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domingo, 18 de abril de 2021

O que falta ao miliciano

Elio Gaspari: O que falta a Bolsonaro é seriedade

O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças


A diplomacia americana está fritando Bolsonaro. O capitão, seu ex-chanceler e o ministro Ricardo Salles viajaram numa maionese de excentricidades e pirraças. Do outro lado, o Departamento de Estado levantou um muro. Quando um porta-voz disse que espera “seriedade” do governo brasileiro na cúpula do clima que começa quinta-feira, cravou uma estaca na agenda.

Bolsonaro passou de piromaníaco a pedinte. Admitiu acabar com o desmatamento até 2030 e estragou sua nova posição numa única frase: “Alcançar esta meta, entretanto, exigirá recursos vultosos e políticas públicas abrangentes, cuja magnitude obriga-nos a querer contar com todo apoio possível.” Coisas assim se fazem, mas não se dizem, sobretudo se esse mesmo governo desdenhou a ajuda estrangeira e esvaziou o Fundo Amazônia. Colocar o Brasil, ou qualquer outro país, na posição do cachorro que olha para os espetos de frangos, como fez o doutor Ricardo Salles, é apenas burrice.

O Império e a República cuidaram da Amazônia de todas as formas, mas nunca falaram em dinheiro. Essa é a pior maneira para se começar uma negociação diplomática. Com ela, chega-se apenas a uma velha piada, atribuída ao ex-secretário de Estado Americano Henry Kissinger.

Numa versão politicamente correta, ela fica assim:

“Todos têm um preço”.

“Há coisas que eu não faço, nem por um milhão de dólares”.

“Você já está discutindo seu preço”.

Veneno

A carta de Bolsonaro a Joe Biden ocupa sete páginas.

Fosse qual fosse seu efeito, ele foi anulado pela curta notícia do afastamento do delegado Alexandre Saraiva, que chefiava a Superintendência da Polícia Federal no Amazonas e acusou o ministro do Meio Ambiente de advogar no interesse de desmatadores.

Lula e Bolsonaro

Uma Lava-Jato e três anos depois, Lula ficou maior, e Bolsonaro está menor.

Doutores cloroquina

É possível que o repórter Fabiano Maisonnave tenha entregue de bandeja um presente à CPI da Pandemia. Seria o depoimento dos médicos Michelle Chechter e Gustavo Maximiliano Dutra, que foram a Manaus em fevereiro para aplicar a “técnica experimental ‘nebuhcq líquido’, desenvolvida pelo dr. Zelenko”. Eram nebulizações de cloroquina.

Quatro pacientes grávidas receberam o tratamento. Todas morreram.

Uma delas teve um vídeo gravado, postado no dia 20 de março pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni. Ele informava que “de 0 a 10, melhorou 8”.

Talvez Lorenzoni não soubesse, mas ela morrera no dia 2.

domingo, 28 de março de 2021

"O Diabo na rua, no meio do redemoinho..."


Comitê criado por Bolsonaro para o combate à pandemia só podia dar errado, e deu

Elio Gaspari

Seria uma reunião dos chefes dos três Poderes para tratar da pandemia, pois o número de mortos havia passado dos 300 mil. Foi uma palhaçada típica das marquetagens oficiais. A encenação tinha a ver com o Executivo, e só com ele. Os outros dois Poderes nunca se meteram com a cloroquina nem com a “gripezinha”. Além disso, a presença do ministro Luiz Fux na fotografia era meramente simbólica.

Bolsonaro levou para o encontro alguns de seus ministros e governadores amigos. Ao fim da reunião, anunciou a formação de comitê para tratar da pandemia e delegou ao presidente do Senado a coordenação do trabalho com os governadores.

Confundiu cloroquina com cloro de piscina. O presidente do Senado não tem mandato nem jurisdição para tratar de um assunto que é só do Executivo. Se isso fosse pouco, em março do ano passado, quando a Covid havia matado só uma pessoa, Bolsonaro criou um comitê para assessorá-lo diante da pandemia. Foi entregue ao chefe da Casa Civil, general Braga Netto. Deu em nada e sumiu. No dia 22 de março, quando a pandemia matou 1.383 pessoas, ele tirou férias.

O evento de quarta-feira tinha tudo para dar errado, e horas depois o presidente da Câmara respondeu:

“Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar: não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que que são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados.”

(...)

“Os remédios políticos no Parlamento são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais. Muitas vezes são aplicados quando a espiral de erros de avaliação se torna uma escala geométrica incontrolável. Não é esta a intenção desta presidência. Preferimos que as atuais anomalias se curem por si mesmas, frutos da autocrítica, do instinto de sobrevivência, da sabedoria, da inteligência emocional e da capacidade política.”

Como ensinou Guimarães Rosa: “Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão”. Com suas obsessões e mentiras, Bolsonaro está ficando sozinho. É como gosta e como sempre esteve, desde quando era um capitão bagunceiro e transmutou-se num político irrelevante. Essa condição vai bem para a pessoa de Bolsonaro, mas está arruinando o país.

De novo, Guimarães Rosa avisou: “O Diabo na rua, no meio do redemoinho...”

Ideologia e diplomacia

Atribui-se ao diplomata Ernesto Araújo a condição de integrante de uma “ala ideológica” do governo.

Em defesa das tradições do Itamaraty, deve-se registrar que o doutor Araújo nada tem de ideológico, nunca teve. Na carreira diplomática, há quadros profissionais, oportunistas e uns poucos ideológicos.

Ideológico, conservador e até mesmo reacionário foi o embaixador Pio Corrêa (1918-2013). Chamava John Kennedy de “bestalhão” e lastimava que sua Copacabana dos anos 50 tivesse sido tomada pela “horda pululante e chinfrim de suburbanos transmigrados”.

Era embaixador da ditadura em Montevidéu quando a filha do presidente deposto João Goulart sofreu um acidente. Visitou-a no hospital. Anos depois, escreveu aos chefe do Estado Maior do Exército denunciado a prática de torturas.

Quem são os “oito”

O general Eduardo Pazuello caiu atirando, da pior maneira possível. Graças aos repórter Caio Junqueira sabe-se que na posse de seu sucessor, constrangeu-o dizendo-se vítima de uma “ação orquestrada” e de “pressões políticas”. Denunciou “um grupo interno nosso” que em fevereiro “tentou empurrar uma pseudo nota técnica” defendendo um medicamento. Eram “oito atores”, todos médicos da equipe que levou para o ministério.

O general contou que seu rigor blindando o ministério acabaria “dando merda”. Afinal, “a operação de grana com fins políticos acontece aqui”.

Pazuello poderia ter denunciado essa situação enquanto estava na cadeira, expondo o grupo dos “oito”. Preferiu se aborrecer com jornalistas. Tudo bem, ainda há tempo para que o faça, protegendo seu sucessor.

De qualquer forma, contribuiu mostrando o tapete debaixo do qual está a sujeira.

Quem quis sumir com os mortos

Sujeira debaixo do tapete, há, e persiste. Enquanto o general Pazuello falava dos “oito”, alguém alterou os critérios de registro de mortos pela Covid no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe. Tornava obrigatória a informação do CPF, a nacionalidade e o grau de imunização do paciente. Com a gracinha, num só dia, o número de mortos em São Paulo cairia para 281, contra 1.021 na véspera. Só faltou exigirem um registro presencial, como as provas de vida dos aposentados.

As secretarias de Saúde reclamaram, e o doutor Marcelo Queiroga anunciou que a exigência foi cancelada.

Resta saber como esse jabuti foi colocado na árvore.

Madame Natasha

Natasha concedeu uma de suas bolsas de estudo ao novo ministro da Saúde, doutor Marcelo Queiroga. Ele entrou em campo pedindo um voto de confiança e disse o seguinte:

“Quem quer lockdown? Ninguém quer lockdown.”

No dia seguinte à fala de Queiroga, quatro defensores de um “lockdown rígido” de trinta dias assinaram um artigo defendendo a medida.

Entre eles, a professora Márcia Castro, da Escola de Saúde Pública de Harvard, e Carlos Lula, Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

Queiroga quis dizer:

Jair Bolsonaro não quer o lockdown.

quarta-feira, 24 de março de 2021

Párias, patetas e prepotentes

Elio Gaspari

O chanceler Ernesto Araújo pediu às embaixadas do Brasil que saiam às compras para conseguir insumos médicos. Para quem se orgulhou da condição de "pária", hostilizou a China com o "comunavírus" e viu o oxigênio venezuelano chegando a Manaus, foi no mínimo um gesto de humildade. O "projeto globalista" que, a seu ver, ameaça o mundo, tem lá suas utilidades.

O doutor Araújo é um expoente da estupidez que reina no governo. Está nas livrarias a prova acabada dessa patetice. É o volume "Alexandre de Gusmão (1695-1753): O Estadista que Desenhou o Mapa do Brasil", do embaixador Synésio Sampaio Goes Filho.

Synésio é tudo o que Araújo ainda não conseguiu ser. Erudito, estuda a diplomacia brasileira e uma questão que pouca gente procura conhecer: Como é que Portugal ficou com a Amazônia? Afinal, pela linha do Tratado de Tordesilhas (1494), suas terras paravam na foz do Amazonas. Diplomata, chefiou as embaixadas em Bogotá, Lisboa e Bruxelas. Além disso, presidiu a Fundação Alexandre de Gusmão, que foi uma usina de produção cultural do Itamaraty.

