sábado, 1 de maio de 2021

"Apropriação cultural": um teimoso equívoco

José Eduardo Agualusa

Daqui a pouco alguém vai acusar Jorge Amado de apropriação cultural por ter explorado a mitologia africana em sua obra

Nos últimos anos, as livrarias brasileiras encheram-se de obras de escritores africanos. Já a vibrante música contemporânea do continente mãe da Humanidade continua sendo quase ignorada no Brasil. Assim, vale a pena destacar o recente lançamento de um álbum da cantora angolana Jéssica Areias, “Matura”, que, no geral, tem sido bem acolhido pela crítica.

Jéssica integra uma nova geração de cantores e compositores angolanos, com destaque para Aline Frazão e Toty Sa’Med, que se distinguem por uma notável sofisticação e cultura musical, revelando absoluta intimidade, não só com a riquíssima tradição da música popular urbana de Angola, mas também com todas as grandes correntes dos ritmos do mundo. Para compreender a obra destes autores importa ouvir os seus mestres: os míticos N’Gola Ritmos, que, a partir dos anos 1950, reinventaram a música de Luanda, ou ainda Lilly Tchiumba, Ruy Mingas, André Mingas e Teta Lando, entre muitos outros.

O Estado de São Paulo publicou esta semana uma interessante matéria sobre “Matura”, assinada por Júlio Maria. A última parte do texto, contudo, descamba para uma polêmica absurda, centrada não nas canções de Jéssica, e sim na fotografia que ilustra o álbum: “A foto a mostra (a Jéssica) com a tonalidade da pele bem mais escura do que de fato é, (…) reduzindo a beleza de seu álbum à acusação de apropriação cultural.”

Eis um bom exemplo de como um conceito generoso, o da “apropriação cultural”, pode ser mal utilizado. Infelizmente, acontece muito. Primeiro, Jéssica não é “branca”. Nos EUA, seria considerada uma inequívoca mulher negra. Tão negra quanto Kamala Harris. Tão negra quanto Lupita Nyong’o. Enfim, negra. Mas isto é irrelevante.

O articulista parece desconhecer — e isto já importa considerar — que em Angola não existem “brancos” étnicos. Aquelas pessoas percebidas como “brancas” pela maioria da população estão integradas, como fios de um mesmo tecido, num grupo muitíssimo mais vasto: o dos angolanos de língua materna portuguesa. Nesse grupo, formado na sua vasta maioria por pessoas de origem banto, toda a gente partilha idêntica cultura. Ao posar de turbante, com o peito coberto por colares, e um pano do Congo à cintura, Jéssica Areias está a apropriar-se da sua própria cultura crioula. Cantando — prestando homenagem a outros grupos étnicos angolanos, como os bakongo e os ovimbundo — vai muito além. Aí está a apropriar-se da sua cultura angolana. Foi para isto que se fez a Independência.

Daqui a pouco alguém vai acusar Jorge Amado de apropriação cultural por ter explorado a mitologia africana em parte substancial da sua obra. Ah, sim, já acusaram! O caso do fotógrafo Pierre Verger, que passou décadas testemunhando cerimônias de candomblé, é ainda mais grave: era francês!

O conceito de “apropriação cultural” surgiu para proteger grupos minoritários da exploração comercial do seu patrimônio por pessoas ou empresas alheias a eles. Pierre Verger fazia o oposto: fotografava como forma de divulgar, honrar e proteger esse patrimônio. Amado, esse, exprimia-se no âmago da sua própria cultura — ampliando-a. Como Jéssica faz. É tão difícil compreender a diferença?

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