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quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O quadrado do Supremo

Brasil não precisa que o STF entre numa guerra da vacina

Elio Gaspari

Com quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em 1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que na saúde pública.

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha: “Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.

O capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para isso.

Pode-se discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.

O quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid. Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?

A criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional. Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra. Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.

Tudo indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição. Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.

Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.



quarta-feira, 15 de abril de 2020

As mortes no país dopado pela cloroquina


Vinicius Torres Freire
Cadê a produção em massa de UTIs, testes e medidas para evitar mais ruína de empresas?
É uma obviedade fúnebre e terminal que o Brasil não tem política nacional para lidar com a epidemia. Há algumas ilhas mais racionais de governança, ainda assim inconstantes e precárias, nos estados, no Congresso e em partes de ministérios, quase todas sabotadas pelo indivíduo que ocupa a cadeira de Presidente da República.

No que resta de governança, é preciso prestar atenção ao essencial, que não é a conversa lunática sobre qual tipo de óleo de cobra cura a espinhela caída da Covid-19.

O que é essencial?

Primeiro, organizar ou determinar, se for o caso, a produção de bens para combater a doença, como numa guerra se produzem aviões e tanques.

Onde está a produção aumentada e em massa de equipamentos de UTI, testes, infraestrutura para analisar seus resultados, aparelhos de proteção para o pessoal da saúde? Nós não temos NEM AS ESTATÍSTICAS DA PRECARIEDADE.

Segundo, fazer testes em massa para combater a doença e inventar um plano de saída. NÓS NÃO TEMOS TESTES, nem meios nem planejamento de como fazê-los e para quê. É preciso falar de testes diariamente, à exaustão.

Terceiro, evitar ao máximo a ruína de empresas. A destruição de empresas não apenas dizima empregos, mas acaba com capital organizacional (conhecimento das empresas), “humano” (trabalhadores especializados em um setor ou desempregados de longa duração têm dificuldade de arrumar emprego). É preciso evitar que a recessão neste ano seja maior que o afundamento horrendo e somado de 2015 e 2016. Mais: sem evitar destruição maior de empresas e sem um plano também econômico de saída, a depressão pode durar muito além. 2023?

Na última semana de março, o governo federal dizia que haveria 22,9 milhões de testes para Covid-19. Na semana passada, dizia que haveria uns 9 milhões até julho. Em um boletim também da semana passada, dizia que “estaria mandando” uns 450 mil testes para os estados até hoje.

No começo do mês, o ministro Paulo Guedes (Economia) dizia a empresários que estaria negociando a compra de testes, o bastante para testar 40 milhões de pessoas por mês e, assim, dar “passaporte de imunidade” para trabalhadores.

Parece aquelas contas de trilhão dos economistas do governo. Cadê? São Paulo fez até agora uns 15 mil testes.

Falta ainda dinheiro para que empresas não naufraguem em massa, sejam micro ou médio-grandes, não importa. Faz duas semanas que está no governo uma conversa sobre dar crédito aos micro pelo sistema das maquininhas (pelo qual bancos financiam as vendas a crédito dos pequenos, em suma).

Cadê? Seja esta ou outra solução, está atrasada em relação ao crédito para as pequenas e médias, de resto insuficiente. Faz umas duas semanas se espera um plano de socorro para microempresas (com faturamento inferior a R$ 360 mil por ano) e para empresas maiores (faturamento anual de R$ 10 milhões por ano) que vão naufragar igualmente na paralisação da epidemia, a depender dos setores. Cadê?

Dizer que os pacotes de socorro devem atender primeiro os mais necessitados é uma obviedade e uma tolice enviesada por uma versão perversa e ora completamente fora de lugar da ideia de focalização de gasto social.

Sem poder gastar, o desempregado antes remediado ou que tinha rendimento bem acima da média nacional vai causar estrago no rendimento de quem vem abaixo na pirâmide socioeconômica. O desempregado da empresa maior deixará de comprar, pagar contas ou o empréstimo no banco. É uma cascata de quebradeira.