Já derrotado, mas ainda solto, Crivella correu para inaugurar um inacabado Memorial do Holocausto no Rio de Janeiro. Eu fiquei sabendo do memorial umas semanas antes, graças a um anúncio de página inteira na Folha de S. Paulo, patrocinado por uma empreiteira.
Ninguém pode negar que o holocausto e suas vítimas devem ser lembrados. Mas é de se perguntar o porquê de empresas decidirem bancar a construção do memorial e do bispo Crivella ter se apressado a inaugurá-lo, ladeado por Fabio Wajngarten, o secretário de comunicação de Bolsonaro, que aproveitou a ocasião para alardear a proximidade entre o governo genocida ao qual serve e o Estado genocida de Israel.
Em um belo livro intitulado Le passé, modes d’emploi, Enzo Traverso observa que o holocausto é usado como uma ferramenta para fazer a apologia da ordem atual do mundo, apresentando o nazismo como “legitimação pelo negativo” do Ocidente liberal. Para isso, é preciso convenientemente esquecer como o colonialismo dos europeus, fruto legítimo deste mesmo Ocidente liberal, forneceu aos nazistas boa parte do seu repertório de morte e opressão.
(O mesmo Traverso, aliás, descreve com detalhes essa história, em outro belo livro, La violence nazie. Anterior à decantada obra de Losurdo sobre o liberalismo, mostra como é possível trata do tema com rigor e sem simplismos.)
Não é por acaso, portanto, que a contraface da memória do holocausto, retomado como Outro absoluto que só fala a nós pelo antagonismo, seja o esquecimento do passado colonial. Que se traduz também, nos Estados Unidos, como observa Traverso, pela conspícua ausência de locais de memória dedicados à escravidão.
Traverso fala dos Estados Unidos, mas é fácil pensar no Brasil. A memória da escravidão é apagada no país; os pequenos espaços dedicados a ela são absolutamente incompatíveis com sua importância, seu custo em sofrimento, seu significado para nosso passado e nosso presente – quando não eivados de ambiguidades, como é o caso do “Museu da Escravidão e da Liberdade”, de doce acrônimo MEL, também na cidade do Rio de Janeiro.
A outra ausência, ao lado da escravidão, é a ditadura. Como é sabido, o governo Temer iniciou e o governo Bolsonaro dá seguimento à ofensiva para inviabilizar a criação do Memorial da Anistia na UFMG, iniciativa tardia dos governos petistas que seria o marco da memória histórica daquele período.
Mas não se trata apenas, ou principalmente, de um museu. Um dos vários triunfos que a ditadura obteve no momento em que saía de cena foi bloquear o debate sobre si mesma, na sociedade brasileira que, dizia-se, caminhava então para o restabelecimento da democracia. O pouco que conseguimos fazer – como o trabalho da Comissão da Verdade – foi arrancado a muito custo, em meio a um cenário de hostilidade de uns e indiferença de outros.
O Brasil escolheu o caminho da “transição amnésica”, para usar a expressão que Traverso dedica à Espanha. É de se espantar, então, que tenhamos uma besta fascista ocupando a presidência? E que essa besta solte impunemente as atrocidades que falou em relação à presidente Dilma Rousseff?
O fato é que os militares que deixaram o poder em 1985, tão autoritários e antipovo como aqueles que o empalmaram em 1964, deram à impunidade e ao esquecimento de seus crimes uma alta prioridade – e os democratas, por cálculo míope ou simples comodismo, julgaram que não podiam ou deviam enfrentar a questão.
Maria Rita Kehl apresenta um veredito demolidor, no capítulo que assina na coletânea O que resta da ditadura: “Foi espantosa a displicência, diria mesmo a frivolidade, que caracterizou a maior parte do ambiente critico dos anos 1980: como se a ditadura por aqui tivesse terminado não com um estrondo, mas com um suspiro – já que os estrondos foram inaudíveis para os ouvidos dos que nada queriam escutar. Como se pudéssemos conviver tranquilamente com o esquecimento dos desaparecidos. Como se nosso conceito de humanidade pudesse incluir tranquilamente o corpo torturado do outro, tornado – a partir de uma radical desidentificação – nosso dessemelhante absoluto”.
Dez anos se passaram desde que estas palavras foram publicadas. E hoje o preço que pagamos por essa “displicência histórica”, como diz Kehl, está à vista de todos.
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