Foi porque, desde a chegada de Araújo, deixou de ser. Pela Fundação, o embaixador já havia publicado "Navegantes, bandeirantes, diplomatas". (O livro está na rede, de graça.)

Em 2019 a Fundação recusou-se a publicar o "Alexandre de Gusmão". Teria sido pressão da Espanha, que perdeu as terras pelo Tratado de Madri, de 1750? Talvez algum descendente do Marquês de Pombal, que azucrinava Gusmão? Nada. O livro de Synésio Sampaio não podia ser publicado porque tinha um prefácio do embaixador Rubens Ricupero, um ex-chanceler, ex-embaixador em Washington e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento. Motivo murrinha, coisa de patetas prepotentes. Como era de se prever, o livro saiu por uma editora privada, a Record.

O Brasil tem o formato de um presunto graças a grandes homens e à sabedoria de Lisboa. Para começar, há a figura de Pedro Teixeira. Um português que em 1637 saiu do Pará com 47 canoas e chegou a Quito. No caminho fundou o povoado de Franciscana, nos confins do oeste do vale amazônico. Achava-se que havia por ali um "Rio do Ouro".

Em 1746 o paulista Alexandre de Gusmão, formado em Coimbra e em Paris, começou a cuidar das negociações do Tratado de Madri. Quatro anos depois Espanha e Portugal se acertaram e o Brasil ficou com o vale do Amazonas. Com essa e outras expansões, ficou dois terços maior.

Os mapas mandados por Gusmão desenharam três mil quilômetros da fronteira do Norte num texto de 66 palavras. Ele fez concessões nas fronteiras do Sul e foi atazanado pelas intrigas da Corte. Era secretário do rei João V e, quando ele morreu, o marquês de Pombal afastou-o.

Fritaram Alexandre de Gusmão, acusaram-no de ser judeu, "globalista" em araujês. Em tempo: toda a mitologia do Eldorado amazônico corria atrás de uma montanha de ouro. Afinal, na Bolívia havia-se achado uma de prata. Ela existia. Em 1644, sete anos depois da partida de Pedro Teixeira, um sujeito chamado Bartolomeu Barreiros de Ataíde catou algum ouro na região do Araguaia, mas a montanha só foi achada em 1979, na Serra Pelada.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Os últimos dias de Trump



Em julho de 2016, o bilionário Michael Bloomberg, disse durante a convenção do partido Democrata: “Eu reconheço um vigarista quando o vejo”. Referia-se a Donald Trump. Passaram-se quatro anos, e a questão da vigarice do doutor foi para a mesa da procuradora-geral do estado de Nova York. Em Washington, a questão tornou-se outra: a eventual aplicação do dispositivo constitucional que permite empossar o vice caso o titular esteja incapacitado. Quando essa emenda foi aprovada, pensava-se num cenário no qual o presidente está sob intensos cuidados médicos. No espetáculo da série “Os últimos dias de Trump”, a invocação do dispositivo nada tem a ver com uma anestesia geral, por exemplo. Trata-se de incapacidade por maluquice.

Trump é visto como um narcisista psicótico por muita gente que não gosta dele. Em julho passado, sua sobrinha Mary (psicóloga) publicou um livro com o subtítulo “O homem mais perigoso do mundo”. Parecia futrica familiar.

Desde novembro, Trump sustenta que venceu a eleição “de lavada”. Na terça-feira, os candidatos republicanos perderam a eleição na Geórgia. No dia seguinte, seus guardiões fizeram o que fizeram. (“We love you”, disse Trump.) Os senadores e deputados americanos foram obrigados a deixar o prédio. Numa decisão histórica, voltaram aos plenários horas depois. Na quinta-feira, confirmaram o resultado eleitoral. A senadora republicana que perdeu a cadeira tirou sua assinatura do pedido de recontagem dos votos da eleição presidencial na Geórgia. Duas integrantes do primeiro escalão de seu governo foram-se embora, e seu fiel ex-procurador-geral acusa-o de ter traído o cargo.

O mundo está diante de um espetáculo constrangedor: o presidente dos Estados Unidos pirou. Isso só acontecia em filmes ruins. Desde o dia em que tomou posse, garantindo que ela foi assistida por uma multidão jamais vista, estava no tabuleiro a carta de que se tratava de um mentiroso. Quatro anos depois, com o seu negativismo eleitoral e a mobilização de seus seguidores para a invasão do Capitólio, Trump encarna o personagem do teatrólogo Plínio Marcos em “Dois perdidos numa noite suja”: “Sou o Paco Maluco, o perigoso”.

A série “Os últimos dias de Trump” não terminou. Se ele queria ir jogar golfe na Escócia no dia da posse de Joe Biden, deve buscar outro pouso. A primeira-ministra Nicola Sturgeon disse que lá o doutor não entra, pois o país está em lockdown.

Faltam dez dias para o fim da série, e Trump ainda surpreenderá a plateia. A Associação Americana de Psiquiatria continua funcionando, com sede a poucos minutos da Casa Branca. Isso, porque malucos existem.

A poesia de Grant no caos de Trump
Durante as horas em que a anarquia trumpista tomou conta do Capitólio, deu-se um momento de poesia histórica. Sem dar a menor bola, centenas de manifestantes passavam por baixo do monumento ao general Ulysses Grant, comandante das tropas vitoriosas da União durante a Guerra da Secessão (1861-1865).

A estátua equestre é um retrato excepcional da figura de Grant. Enquanto o gênero coloca os homenageados em posições combativas, como o Duque de Caxias de Victor Brecheret, o Grant do escultor Henry Shrady está encolhido, parece um tropeiro com frio. Assim era ele. Teve uma carreira militar medíocre, tentou a vida fora do Exército e faliu. Bebia mal. Ele comandava tropas do Norte quando chegou com o filho a um hotel de Washington e o recepcionista disse-lhe que só tinha quartos no sótão. Tudo bem até a hora em que ele assinou a ficha: “Ulysses S. Grant”.

Na cena da rendição dos rebeldes numa casa de Appomattox havia dois comandantes. Um chegou num bonito cavalo, com faixa na cintura e espada com punho de ouro cinzelado. O outro, com o uniforme amarfanhado (há quatro dias não o trocava) e as botas enlameadas. O bonitão era Robert Lee, que estava se rendendo e pedindo comida para seus soldados.

Desde jovem, quando participou da invasão do México, Grant impressionava pela sua capacidade de manter o sangue frio nos piores momentos de uma batalha e diante do massacre de suas tropas. (Isso numa pessoa que tinha horror a carne mal passada, pelo que viu no curtume de seu pai.)

Quanto maior a confusão, maior era a calma de Grant. Sua figura no meio da anarquia dos guardiões de Trump a foi mais uma homenagem ao general que botou os escravocratas do Sul de joelhos.

Grant foi eleito presidente e governou de 1869 a 1877. Um desastre. O general meteu-se com o papelório, e no fim da vida estava quebrado. Pagou suas contas escrevendo um livro de memórias. Ele e a mulher estão sepultados num mausoléu em Nova York, na altura da rua 122. O balcão de perfumes da Bloomingdale’s recebe mais fregueses num mês do que sua tumba do casal em um século.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, encantado com o legado da Olimpíada de 2016 e com o desenvolvimento imobiliário gerado pelo Porto Maravilha. O cretino adorou a ideia do prefeito Eduardo Paes de convocar um plebiscito para decidir o que fazer com a falecida ciclovia Tim Maia.

Eremildo propõe que no plebiscito sejam feitas mais duas perguntas:

Quem foi o responsável pelo desastre que matou duas pessoas e torrou R$ 45 milhões?

A prefeitura não tem mais o que fazer?

Baleia Rossi
O pelotão palaciano acordou para a possibilidade de o deputado Baleia Rossi ganhar a presidência da Câmara dos Deputados.

Mayrink, um artista
Gustavo Mayrink colocou um tesouro na rede. É o site “Geraldo Mayrink”, com dezenas de textos de seu pai, falecido em 2009, depois de mais de 40 anos de atividade jornalística.

Ele falava calado e escrevia como poucos.

As quatro primeiras frases de seu perfil do jogador Garrincha entraram para a história da maestria jornalística:

“Suas pernas formavam um arco. A esquerda, em que a deformação era mais notável, tinha seis centímetros mais que a outra. Já era um milagre que andasse. Inadmissível que jogasse futebol.”

Num tempo de más notícias, os textos de Geraldo Mayrink permitem um reencontro com a alegria de seus leitores.

Notas incorretas
No vídeo que mostra os guardiões de Trump no salão que fica debaixo da cúpula do Capitólio, eles se comportaram como respeitosos visitantes de um museu.

O vídeo que mostra o tiro dado por um policial na manifestante que estava do outro lado de uma porta, matando-a, foi coisa de seguidor do ex-governador Wilson Witzel.

(Em tempo: se os trumpistas de Washington fossem negros, os mortos da quarta-feira teriam passado da dezena.)

Macaco fora do galho
No dia em que o Brasil bateu a marca dos 200 mil mortos pela Covid, Bolsonaro avisou que se o Brasil não usar o sistema de voto impresso, terá os mesmos problemas que aqueles criados por Trump nos Estados Unidos.

