sábado, 26 de dezembro de 2020

O irrealismo trágico de Donald Trump


A cada dia, Trump se afasta mais da realidade e da decência. As próximas semanas, até 20 de janeiro, serão muito perigosas.

José Eduardo Agualusa

Quando dois universos paralelos colidem, o desastre é inevitável. O melhor exemplo de um desastre assim chama-se Donald Trump.

A saída passaria por isolar o epicentro da colisão, no caso esse espantoso alienígena cor-de-laranja. Não sendo possível remetê-lo de volta ao bizarro universo de onde escapou, um mundo semelhante ao nosso, mas no qual os valores estão invertidos — a verdade é a mentira, o bem é o mal, o feio é o belo, etc. —, seria desejável mantê-lo totalmente isolado e incomunicável. Eventualmente, enviando-o para a lua, ou para uma estação orbital sem qualquer comunicação com a Terra.

Caso contrário, existe um risco severo de contaminação. O alienígena acabará corrompendo e distorcendo o nosso próprio universo. É, aliás, o que está acontecendo. A reunião do passado dia 18, no Salão Oval da Casa Branca, juntando figuras como Sidney Katherine Powell, o general reformado Michael Flynn (condenado por ligações ao regime russo e depois perdoado por Trump) e Rudolph Giuliani (ao telefone), deverá dar origem a muitos filmes de ficção política nos quais os nossos netos se recusarão a acreditar. No momento mais dramático do encontro, Flynn, com o apoio de Powell, terá defendido pura e simplesmente um golpe de Estado. Outros conselheiros, ainda não contaminados pela irrealidade trumpeana, reagiram aos gritos. Antes ou depois disso (já me perdi), Trump divulgou um apelo a uma manifestação “selvagem”, agendada para o próximo dia seis de janeiro.

Conseguirá a nossa realidade resistir ao brutal assalto da irrealidade trumpeana? Não tenho a certeza. É certo que alguns dos conselheiros de Donald Trump ainda não foram totalmente engolidos pelo irrealismo. Esses reagiram, dia 18, gritando de terror. Sabem que quando tudo isto serenar (se serenar) responderão perante a justiça por terem colocado em causa a reputação de pessoas, empresas e instituições.

Diante de um vasto ciberataque, que poderá ter comprometido um número ainda indeterminado de computadores em diversos departamentos federais, incluindo o Departamento do Tesouro e o Departamento de Comércio, Donald Trump preferiu ignorar informações consistentes dos seus próprios serviços secretos, que apontavam o dedo à Rússia — acusando a China. Após a embaixada norte-americana no Iraque ser atacada por foguetes de fabrico russo, Trump ameaçou o Irã. Na passada quarta-feira, recusou-se a ratificar o pacote de ajuda para aliviar os efeitos da pandemia, dividindo ainda mais o seu próprio partido.

A cada dia, Trump se afasta mais da realidade e da decência. As próximas semanas, até 20 de janeiro, serão muito perigosas.

Joe Biden esforça-se por aparentar calma, mas por detrás de algumas das suas declarações mais recentes é possível perceber um princípio de pânico. Analistas tentam adivinhar os próximos passos de Trump. É como tentar prever a direção do voo de uma barata. Essa imprevisibilidade, ou irracionalidade, torna Trump ainda mais perigoso.

Esperemos que 2021 nos devolva tudo de bom que 2020 nos roubou — e que eu nunca mais volte a escrever sobre Trump. Seria um bom sinal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário