso das negociações diplomáticas no âmbito da Convenção do Clima.
Seria um grande trunfo para o mundo poder ir bem adiante do tímido Acordo de Paris. Negar esta saída é o pior defeito do excelente artigo do professor Adam Tooze, da Columbia University, publicado pela revista Foreign Affairs do último dia 17.
José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP
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