Tudo bem. Seria o caso de ele combinar que na próxima epidemia o presidente do Tribunal Superior Eleitoral acumulará o cargo com o de ministro da Saúde. Certamente, ele não falará em cloroquina, “gripezinha” nem “conversinha” de segunda onda.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Elio Gaspari: fritada de morcego no menu

 

Ganha uma quem for capaz de mencionar uma fala de Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional na pandemia  

Ganha uma fritada de morcego do mercado chinês de Wuhan quem for capaz de mencionar uma só fala de Jair Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional desde o começo da pandemia do coronavírus.

Mesmo quando ele fez um arremedo de conserto, dizendo que, “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”, estava iludindo a boa-fé do público. Um dia antes ele havia dito que “não vou tomar a vacina e ponto final”.

A “gripezinha” e a cloroquina tornaram-se símbolos do amargo folclore do capitão. A eles juntam-se outros, como o estímulo ao desmatamento, as “rachadinhas” de Fabrício Queiroz e o orgulho de seu chanceler ser um “pária” no cenário internacional. Nunca na História do Brasil o trem parou e o maquinista queria andar para trás. Ele parava, mas se discutia quando voltaria a andar para a frente.

Há em Bolsonaro uma perigosa mistura de ignorância pessoal com autoritarismo político. Ele pode ter acreditado na gripezinha ou mesmo nos efeitos milagrosos da cloroquina. Chamou a possibilidade de segunda onda de “conversinha”, e na quinta-feira (17) voltou-se ao registro de mil mortes por dia. Talvez tenha apenas apostado, mas nesse caso estaria apenas exercitando a ignorância de outra maneira. O perigo mora na mistura com o mandonismo.

Bolsonaro irradiou esse comportamento pela sua administração, produzindo apenas uma bagunça arrogante. Por exemplo: em outubro o general-ministro Eduardo Pazuello disse que “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. No dia seguinte, Bolsonaro acordou cedo e respondeu no Facebook que a vacina “NÃO SERÁ COMPRADA”. Como se viu, será comprada e oferecida, pois o capitão ficou preso num cadeado do governador João Doria.

O general Pazuello disse a parlamentares: “Não falem mais em isolamento social”. Pensou que falava a uma plateia de tenentes. Ele perguntou “para que essa ansiedade, essa angústia?” e depois explicou que sua frase foi tirada do contexto, desculpando-se. É o caso de se perguntar qual medicação está tomando desde que teve alta da Covid.

Já um diplomata de carreira designado para embaixada junto à Organização das Nações Unidas em Genebra recusou-se a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu dizendo que não estava “mandatado” para isso. Tomou um contravapor do senador Major Olimpio e perdeu o cargo. Foi rejeitado por 37 votos contra 9. (Afora o mau português, podia ter respondido de outra forma, mesmo sem dizer nada.)

Trabalhando com um chanceler que se orgulha de ser “pária”, o embaixador levou a excentricidade para o lugar errado. A pandemia expôs a bagunça diante de uma dificuldade que daqui a pouco terá matado 200 mil pessoas. Os brasileiros ligam as televisões e veem cenas de imunização nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Arábia Saudita. Como lembrou Fernando Gabeira, só em Pindorama a vacinação virou tema de debate.

Eremildo é um idiota, nunca tomou vacina nem vai tomar. Por isso também acha que o Supremo Tribunal Federal tomou “uma medida inócua”.

O que o cretino não entendeu foi outra frase de Bolsonaro: "Quando se fala em vacinação e saúde, tem que ter uma hierarquia".

Eremildo torce para que o presidente explique como funcionará essa hierarquia e se dispõe a ir de casa em casa levando cloroquina para quem ficar de fora.

Fonte

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

No meio de uma pandemia e de uma recessão o Brasil ficou com um presidente sem partido, sem projeto e sem aliados



Bolsonaro ficará no Planalto, sem rumo, o que é perigoso


No meio de uma pandemia e de uma recessão o Brasil ficou com um presidente sem partido, sem projeto e sem aliados. Para quem não gosta dele, pode ser motivo de alegria, mas daqui a pouco vai se perceber como é perigosa essa situação.

O capitão Bolsonaro nunca foi um admirador das instituições democráticas. Em dois anos, falando em "minhas Forças Armadas", tentou armar conflitos com o Supremo Tribunal Federal e com o Congresso. Foi dissuadido, mas tentou. Tem um chanceler que se sente bem como "pária". Sempre que pode, arruma confusão com a China. Atravessou a linha do Equador para escorregar na casca de banana da política americana. Falava em "menos Brasília e mais Brasil" e nem a estatal do Trem-Bala conseguiu fechar. Prometia combater a corrupção e até hoje seu governo não explicou a origem do edital que torraria R$ 3 bilhões, mandando computadores para escolas públicas. Uma delas receberia 117 laptops para cada um de seus 255 alunos. Registre-se que a girafa foi denunciada pela Controladoria-Geral de seu o próprio governo.

O que seria uma nova política tornou-se um reaparecimento do centrão. É mais do mesmo. O novo resume-se ao fingimento daqueles que dizem acreditar na sua fidelidade.

A crise sanitária, os números da economia e o resultado da urnas mostraram que o negacionismo de Bolsonaro foi além das derrotas. Ele saiu de moda, mas ficará no Planalto, sem rumo. Presidente desorientado é coisa perigosa. Em julho de 1961 o tresloucado Jânio Quadros cogitava alguma aventura nas Guianas, onde existiria "intenso trabalho autonomista ou de emancipação nacional, com a presença de fortes correntes de esquerda, algumas, reconhecidamente, comunistas".

Nos dias 23 e 24 de agosto voltou à questão, dirigindo-se aos três ministros militares e referiu-se à ameaça do surgimento de uma "estrutura soviética" na Guiana Inglesa. No dia seguinte tentou a maluquice da renúncia.

Bolsonaro disse que a Covid era "gripezinha", não acredita nas urnas eletrônicas e admitiu que uma empresa americana fosse capaz de desenvolver um projeto de transmissão de energia elétrica sem fios. Lá atrás, ele teve uma ideia que permitiria ao governo arrecadar bilhões. Era a legalização da jogatina e em abril passado o economista Paulo Guedes, com seus currículo de Chicago endossou sugestão. (Eles a ouviram de um bilionário americano numa suíte do Copacabana Palace, à qual chegaram entrando pela cozinha do hotel.)

A onda de 2018 tinha um componente de irracionalismo que foi tolerado diante da soberba do comissariado petista. Em dois anos, Bolsonaro radicalizou a onda, tirou-lhe plumagem e saiu de moda, mas ainda não se produziu uma alternativa sólida. Apareceram sinais esparsos, mas eles só se juntam no respeito às instituições democráticas. É pouco, mas é o suficiente para conter aventuras e crises artificiais, até porque, em matéria do problemas, o Brasil tornou-se uma vitrine.

As crises artificiais podem ser barulhentas, mas destinam-se sempre a esconder os verdadeiros problemas. Como capitão e deputado do baixo clero Jair Bolsonaro foi um mestre na fabricação desse tipo de episódios e graças a isso chegou onde chegou e lá deverá continuar até o final de 2022

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Elio Gaspari: os comandantes e o tenente Andrea

Elio Gaspari

A cena, gravada em setembro num quartel da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, está na rede. O segundo-tenente André Luiz Leonel Andrea derruba e espanca uma mulher algemada (pelo menos sete socos e dois chutes). Outro PM segura a senhora enquanto ela é esmurrada, até que uma policial militar contém o oficial. O comando da corporação diz que só soube do episódio semanas depois e tirou o tenente do comando do pelotão da cidade de Bodoquena. Quanto à senhora, explicou o comando, era uma desordeira, estava bêbada e desacatou os policiais. Era por isso que estava detida e algemada. Admitindo que essa versão é verdadeira, só faltava que apanhasse porque foi comprar cloroquina.

Também está na rede outro vídeo, de março. Nele, o tenente Andrea explica à população de Bodoquena as regras do toque de recolher imposto pela pandemia. É outro homem. Fala pelo menos 15 vezes em leis ou decretos, cita a Constituição e, em 13 ocasiões, pede bom senso a todos. Vendo-o, sente-se uma ponta de orgulho pelo agente da lei.

A Polícia Militar não tem generais, mas há muitos deles na cúpula de um governo que estimula a violência do Estado num país de maricas. A eles e aos coronéis das Polícias Militares, cabe cuidar da ordem dentro de suas corporações. Qual tenente Andrea querem formar? O que fala em leis e bom senso ou o que esmurra uma mulher algemada?

Na tarde de 31 de março de 1964, o tenente Freddie Perdigão Pereira tinha 28 anos e comandava os tanques mandados para os portões do Palácio das Laranjeiras para proteger o governo do presidente João Goulart. Tornou-se um torturador do DOI e esteve nas cenas da prisão do deputado Rubens Paiva, em 1971, e do atentado do Riocentro, dez anos depois. Perdigão era um tipo alterado, mas virou o que virou pela tolerância e pelo estímulo dos comandantes militares da ocasião.

Passou o tempo, mudou o regime, e todo o entulho dos crimes praticados pela ditadura foi para a biografia de tenentes, capitães e majores. Fritaram a gaveta de baixo. Quando muito, disseram que os ampararam “sub-repticiamente”.

A violência policial já foi terceirizada com milícias particulares de empresas cujos diretores circulam em Davos dando aulas ao mundo. Na estrutura da segurança pública, ela continua no cotidiano das periferias das cidades ou em salas de delegacias e de quartéis como o de Bodoquena. Há anos ela se manifesta também nos motins de policiais militares que recebem o beneplácito de hierarcas e são invariavelmente perdoados por anistias votadas pelo Congresso ou pelas Assembleias Legislativas.

