terça-feira, 27 de outubro de 2020

A história de uma ideia infame


Luis Felipe Miguel

Flat Earth: the history of an infamous idea, de Christine Garwood, é um livro interessante para quem deseja conhecer um aspecto da insanidade atual. Confesso que achei um pouco detalhado demais para meu grau de curiosidade sobre o assunto, mas ainda assim a leitura vale a pena.

Ela mostra que a crença na Terra plana é um fenômeno moderno. Muitos de nós julgamos que na Idade Média se acreditava nisso, mas essa lenda foi criada depois. Segundo Garwood, a história de que a viagem de Colombo pretendia comprovar que a Terra é redonda foi disseminada por Washington Irving (autor de Rip van Winkle), em sua biografia romanceada do navegador. Na época das grandes navegações, ninguém duvidava do formato da Terra, só da possibilidade prática de circunavegá-la.

De fato, os gregos já sabiam que a Terra é redonda. Curiosamente, essa ideia partiu não da observação, mas de um dogma. Os pitagóricos decidiram que a Terra era esférica porque a esfera era a forma geométrica perfeita. Em seguida, porém, as evidências foram sendo acumuladas. Por volta do século 4 a.C., a ideia da Terra esférica era amplamente aceita entre as pessoas educadas dos povos gregos.

Os pais da Igreja primitiva não questionaram. Garwood enfatiza que eles não eram literalistas bíblicos; na maioria acreditavam que a Terra era redonda ou não lidavam com a questão. Agostinho afirmou que a Terra era redonda, posição apoiada, ainda que de forma vaga, por Isidoro de Sevilha, e mais enfaticamente por Beda, cujas obras faziam parte do ensinamento padrão dos monastérios. Pouquíssimos autores cristãos iniciais, obscuros e sem grande influência, argumentaram em favor da Terra plana; eles foram alçados à posição de pensadores medievais típicos por racionalistas vitorianos, interessados em construir a oposição entre Igreja e ciência.

O problema principal para os teólogos era a existência ou não de pessoas vivendo nos antípodas. Caso existissem, conflitariam com a crença na unidade da espécie humana, descendente de Adão e Eva, e também com a visão de que os apóstolos teriam divulgado os Evangelhos para todas as nações. A ideia de que não existia humanidade no Hemisfério Sul se apoiava também em evidência empírica: os marinheiros sentiam aumento da temperatura conforme viajavam para o Sul (aproximando-se do Equador). A crença era que temperatura continuaria aumentando continuamente, tornando impossível a vida nos antípodas.

Minoritária e carente de credibilidade desde a Antiguidade, praticamente ausente da Europa a partir do século XII, como revelam a literatura e a iconografia, a noção de um Terra plana ressurge no século XIX pelas mãos de um orador, ex-socialista owenista, que adotava o pseudônimo de Parallax. Ele criou seu próprio modelo de universo, com a Terra achatada e imóvel no centro. Questões complicadas eram resolvidas com soluções ad hoc: o eclipse lunar seria causado por um corpo celeste misterioso e as marés seriam efeito do balanço das águas primordiais nas quais a Terra flutuaria. Faltou explicar porque essas águas primordiais balançariam, na ausência da atração gravitacional... E porque esse balanço não afetaria a terra firme.

Na época, Parallax já denunciava uma conspiração elitista e defendida uma ciência feita pelo “homem comum”, partindo do zero e sem levar em conta as teorias aceitas, que chamava de “zetética”. Pela sua experiência no owenismo, ele conhecia o anti-elitismo prevalente na cultura científica da classe trabalhadora, formada em escolas de adultos e publicações de divulgação científica, e tirava proveito dele. Assim, mesclava o discurso de “poder para o povo” com literalismo bíblico. Tinha dom para a propaganda e a polêmica que gerava ampliava o público de suas palestras (pagas) e dos panfletos que vendia.

No começo do século XX, Parallax foi redescoberto por Samuel Shenton. Autodidata, Shenton inventou uma forma de transporte aéreo estacionário: a carga ficaria parada no ar enquanto a Terra rodava. Seu slogan era “deixe a Terra fazer o esforço do transporte aéreo”. Quando universidades e departamentos governamentais não se interessaram por sua ideia, ele passou a desconfiar de que havia uma conspiração – e aí aderiu ao terraplanismo. Foi seu maior porta-voz, até mesmo em um período particularmente árduo para os adeptos da teoria – os anos 1950 e 1960, quando, embalados pela corrida especial, União Soviética e Estados Unidos produziam continuamente fortes evidências da rotundidade do nosso planeta.

A Terra plana, conclui a autora, é o ponto mais radical do criacionismo, exigindo uma interpretação literal da Bíblia mesmo em um dos pontos mais evidentes e mais facilmente refutáveis. Por isso, os criacionistas em geral insistem que a Bíblia não ensina que a Terra é plana, guardando distância de uma visão tão difícil de ser sustentada. E os terraplanistas veem essa prudência como prova da falta de fibra moral dos criacionistas, que oscilam na defesa da literalidade bíblica conforme as conveniências...

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