terça-feira, 29 de dezembro de 2020

O preço de nossa displicência histórica



Luis Felipe Miguel

Já derrotado, mas ainda solto, Crivella correu para inaugurar um inacabado Memorial do Holocausto no Rio de Janeiro. Eu fiquei sabendo do memorial umas semanas antes, graças a um anúncio de página inteira na Folha de S. Paulo, patrocinado por uma empreiteira.

Ninguém pode negar que o holocausto e suas vítimas devem ser lembrados. Mas é de se perguntar o porquê de empresas decidirem bancar a construção do memorial e do bispo Crivella ter se apressado a inaugurá-lo, ladeado por Fabio Wajngarten, o secretário de comunicação de Bolsonaro, que aproveitou a ocasião para alardear a proximidade entre o governo genocida ao qual serve e o Estado genocida de Israel.

Em um belo livro intitulado Le passé, modes d’emploi, Enzo Traverso observa que o holocausto é usado como uma ferramenta para fazer a apologia da ordem atual do mundo, apresentando o nazismo como “legitimação pelo negativo” do Ocidente liberal. Para isso, é preciso convenientemente esquecer como o colonialismo dos europeus, fruto legítimo deste mesmo Ocidente liberal, forneceu aos nazistas boa parte do seu repertório de morte e opressão.

(O mesmo Traverso, aliás, descreve com detalhes essa história, em outro belo livro, La violence nazie. Anterior à decantada obra de Losurdo sobre o liberalismo, mostra como é possível trata do tema com rigor e sem simplismos.)

Não é por acaso, portanto, que a contraface da memória do holocausto, retomado como Outro absoluto que só fala a nós pelo antagonismo, seja o esquecimento do passado colonial. Que se traduz também, nos Estados Unidos, como observa Traverso, pela conspícua ausência de locais de memória dedicados à escravidão.

Traverso fala dos Estados Unidos, mas é fácil pensar no Brasil. A memória da escravidão é apagada no país; os pequenos espaços dedicados a ela são absolutamente incompatíveis com sua importância, seu custo em sofrimento, seu significado para nosso passado e nosso presente – quando não eivados de ambiguidades, como é o caso do “Museu da Escravidão e da Liberdade”, de doce acrônimo MEL, também na cidade do Rio de Janeiro.

A outra ausência, ao lado da escravidão, é a ditadura. Como é sabido, o governo Temer iniciou e o governo Bolsonaro dá seguimento à ofensiva para inviabilizar a criação do Memorial da Anistia na UFMG, iniciativa tardia dos governos petistas que seria o marco da memória histórica daquele período.

Mas não se trata apenas, ou principalmente, de um museu. Um dos vários triunfos que a ditadura obteve no momento em que saía de cena foi bloquear o debate sobre si mesma, na sociedade brasileira que, dizia-se, caminhava então para o restabelecimento da democracia. O pouco que conseguimos fazer – como o trabalho da Comissão da Verdade – foi arrancado a muito custo, em meio a um cenário de hostilidade de uns e indiferença de outros.

O Brasil escolheu o caminho da “transição amnésica”, para usar a expressão que Traverso dedica à Espanha. É de se espantar, então, que tenhamos uma besta fascista ocupando a presidência? E que essa besta solte impunemente as atrocidades que falou em relação à presidente Dilma Rousseff?

O fato é que os militares que deixaram o poder em 1985, tão autoritários e antipovo como aqueles que o empalmaram em 1964, deram à impunidade e ao esquecimento de seus crimes uma alta prioridade – e os democratas, por cálculo míope ou simples comodismo, julgaram que não podiam ou deviam enfrentar a questão.

Maria Rita Kehl apresenta um veredito demolidor, no capítulo que assina na coletânea O que resta da ditadura: “Foi espantosa a displicência, diria mesmo a frivolidade, que caracterizou a maior parte do ambiente critico dos anos 1980: como se a ditadura por aqui tivesse terminado não com um estrondo, mas com um suspiro – já que os estrondos foram inaudíveis para os ouvidos dos que nada queriam escutar. Como se pudéssemos conviver tranquilamente com o esquecimento dos desaparecidos. Como se nosso conceito de humanidade pudesse incluir tranquilamente o corpo torturado do outro, tornado – a partir de uma radical desidentificação – nosso dessemelhante absoluto”.

Dez anos se passaram desde que estas palavras foram publicadas. E hoje o preço que pagamos por essa “displicência histórica”, como diz Kehl, está à vista de todos.

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