Será difícil convencer um jovem tenente a respeitar um preso se seus superiores levam semanas para examinar um vídeo gravado no quartel e protegem-no dentro do limite do possível.

Faz tempo, um oficial que fez fama num DOI caiu num comando do general Antônio Carlos de Andrada Serpa, e ele lhe disse que aquela função poderia trazer problemas para sua carreira. Em 2014, o oficial relembrou: “Eu respondi que fiz tudo direito, só recebi elogios e fui condecorado, portanto o Exército cuidaria de mim. Ele me disse: ‘Deus queira que você tenha razão’. Hoje eu me dei conta de que ele sabia do que falava”.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Elio Gaspari: muita briga e poucos objetivos, os males do governo Bolsonaro são

Bolsonaro deve mostrar seu jogo

Elio Gaspari 

Às segundas, quartas e sextas, o ministro Paulo Guedes briga com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Às terças, quintas e sábados, fazem as pazes. Todo dia, Guedes briga com Rogério Marinho, seu colega do Desenvolvimento Regional. Insatisfeito com as brigas que arrumou, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, insulta o chefe da Secretaria de Governo, general da reserva Luiz Eduardo Ramos. Do alto de sua erudição, num discurso em que se disse poeta e falou até em grego, o chanceler Ernesto Araújo disse ao mundo que “o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo, se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”. (Se o Brasil virou um pária, isso nada tem a ver com o discurso da liberdade.) Bolsonaro, o maestro dessa banda de música, briga com governadores, vacinas e colaboradores.

Faz tempo, diante da anarquia do fim do governo de João Figueiredo, o general Golbery do Couto e Silva dizia que uma pessoa pode ir para a rodoviária parando em todos os guichês, pedindo um desconto na passagem. Podia até conseguir, mas não podia deixar de dizer para onde queria ir. Olhando o mesmo quadro, Tancredo Neves queixava-se: “Ninguém joga só embaralhando. Tem que dar carta a alguém, e o Figueiredo não está dando carta alguma. Está com todas na mão”. (O tempo mostrou que o general não tinha mais carta, e Tancredo foi eleito presidente em 1985.)

Ganha uma viagem à Pensilvânia quem souber que cartas Bolsonaro tem. Talvez nem se possa dizer que embaralha as cartas. Ele as rasga. Rasgou Gustavo Bebianno, Sergio Moro, Santos Cruz e Luiz Henrique Mandetta. Marcou a do general Eduardo Pazuello.

Admita-se que o capitão tem o objetivo de se reeleger, com o apoio do Centrão e dos auxílios emergenciais. Para isso, precisaria que a eleição presidencial viesse rapidinho. Ela não virá, quem está a caminho é uma insegurança econômica bafejada pelo desequilíbrio fiscal. Com o emagrecimento da mística eleitoral que acompanhou sua vitória de 2018, resta-lhe a fidelidade do Centrão. Se ele pudesse, deveria marcar um jantar com Dilma Rousseff, ela acreditou nessa fidelidade.

Muita briga e poucos objetivos, os males do governo Bolsonaro são. Quem sabe onde foi parar aquele programa Pró-Brasil? Era pó e ao pó reverteu. Durante seu governo, o país foi infelicitado por uma pandemia que matou mais de 160 mil pessoas. Não foi ele quem trouxe o coronavírus, mas, em oito meses de angústia, dele não partiu uma só ação ou fala que contribuísse para a boa ordem sanitária. Ressalvem-se a rapidez e o alcance dos R$ 600 mensais que tiraram milhões de pessoas do caminho da fome. Essas medidas, contudo, não deram eficácia à cloroquina no combate à “gripezinha”.

Amanhã completam-se 116 anos da criação, no Rio de Janeiro, da Liga contra a Vacina Obrigatória. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro quer liderar um movimento parecido. Em 1904, muita gente boa, como Rui Barbosa, combatia a vacinação contra a varíola, que naquele ano mataria quatro mil pessoas na cidade. Em 1980 a Organização Mundial da Saúde certificou a erradicação da doença. No governo de Rodrigues Alves, o Brasil andou para a frente.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O quadrado do Supremo

Brasil não precisa que o STF entre numa guerra da vacina

Elio Gaspari

Com quase 158 mil mortos, depois de três ministros da Saúde, da cloroquina, da gripezinha e de outras tolices do curandeirismo político, o Brasil não precisa que o Supremo Tribunal Federal entre numa guerra da vacina. Países andam para trás. Passado mais de um século da Revolta da Vacina, o Brasil regrediu. Em 1904 o presidente Rodrigues Alves foi um campeão do progresso, inflexível na manutenção da ordem. Ao seu lado estava o médico Oswaldo Cruz, enfrentando políticos, jornalistas e militares, mais interessados num golpe de Estado que na saúde pública.

O presidente Jair Bolsonaro decidiu fazer da pandemia um instrumento de sua propaganda. Salvo poucos parlamentares excêntricos, alguns dos quais partiram para outra melhor, o Congresso manteve-se longe dos debates pueris. Pelo andar da carruagem, Bolsonaro está chamando o Supremo Tribunal Federal para a rinha: “Entendo que isso [não] é uma questão de Justiça, é uma questão de saúde acima de tudo. Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar a vacina. Isso não existe. Nós queremos é buscar a solução para o caso”.

O capitão tem direito às suas opiniões, mas o fato é que as atribuições do Judiciário estão definidas na Constituição e compete ao Supremo Tribunal Federal interpretá-la. Bolsonaro tem uma relação agreste com a Corte, e em maio passado ouviu-se seu brado de “vou intervir”. Viu que não tinha mandato nem cacife para isso.

Pode-se discutir se o presidente Luiz Fux fez bem ao dizer que a obrigatoriedade da vacina acabaria chegando a seu tribunal. O Supremo não está aí para avisar que vai decidir um litígio. Ele simplesmente decide. A Corte não é um assembleia para debate político nem uma consultoria (apesar de alguns de seus ministros gostarem do papel de consultores). É uma Corte onde os 11 ministros votam.

O quadrado constitucional do Supremo é específico. Seu poder emana de sua independência, e essa independência emana do distanciamento. Quando sai do quadrado, vira bancada, como a do boi ou a da bala. Os 11 ministros podem decidir, à luz do Direito, se uma vacina pode ser ou não obrigatória. Numa dimensão, quem não se vacina pode contrair febre amarela, sarampo ou Covid. Noutra, socialmente relevante, pode propagá-la. Onde acaba o direito de não se vacinar e começa a prerrogativa de contagiar?

A criação de um Fla X Flu com Bolsonaro de um lado e o Judiciário de outro pode atender aos interesses do capitão, mas é uma inconveniência constitucional. Quando o Supremo decidiu que os governadores tinham autoridade para criar regras de isolamento social, ajudou a salvar milhares de vidas. Vale lembrar que, à época, um dos paladinos da liberdade era o ministro-médico Osmar Terra. Ele achava que a pandemia mataria menos gente que a gripe sazonal.

Tudo indica que a obrigatoriedade da vacinação irá ao plenário do Supremo. Os ministros deverão decidir e argumentar com base no Direito e na Constituição. Quanto menos bate-bocas fora do quadrado, melhor para todo mundo. Um dia a Corte se reúne, cada ministro vota, a televisão mostra, e o caso está decidido.

Se Bolsonaro quiser criar uma crise, deverá buscá-la noutro lugar. Com ministros sem modos que insultam colegas, não lhe será difícil.



domingo, 25 de outubro de 2020

Coluna do Elio Gaspari

Um surto de mediocridade

Elio Gaspari 

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac

Sabe-se que Jair Bolsonaro dorme mal. No ano passado, ele revelou que penava 89 episódios de apneia por hora: “Detenho o recorde brasileiro.” Sabe-se também que instalou uma escrivaninha no espaçoso guarda-roupas do Alvorada e passa o tempo ligado nas redes sociais de sua estima.

Às 5h45m da madrugada de quarta-feira, o presidente continuava diante de seu computador quando respondeu a uma mensagem com um grito de guerra: “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. (...) Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a vacina.”

Estava aberta uma ridícula Guerra da Vacina.

Bolsonaro sabia que o Ministério da Saúde havia oficializado a sua intenção de comprar 46 milhões de doses da CoronaVac, que, nas suas palavras, transformou-se na “vacina chinesa do João Doria”. Desde que o vírus chegou ao Brasil, matando mais de 150 mil pessoas, Bolsonaro militou no exercício ilegal da Medicina com sua cloroquina.

Fritou dois ministros da Saúde e, com seu surto matutino, começou a refogar o terceiro. Nos seus gritos de guerra, anunciou que a “vacina não será comprada” porque “não abro mão de minha autoridade”. Parolagem. Horas depois, a Agência de Vigilância Sanitária (detentora da autoridade) informou que, como acontece com qualquer medicamento, autorizará a compra do fármaco que cumpra os requisitos científicos.

No rescaldo do surto, 11 palavras do general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz explicam a barulheira: “Falta de capacidade e organização interna” e “um nível de mediocridade extrema”.

Santos Cruz foi um dos 13 azes militares levados para o governo pelo capitão Bolsonaro. Os outros dois foram Hamilton Mourão e Augusto Heleno. Ele era o único a não ter se envolvido em episódios de indisciplina. Durou seis meses, dois dos quais em processo de fritura. Desde que saiu do governo, Santos Cruz tem sido um crítico raro, porém, pontual. Se quisesse, teria sido candidato à Prefeitura do Rio, mas afastou-se do cálice.

Quem entende o mundo dos generais garante que Santos Cruz é ouvido.

Uma grande História dos EUA

Está nas livrarias “Estas verdades — História da formação dos Estados Unidos”, da professora Jill Lepore, de Harvard. Com 866 páginas e quase dois quilos, vai de Cristóvão Colombo a Donald Trump. Lepore gosta da vida, de História e dos Estados Unidos. Isso faz com que sua produção tenha um discreto bom humor, levando-a a tratar de tudo, inclusive cinema e esporte.

Os personagens de “Estas Verdades” têm carne e osso. Ela olha para os magnatas, os poderosos, os negros, os índios e as mulheres. Em 1760, o fazendeiro George Washington consertou sua boca usando dentes de escravizados. (Pelo menos 43 deles fugiram e um combateu ao lado dos ingleses.

Da fazenda de Thomas Jefferson, fugiram 13). O futuro presidente acasalava-se com a escrava Sally Hemings, meia-irmã de sua falecida mulher. Na conta do erudito amante e senhor, ela só tinha um oitavo de sangue negro.

No século XVIII, as colônias americanas tiveram duas revoluções, uma contra o domínio inglês, outra contra a escravatura. Esta levou quase um século para prevalecer. O que levou os colonos a rebelar não foram apenas os impostos e a repressão, mas sobretudo a oferta da liberdade para os escravos.

Em 1776, um grupo de “subversivos”, segundo o filósofo inglês Jeremy Bentham, criou um estado “absurdo e visionário”. Em 1801, a Suprema Corte se reunia na pensão em que viviam seus juízes.

Lepore diz coisas assim: “A Inglaterra manteve-se no Caribe e desistiu da América.” Ou ainda, tratando da Guerra Civil: “O Sul perdeu a guerra, mas ganhou a paz.”

A grande nação americana foi construída também pelos movimentos dos trabalhadores, dos imigrantes e dos negros. “Estas verdades” vai mostrando essa história aos poucos, com um elegante domínio dos fatos: em 1776, quando foi proclamada a independência dos Estados Unidos, a temperatura na cidade de Philadelphia era de 11 graus; às vésperas da chegada de Donald Trump, era de 15.

Para Bill Gates, “Estas Verdades” é o “relato mais honesto e mais bem escrito que já li sobre a História dos Estados Unidos". Jill Lepore conta uma grande aventura e termina com certa ansiedade: “Uma nação não pode escolher seu passado, só pode escolher seu futuro”.

Recordar é viver

Deu no “The New York Times”: pelo menos 545 crianças cujas famílias tentavam entrar ilegalmente nos Estados Unidos estão em abrigos, sem que seus pais tenham sido localizados. No debate de quinta-feira, Donald Trump fugiu da pergunta durante vários minutos.

Essas coisas acabam passando despercebidas enquanto a vida segue, naquilo que parece ser uma rotina maior que pequenos dramas.

No dia 12 de dezembro de 1938, chegou a Londres um navio que transportava 200 crianças judias alemãs, entregues pelos pais para que fossem criadas por famílias inglesas. Até o fim da guerra foram mais de 10 mil. O filho de uma delas, Michael Moritz, tornou-se um milionário e doou 15 milhões de dólares para programas de ajuda aos pobres da Universidade de Oxford.

Nas semanas em que as crianças judias desceram em Londres, Josef Stalin assinou 30 listas com os nomes de cinco mil pessoas que deviam ser executadas e foi ao cinema do Kremlin ver uma comédia.

No Rio, Vargas posou para o escultor Leão Veloso e foi ao cinema ver “Corpo e alma de uma raça”.

Passou o tempo e a história de Nicholas Winton, o inglês que organizou o resgate está na rede, em vários vídeos. Quem quiser, poderá cultivar suas emoções por alguns minutos. O título de um deles é “Nicholas Winton, o herói anônimo da Segunda Guerra”.

Amy e Kassio

O ministro Gilmar Mendes não gosta que se façam paralelos entre a Corte Suprema dos Estados Unidos e o Supremo Tribunal Federal.

O que aconteceria com a escolha da juíza Amy Coney Barrett, indicada para o tribunal, se dissesse aos senadores americanos que seu marido trabalha lá, mas não sabe exatamente o que ele faz? E se o senador em cujo gabinete o cidadão está lotado, também não souber?

O desembargador Kássio Nunes Marques não soube dizer aos senadores o que sua mulher faz no gabinete do senador Elmano Férrer. Nem ele.

Nunes Marques explicou aos doutores que o custo de vida em Brasília é muito caro. Treze milhões de desempregados encaram o custo de vida sem salário algum, mas faça-se justiça: ela é economista e não advoga nas Cortes de Brasília.

Jesse Barrett, o marido de Amy, é advogado criminalista e trabalha numa banca em Indiana.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O nome do crime é milícia

Elio Gaspari 

Como o tráfico vai bem, o que se fez foi colocar na praça um novo bandido

A má notícia vem de um consórcio de pesquisadores: metade dos bairros do Rio de Janeiro estão ocupados por milícias. Um em cada três moradores da cidade vive em áreas controladas por essas organizações criminosas. A boa notícia está nas livrarias. É "A República das Milícias", do repórter Bruno Paes Manso, com um retrato da construção dessa ruína social.

Paes Manso mostrou como os justiceiros surgiram até de forma simpática: "Milícias de PMs expulsam tráfico". Isso em 2005, passaram-se 15 anos e a simpatia é atraída para a notícia de que na semana passada a polícia do Rio matou 12 milicianos.

Policiais expulsando traficantes de drogas em nome da benemerência era uma lenda urbana. Logo veio o controle das vans que faziam transporte ilegal de passageiros. (A Fetranspor, guilda dos empresários que faziam transportes legal, corrompia parlamentares e governadores.)

É difícil acreditar que Jair Bolsonaro não conhecesse a cidade em que vivia quando disse, em 2018, que "as milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando. Passaram a cobrar gatonet e gás".

Bolsonaro tinha no seu entorno o ex-sargento Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano da Nóbrega. Um está preso. O outro, foragido, foi queimado no interior da Bahia.

Pela lenda urbana 1.0 a milícia vendia segurança, cobrando de R$ 15 a R$ 60 por família no bairro que protegia. A milícia "desvirtuada"cobraria pelo gás ou pelo gatonet (cerca de R$ 50). É a lenda urbana 2.0. Mesmo deixando-se pra lá que cobram entre R$ 30 e R$ 300 dos comerciantes, em pouco mais de uma década, elas avançaram nos mercados de regularização de terrenos e de construções ilegais. Privatizam espaços públicos achacando camelôs e motoristas que estacionam seus carros.

Outra lenda urbana esteve na ideia segundo a qual as milícias combatiam o tráfico de drogas. Pode ser que isso já tenha acontecido, mas hoje elas toleram os traficantes ou se aliam a eles. Não é preciso ser um gênio para perceber que essa fusão é inevitável.

Quando Bolsonaro defendia os milicianos era apenas um parlamentar federalmente inexpressivo e municipalmente astuto. Hoje é o presidente da República. No seu estado ajudou a eleger um juiz que prometia "mirar na cabecinha" e foi afastado por mau uso do dinheiro da Viúva. O prefeito da cidade que persegue o apoio do capitão foi apanhado usando o dinheiro da Viúva para custear uma milícia que constrangia cidadãos insatisfeitos com a saúde pública.

Bolsonaro, como Wilson Witzel, elegeu-se com um discurso político de defesa da lei e da ordem. O governador do Rio perderá a cadeira e deverá batalhar para ficar solto. Bolsonaro e os generais da reserva que levou para o Planalto estão reciclando suas agendas moralistas. Para quem falava em segurança e combate à corrupção, a pesquisa das milícias e o livro de Bruno Paes Manso estão aí para mostrar que não adianta olhar para o lado.

A menos que se pretenda colocar mais uma lenda urbana na ciranda, a dos confrontos nos quais morrem os milicianos que expulsavam os traficantes. Como o tráfico vai bem, obrigado, o que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano. Como as milícias são quase sempre recrutadas na polícia, com a proteção de governantes, seria melhor olhar para dentro.

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

domingo, 18 de outubro de 2020

Coluna do Elio Gaspari


A filantropia de Ibaneis Rocha

Elio Gaspari

Até agora, a pandemia parecia ter provocado só um caso exemplar de filantropia: o Itaú Unibanco doou R$ 1 bilhão do seu patrimônio entregando sua administração a um conselho de notáveis. Da outra ponta, veio outro exemplo de filantropia, com o dinheiro da Viúva. O governador de Brasília, Ibaneis Rocha, homem abonado, doou 22,5 mil equipamentos de proteção sanitária ao município piauiense de Corrente, situado a 860 quilômetros do Distrito Federal.

Em maio, o prefeito de Corrente havia pedido dez mil luvas, mil aventais impermeáveis, cinco mil máscaras e 240 litros de álcool ao governador. A rede pública de Brasília estava sobrecarregada, e o estoque de equipamentos de proteção entrara em colapso em pelo menos dois hospitais. No dia 17 de julho, o governador oficializou a doação, e no lote iriam 12.560 máscaras. O pedido havia sido de cinco mil.

Em agosto, sem relação com esse caso, foram presos o secretário de Saúde de Brasília e seis de seus colaboradores. Com relação, o Ministério Público de Contas representou contra Ibaneis para que se investigasse a regularidade da doação, até mesmo porque foi feita sem licitação e sem a avaliação de sua conveniência.

Ibaneis Rocha foi criado em Corrente, tem três fazendas em municípios vizinhos e boas relações com o prefeito local, que é candidato à reeleição.

Pelo menos nove unidades da Federação viram seus governos metidos em malfeitorias com o dinheiro da saúde pública. Descobriram-se irregularidades nos hospitais de campanha do Rio de Janeiro e até a compra de respiradores pelo país afora, mas doação do que faltava num estado para mimar amigo de outro é coisa que só se viu em Brasília.

No dia 14 de setembro, a juíza Sandra Cristina Candeira de Lira, do Tribunal de Justiça de Brasília, intimou o governador Ibaneis Rocha para “esclarecer a dinâmica dos fatos” incluindo no “polo passivo da lide”. Em português: Ibaneis se tornou réu. Sabe-se lá como terminará essa história, mas a providência terá a virtude de expor os mecanismos desse caso singular de filantropia.

Ibaneis Rocha é um advogado e empresário bem-sucedido. Em 2018, declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 98 milhões. Em sua campanha, ele tinha o slogan “Pra Fazer a Diferença”. Fez.

Bolsonaro precisa se benzer

Num mesmo dia, Jair Bolsonaro repetiu que no seu governo não há corrupção e que a pandemia foi “superdimensionada”.

Quando o capitão falou em “dar uma voadora” nos corruptos, o senador Chico Rodrigues, vice-líder do governo, era apanhado com “um grande volume, em formato retangular, na parte traseira” de seu short. Eram R$ 15 mil. Reconheça-se que cada um pode guardar seu dinheiro onde bem entende. Resta saber de onde saiu o ervanário.

Logo depois da referência ao “superdimensionamento”, o governo francês decretou o toque de recolher em Paris e mais oito cidades. Portugal e a Espanha expandiram as medidas de controle social, e os Estados Unidos temem um agravamento da emergência sanitária. No mundo, já morreram mais de um milhão de pessoas, e no Brasil passou-se da marca dos 150 mil. Nas semanas seguintes à explosão, a bomba atômica matou cerca de 140 mil em Hiroshima.

Se não quiser falar menos, Bolsonaro pode procurar uma benzedeira.

Chico Stone

Assim como a cruzada de pernas de Sharon Stone no filme “Instinto selvagem” entrou para a história do erotismo cinematográfico, o vídeo do traseiro endinheirado do senador Chico Rodrigues entrará para a história da nova moralidade política, aquela que surgiu no rastro da campanha de Jair Bolsonaro, tendo como passistas Fabrício Queiroz e o governador Wilson Witzel.

Cuecas

Seguindo uma regra jurídica antiga, celebrizada pela fala do traficante carioca Elias Maluco ao ser capturado, em 2002 (“prende, mas não esculacha”), o ministro Luís Roberto Barroso mandou guardar num cofre o vídeo da apreensão da lingerie financeira do senador Chico Rodrigues.

Tudo bem, mas em 1949, o deputado Barreto Pinto foi cassado por quebra de decoro porque a revista “O Cruzeiro” publicou fotografias nas quais posava de “casaca e cueca.”

Barreto Pinto não tinha dinheiro na cueca e morreu garantindo que foi enganado pelo repórter David Nasser e pelo fotógrafo Jean Manzon, que haviam se comprometido a não publicar as fotografias de corpo inteiro.

Madame Natasha

Desde o dia em que Natasha viu o ministro Edson Fachin lendo uma longa citação do professor Edson Fachin num de seus votos no Supremo Tribunal Federal, a senhora acompanha com atenção suas falas.

Outro dia, ele votou num caso em que se discutia o direito de o presidente da República escolher os reitores de universidades federais entre os integrantes das listas tríplices que lhe são enviadas.

A lei diz que as universidades são autônomas e que as listas devem ter três nomes. O doutor disse o seguinte:

“Está em horizonte mais ampliado que a dimensão meramente vocabular o deslinde da controvérsia. Faz-se necessário reconstruir normativamente sua inserção no ordenamento constitucional brasileiro, entendendo, sobretudo, as especificidades de sua concretização no sintagma ‘autonomia universitária’”.

Natasha não entendeu o fachinês, mas o ministro esclareceu que a escolha do presidente deveria preencher três condições, sendo que a terceira seria de que “a escolha recaia sobre o docente indicado em primeiro lugar na lista”.

A senhora não entende como uma lista pode ser tríplice, devendo a escolha recair sobre o primeiro indicado. Para piorar, Eremildo, o idiota, contou a Natasha que, em 2016, Fachin achava exatamente o contrário.

O estilo Fux

Se o ministro Luiz Fux não polir seu estilo, corre o risco de inverter o milagre das bodas de Canaã, transformando vinho em água.

Com poucas semanas na cadeira de presidente do Supremo, comeu a jabuticaba que jogava relevantes questões penais para as turmas, mandando-as para o plenário. Em seguida, livrou a Corte da carga de ter libertado o chefão André do Rap.

Nos dois casos, o tribunal acompanhou-o. Num, por unanimidade, no outro, com um único voto contrário, o do ministro Marco Aurélio Mello. Ainda assim, é perseguido pelo rótulo de autoritário.

Como sairá dessa, só ele sabe. De qualquer forma, vale uma observação de Marcel Proust, um indiscutível conhecedor da alma humana: nossa personalidade social é uma invenção dos outros.

Ponte para Biden

Conhecidas libélulas que voam no eixo Brasília-Washington estão oferecendo seus serviços ao Planalto para a hipótese de uma vitória de Joe Biden.

Em geral, vendem terrenos na Lua em troca de bons negócios no Brasil. Relações diplomáticas são aplainadas por diplomatas profissionais, quando os governos os têm a seu serviço e confia neles.

domingo, 4 de outubro de 2020

Micheque entrou numa fria


Puseram Michelle Bolsonaro numa fria 

Elio Gaspari 

Ela, como acontecia com Maria Thereza Goulart e Rosane Collor de Mello, não administra o dinheiro dos programas a que empresta seu nome

A repórter Constança Rezende mostrou que o vírus dos áulicos capturou R$ 7,5 milhões que o frigorífico Marfrig doou ao governo em março para a compra de 100 mil testes rápidos para detectar o coronavírus. Testaram zero, e a história dessa maluquice é uma viagem ao mundo da burocracia, da bajulação e das espertezas.

Aos fatos:

No dia 23 de março, a Marfrig ofereceu o dinheiro à Casa Civil da Presidência da República.

A primeira encrenca. Dias depois, o Itaú-Unibanco fez o certo. Anunciou a doação de R$ 1 bilhão para o combate à pandemia sem colocar um só tostão na máquina do governo. Bolsonaro dizia que “brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”.

No dia 20 de maio, a Casa Civil informou que o dinheiro seria usado “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”. Levaram dois meses para processar a informação. Já haviam morrido 18.959 pessoas. O ministro Paulo Guedes dizia que tinha um amigo inglês capaz de fornecer 40 milhões de testes por mês ao Brasil.

Passaram maio e junho. A 1º de julho, a Casa Civil mudou de ideia e perguntou à Marfrig se o dinheiro dos testes podia ser usado no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao programa Pátria Voluntária, de Michelle Bolsonaro, mulher do presidente. Diante de tantos nomes bonitos, quem seria capaz de dizer não? A essa altura já tinham morrido 60.194 pessoas.

Juntaram-se dois erros. Num, o dinheiro iria sabe-se lá para onde. No segundo, caiu na velha cumbuca das obras assistenciais da mulher do presidente. Salvo no Comunidade Solidária de Ruth Cardoso, elas quase sempre foram uma fábrica de encrencas. Geridas por áulicos, aporrinharam as vidas de Maria Thereza Goulart e de Rosane Collor de Mello.

O dinheiro da Marfrig foi doado para a compra de testes, mas os çábios expandiram o alcance. Iria também para medicamentos, comida ou material de limpeza. Qualquer coisa, enfim. A Associação de Missões Transculturais Brasileiras, outro nome bonito, recebeu R$ 240 mil. No seu endereço funcionava um restaurante, mas seu presidente informa que, por ser uma associação, “só tem endereço fiscal”. Fica combinado assim.

Marquetagens e manobras burocráticas puseram Michelle Bolsonaro numa fria. Ela, como acontecia com Maria Thereza Goulart e Rosane Collor de Mello, não administra o dinheiro dos programas a que empresta seu nome. Usando-se a marca da mulher do presidente, atraem-se áulicos e espertalhões. Ao final, a conta vai para a senhora.

A Casa Civil informa que só a Fundação Banco do Brasil sabe o destino exato dos R$ 3,5 milhões da Marfrig. Se o dinheiro não serviu para testar pessoas, o caso pode servir para testar a capacidade do governo e do Banco do Brasil de dizer o que aconteceu com o ervanário. O Itaú-Unibanco sabe para onde foi cada centavo do bilhão que doou.

Minueto

Para a crônica da indicação de Kassio Nunes para o Supremo Tribunal Federal:

Jair Bolsonaro sinalizou há um mês que pensava num nome estranho à lista de favoritos de Brasília.

Na terça-feira, Gilmar Mendes tinha hora marcada com Bolsonaro para um encontro no Planalto. Foi o presidente quem mudou o local para a casa do ministro, levando consigo o futuro colega.

Esse minueto formalizou o beneplácito público de Gilmar Mendes à indicação.

Coisa inédita.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e resolveu atender ao pedido do presidente para tirá-lo da enrascada do Renda Bolsonaro. Mesmo apoiando todas as medidas de qualquer governo em qualquer época, o cretino achou que o avanço nos precatórios (e sua indústria) seria uma dose muito forte.

Com o arquivamento da tunga, o idiota resolveu mandar sua sugestão. Na conta de Eremildo o Brasil tem cerca de 500 mil pessoas presas por crimes que não envolveram violência e outras 500 mil condenadas em alguma instância, recorrendo em liberdade. Assim chega-se a um milhão de pessoas. Admitindo-se que estão sentenciadas na média a três anos de prisão, Eremildo propõe que o programa seja financiado pela Anistia Cidadã. Cada condenado paga R$ 1 mil por ano de condenação e extingue-se o processo. Seriam R$ 3 bilhões na veia do povo, como diria o doutor Paulo Guedes.

O idiota acredita que sua proposta é mais simples que as da ekipekonômika.

Guedes e Marinho

Os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho têm direito às suas próprias opiniões, mas não são donos dos fatos.

Como ministro da Economia, Guedes propôs a taxação do seguro-desemprego. Pegou mal e ele atribuiu a ideia a Marinho, que à época estava na sua equipe. Ele tornou-se um defensor delirante da ideia e não desmentiu a afirmação. Contudo, confidenciava que a girafa veio do circo de Guedes.

Passaram-se os meses e a ekipekonômika meteu-se em outra trombada, querendo avançar sobre os precatórios. Novamente, Guedes revelou que a ideia partiu de Marinho, atual ministro do Desenvolvimento Regional.

Há dois anos, Guedes tornou-se um çupeministro incorporando atribuições e repartições. Concentrar poder já é difícil. Repassar responsabilidade é impossível.

O mundo da $aúde

Desde que começou a pandemia, governadores e secretários de Saúde foram apanhados com a mão na bolsa da Viúva.

A operação Monte Cristo, do Ministério Público de São Paulo, bateu em empresas e associações de distribuidoras de medicamentos. Numa casa, acharam R$ 9 milhões em moeda corrente. Noutra, R$ 200 mil em sacos de lixo.

É só juntar lé com cré: não haveria político corrupto no setor de Saúde sem empresário pagando.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Porconazi faz discurso de caçamba de caminhão na ONU


Discurso de caçamba de caminhão

Elio Gaspari

Jair Bolsonaro abriu os debates da Assembleia Geral da ONU com um discurso de vereador em caçamba de caminhão. Defensivo, com momentos de delírio, viu-se “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”.

Faz tempo, quando um oficial brasileiro perguntou ao general americano Vernon Walters quais eram os interesses dos Estados Unidos na Amazônia, ele respondeu: “A Amazônia é de vocês, cuidem dela”. Walters conhecia o Brasil como poucos, chegou a percorrer de carro a Rodovia Belém-Brasília.

As imagens de satélites e as fotografias da floresta mostram que não se está cuidando direito da Amazônia. Bolsonaro, contudo, estava na sua realidade paralela. Falou mal dos outros, bem de si, de seu governo e reclamou do preço da cloroquina.

A retórica dos agrotrogloditas encurralou Bolsonaro, e hoje o setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar dele. Afinal, já houve épocas em que o governo brasileiro viu-se em posições canhestras no cenário internacional, mas D. Pedro II nunca saiu pela Europa defendendo a escravidão. Astuto, enquanto pôde, fechou o acesso dos estrangeiros à navegação na Amazônia. Fez muito bem, pois alguns burocratas americanos pensaram na possibilidade de mandar para lá seus negros. Esse foi um tempo em que o andar de cima nacional mamava no atraso, mas fingia que era inglês. Pela primeira vez, desde a chegada das caravelas portuguesas, o governo brasileiro está orgulhosamente apenso à agenda do atraso.

A fala de Bolsonaro foi antecedida por um pronunciamento do ministro-general Augusto Heleno que denunciou “nações, entidades e personalidades estrangeiras” com um “interesse oculto mas evidente” de “derrubar o governo Bolsonaro”.

A retórica defensiva de Bolsonaro para a ONU e a denúncia de Heleno indicam que houve uma mudança de ares no Planalto. Em maio, o capitão via-se desafiado pelo Judiciário e dizia “vou intervir”. Como e onde, nunca se soube, mas, na mesma linha, o general havia condenado uma iniciativa que “poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. No “vou intervir” estava implícita a ideia de que Bolsonaro dispunha de uma retaguarda, mas ela lhe faltou, e as “consequências imprevisíveis” ficaram momentaneamente no campo da fantasia. Naqueles dias os mortos pela Covid eram 18 mil. Hoje são mais de 130 mil.

Ao contrário do que pensam o general Heleno e almas inquietas do Planalto, não há ninguém querendo “derrubar o governo Bolsonaro”. O presidente tem contas a ajustar com o Judiciário por coisas que aconteceram antes de sua investidura e, ainda assim, seria exagero acreditar que desemboquem num impedimento. O verdadeiro jogo está na busca obsessiva pela reeleição, e nisso pouco influirão “nações, entidades e personalidades estrangeiras”. Tudo dependerá do desempenho do governo. Bolsonaro viu esse risco nos primeiros momentos da pandemia. Em março ele dizia: “Se a economia afundar, afunda o Brasil. E qual o interesse dessas lideranças políticas? Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”.

Luta-se pelo poder. Em maio, no ataque. Em setembro, na defesa.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle Bolsonaro?


Elio Gaspari

O Ministério Público não tem pressa e a pergunta virá muitas vezes

Em 2018 Jair Bolsonaro era o presidente eleito quando teve que explicar um depósito de R$ 24 mil feito pelo faz-tudo Fabrício Queiroz na conta de sua mulher. À época ele disse que esse dinheiro se relacionava com uma dívida de R$ 40 mil que o ex-PM tinha com ele.

O senador Flávio Bolsonaro conversou com Queiroz e deu-se por satisfeito: “Ele me relatou uma história bastante plausível e me garantiu que não há nenhuma ilegalidade.”

O vice-presidente eleito Hamilton Mourão acrescentou o essencial elemento de dúvida: “O ex-motorista, que conheço como Queiroz, precisa dizer de onde saiu este dinheiro.(...) Algo tem, aí precisa explicar a transação.”

Passaram-se dois anos e nada aconteceu de bom para os Bolsonaro. O depósito de R$ 24 mil podia até ser parte da quitação de uma dívida de R$ 40 mil. Mas o ervanário depositado pelos Queiroz foi de R$ 89 mil. Bolsonaro não gosta de ouvir essa pergunta, mas precisa se habituar a conviver com ela. A ideia de “meter a porrada” em quem a faz é inútil, porque ela virá muitas vezes do Ministério Público. Os procuradores não tem pressa, só perguntas e até hoje os Bolsonaro não contribuíram para o esclarecimento do que seriam seus rolos com Queiroz.

O que em 2018 eram movimentações financeiras estranhas de um faz-tudo virou coisa mais pesada. Onze servidores alocados nos gabinetes dos Bolsonaro faziam depósitos nas contas de Queiroz. Entre eles estavam a ex-mulher e a mãe do ex-PM Adriano da Nóbrega, um miliciano foragido, que foi morto numa operação policial no interior da Bahia. Queiroz nunca deu uma explicação convincente para seus rolos. Sumiu e apareceu na casa de Atibaia do advogado Frederick Wassef.

O doutor defendia os interesses de Flávio Bolsonaro. Todas as conexões de Queiroz tinham o aspecto comum às malfeitorias da pequena política do Rio de Janeiro, até que os repórteres Luiz Vassalo, Rodrigo Rangel e Fabio Leite revelaram que o doutor Wassef recebeu R$ 9 milhões para defender os interesses da JBS junto à Procuradoria-Geral da República e aos tribunais de Brasília. Em outubro passado, meses antes da manhã em que Fabrício Queiroz foi preso em sua casa, Wassef estava a serviço da empresa. Atravessaram a rua para entrar no caso Queiroz.

A JBS é hoje a maior empresa do país em receita, superando a Petrobras. Produzindo alimentos, ela foi uma das “campeãs nacionais” durante o consulado petista e tornou-se uma vaca leiteira para as criaturas que habitam aquilo que o doutor Paulo Guedes chamou de “pântano político, (com) piratas privados e burocratas corruptos”.

Em 2017 Joesley Batista, um de seus controladores, quase derrubou o governo de Michel Temer gravando uma conversa escalafobética que teve com ele para azeitar o acordo de colaboração que fecharia com o procurador-geral Rodrigo Janot.

Em 2018, quando o Coaf desconfiou das contas de Queiroz, puxando-se os fios chegava-se aos Bolsonaro, e às pizzarias de Dona Raimunda, mãe de Adriano da Nóbrega. Passaram-se dois anos, nenhuma pergunta foi respondida e, puxando-se o fio do ex-PM faz-tudo dos Bolsonaro, bateu-se em Wassef, que teve como cliente a JBS, uma das maiores empresas de alimentos do mundo.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Esse Enem será um massacre para os jovens pobres

Epidemia de descaso na educação 

Esse Enem será um massacre para os jovens do andar de baixo, e não há educateca ilustre preocupado com isso
Se faltasse uma cena capaz de mostrar que Brasília é uma ilha de fantasias e o governo de Jair Bolsonaro vive no mundo da Lua, mostrou-se perfeita a posse do professor Milton Ribeiro no Ministério da Educação. Os estudantes brasileiros estão sem aulas presenciais desde março e, em janeiro, 5,8 milhões de jovens que concluíram o ensino médio irão para o Enem sem o preparo necessário. A respeito dessa desgraça, nem uma palavra.

Ribeiro contou que sua Universidade Mackenzie foi a primeira a receber filhos de escravos e que estudou na rede pública. Bolsonaro lembrou que fez toda a vida em escolas da Viúva. Nenhum dos dois percebeu que, de acordo com dados de 2008, três em cada dez jovens que concluíam o ensino médio não tinham acesso à internet. Sem ela e sem aulas, resta saber como podem se preparar direito. Os jovens Milton e Jair provavelmente estariam ferrados no Enem de janeiro.

Esse Enem será um massacre para os jovens do andar de baixo, e não há educateca ilustre preocupado com isso. Sabe-se lá o que pode ser feito, mas a triste realidade é que eles nem fingem estar preocupados.

A única coisa que se fez foi colocar em circulação a cloroquina pedagógica do ensino à distância. Na teoria, resolve qualquer problema, na prática, resolve os problemas de alguns espertalhões.

Amanhã, Ribeiro estará sentado de ministro. Pode começar sua gestão perguntando como foi preparado o edital 013 de 21 de agosto de 2019. Ele mexia exatamente com a informatização da rede pública de ensino. Pretendia jogar R$ 3 bilhões para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks. A Controladoria-Geral da União apontou a maracutaia.

Repetindo: a Escola Municipal Laura de Queiroz, de Minas Gerais, receberia 30.030 laptops para seus 255 estudantes. Na Chiquita Mendes, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG), cada aluno ganharia cinco laptops. Duas das empresas que mandaram orçamentos ao FNDE enviaram cartas com o mesmo erro de português: “Sem mais, para o momento, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessária”. Noutra coincidência, as duas empresas pertenciam à mesma família.

O edital foi cancelado. De lá para cá, o FNDE (R$ 58 bilhões no cofre) teve três presidentes, e ninguém contou como o jabuti foi parar na árvore.

Ribeiro anunciou que é homem do diálogo. Pode começar perguntando de onde saiu o edital. Se sobrar tempo, pode tentar saber o que é possível fazer pelos jovens que ficaram sem aulas e não têm acesso à rede.

A delegada perdeu

Depois de mais de três anos de litígio, o juiz Elder Fernandes Luciano, da 10ª Vara Federal Criminal, absolveu o repórter Marcelo Auler no processo que lhe movia a delegada Erika Mialik Marena por ter publicado um artigo em que lhe atribuía possíveis vazamentos de informações relacionados com a Operação Lava-Jato. Mais: o juiz disse que “não é necessário prolongar a ação penal com instrução processual em virtude de poder reconhecer que o fato narrado evidentemente não constitui crime.”

Marena considerou-se ofendida e queria uma indenização de R$ 8 mil. Em 2016, a delegada da Polícia Federal conseguiu uma ordem judicial para tirar do ar dez reportagens de Auler. Um mês depois, a decisão foi revogada. Ela foi um dos pilares do período de esplendor da Lava-Jato em Curitiba e deu nome à operação. No filme “A lei é para todos”, Marena foi interpretada pela atriz Flávia Alessandra.

No dia 14 de setembro 2017, a delegada comandou a espetaculosa Operação Ouvidos Moucos, que investigava fraudes nas contas da Universidade Federal de Santa Catarina. O reitor, Luiz Carlos Cancellier, foi preso. Libertado, estava proibido de circular no campus da escola e escreveu um artigo contando “a humilhação e o vexame” a que foi submetido: “Uma investigação interna que não nos ouviu; um processo baseado em depoimentos que não permitiram o contraditório e a ampla defesa; informações seletivas repassadas à Polícia Federal.”

Sete dias depois, o professor matou-se atirando-se do alto de um shopping de Florianópolis.

O TCU inventou que pode tudo

Está nas livrarias “O soberano da regulação — O Tribunal de Contas e a infraestrutura”, dos advogados Pedro Dutra e Thiago Reis. É um trabalho jurídico, frio e devastador. Mostra como o TCU, um organismo que deveria assessorar o Legislativo como uma Corte de Contas, transformou-se num Tribunal, seus conselheiros viraram ministros e expandiram suas atividades, metendo-se em tudo. Atribuem-se poderes que nem o Supremo Tribunal tem. Por exemplo: avaliar a economicidade de uma praça de pedágio ou definir os “processos de desestatização”.

É um livro técnico, útil para ser discutido, sobretudo quando expõe que se formou um corpo burocrático interessado em “alavancar o potencial de controle do TCU em matérias regulatórias”. (Palavras de um documento de um braço da instituição.)

Faz tempo que o Tribunal de Contas vai além de suas chinelas, mas deve-se reconhecer que o chão de Brasília está cheio de cacos de vidros y otras cositas más. Foi o TCU quem detonou a maluquice do trem-bala durante o comissariado petista.

Rodrigo Maia

Quem conhece a Câmara acredita que o deputado Rodrigo Maia está caindo numa armadilha ao tentar se reeleger para a presidência da Casa.

Os inimigos que pretendem fritá-lo alimentam-no com a ideia de que conseguirá passar pelo Supremo Tribunal e terá os votos para a recondução. Enquanto ele acredita nisso, fica prisioneiro da agenda de todos os cleros da Casa.

Crise engorda

Quem já viu como as crises engordam mesmo em jejum, garante que o caso da representação dos comandantes militares contra o ministro Gilmar Mendes precisa ser descascado logo.

Nessas horas, quando alguém sugere esperar mais um tempinho, está apostando no agravamento da encrenca.

Alerta no Rio

Pelo cheiro da brilhantina, a Procuradoria-Geral entendeu-se com o Ministério Público do Rio e destravaram-se várias investigações que estavam travadas há meses.

Má notícia para pelo menos cinco desembargadores do Tribunal de Justiça.

Joe Biden

Se o Brasil tivesse chanceler, já teria seguido o conselho que John Bolton, o ex-assessor para segurança nacional de Trump, transmitiu pela repórter Beatriz Bulla: Bolsonaro deve abrir canais de conversas com a equipe do candidato democrata Joe Biden.

Essa é uma tarefa para a espécie de diplomatas que o ministro Ernesto Araújo detesta: experientes, relacionados e hábeis.

Biden pôs dois dígitos de vantagem sobre Trump e, ao contrário do que fez Hillary Clinton há quatro anos, flerta com os republicanos de centro com a mesma habilidade que Ronald Reagan cultivou os democratas moderados em 1980.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Bolsonaro avacalha a direita


Elio Golbery Gaspari

Em menos de dois anos o governo de Jair Bolsonaro avacalhou a direita e foi além, avacalhando até o atraso.

Com três ministros da Educação decapitados, cinco secretários de Cultura, "gripezinha" e piromania florestal, a charanga do capitão bateu no vexame do "doutor" Carlos Decotelli.

Um secretário da Cultura papagueando o nazista Joseph Goebbels e um ministro da Educação com currículo bombado desonram até o atraso. Não só pela apropriação dos títulos acadêmicos. Decotelli presidiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação no governo do capitão e na sua gestão construiu-se um edital viciado para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino.

A Controladoria-Geral da União impediu a consumação da maracutaia, mas ninguém explicou quem armou o golpe. Tratava-se de uma despesa de R$ 3 bilhões.

A direita brasileira já produziu grandes administradores como Carlos Lacerda (vindo da esquerda). Até o atraso deu ao país políticos notáveis, como Bernardo Pereira de Vasconcelos no Império. Ele foi à tribuna do Senado em abril de 1850 para dizer que havia "terror demasiado" em relação à epidemia de febre amarela. Morreu uma semana depois, de febre amarela.

No segundo turno da eleição presidencial de 2018 o candidato Jair Bolsonaro teve 58 milhões de votos.

Ali estavam eleitores que simplesmente não queriam a volta do PT ao Planalto e também conservadores que acompanhavam a vaga agenda do candidato. Era o jogo jogado.

No dia 1º de janeiro de 2019, feliz, esse eleitorado ganhou Sergio Moro no Ministério da Justiça. No pacote estavam também a contabilidade de Fabrício Queiroz, os delírios do chanceler Ernesto Araújo e, meses depois, os de Abraham Weintraub.

Essa paçoca não é conservadora nem de direita nem sequer atrasada, é chumbrega, inepta. Pretende ser um governo com militares, quando é acima de tudo um governo com uma milícia desconexa. Orgulha-se de ter equipado sua cúpula com generais e nomeia para o Ministério da Educação um doutor de titulação forçada por baixo de cuja mesa, na atual administração, passou um edital viciado de R$ 3 bilhões.

No século passado Carlos Lacerda dizia que o Serviço Nacional de Informações não funcionava às segundas-feiras porque naquele dia não circulavam os jornais matutinos.

O Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro não consulta os relatórios da CGU.

Decotelli não foi o primeiro hierarca a inflar currículo.

Para quem viu a passagem pela administração pública de grandes conservadores, muitos direitistas e até mesmo alguns ilustres representantes do atraso só resta parodiar os versos de Casimiro de Abreu: Oh, que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida / Da minha direita querida / Que os anos não trazem mais.