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segunda-feira, 12 de abril de 2021

Uma revista cínica

Criatividade é essencial

Uma revista se chamar Piauí constitui, em si, algo cínico. A partir do próprio nome mesmo, por levar o nome (eu consigo ver os risinhos) de um estado que nela não estará contemplado.

O fato de essa revista ser mantida por banqueiros bilionários (eles são donos do Itaú), a pautarem nossa elite cultural tão complacente com o poder econômico, duplica esse cinismo.

Dar espaço para uma jornalista cínica que, anos depois, quer glamourizar a notícia cínica do Caetano estacionando no Leblon significa multiplicar o cinismo por dezenas de vezes.

Levarmos isso a sério, em plena pandemia, significa a naturalização do escárnio. É como se permitíssemos que os irmãos banqueiros debochassem das nossas caras. E ainda comemorássemos.

Tem muita gente séria neste país que nunca ganhará esse espaço. Jamais. A repórter é cínica, o editor é cínico e é tão triste perceber que nossa primeira reação não é a de deplorar esse deboche.

sábado, 27 de março de 2021

Maria da Graça Meneghel, empresária

Alceu Castilho

Uma das coisas curiosas em relação a cidadã Maria da Graça Meneghel, recriada como Xuxa, é que mesmo as pessoas no campo crítico continuam tratando-a apenas como se fosse a "rainha dos baixinhos", uma eterna apresentadora de televisão, no máximo fazem referência à encarnação anterior dela, como modelo.

Xuxa é uma capitalista. Uma empresária. Com uma vasta capivara relativa a essa condição — de dona de empresas.

Uma singela busca em um nome como Parque da Xuxa mostra tentáculos dela com a Justiça que a amante dos animais talvez queira esquecer. Antes Parque do Gugu, depois Parque da Mônica, o empreendimento no SP Market, em São Paulo, era gerido pela Lar's Empreendimentos (hoje na mão de outro grupo empresarial), que chegou a ser condenada por forjar a extorsão de um advogado — um cliente que tivera problemas no parque.

Outro braço da empresária (essa condição eterna de apresentadora apenas infantiliza o debate) era o Xuxa Water Park, que teve sérios problemas com o Ibama. A amiga dos animais queria construir o parque temático em uma área no litoral paulista, em Itanhaém, que era, segundo o Ibama, "abrigo de fauna e flora silvestre ameaçadas de extinção".

Jornalistas que não queiram apenas ser caixa de ressonância de um debate pueril podem também checar as aventuras da Xuxa International Corporation pelo mundo. Dica: fica nas Ilhas Cayman. Em 2005, durante uma investigação sobre lavagem de dinheiro, a PF ficou intrigada com uma movimentação de US$ 27 milhões da empresa. "Não trabalhamos com doleiros brasileiros", disseram os advogados dela na época. "Se alguma empresa que fizemos pagamentos usou a Beacon Hill, paciência". (A Beacon Hill era uma conta de doleiros.)

Xuxa tem e sempre terá vasto direito à defesa em relação a esse e quaisquer outros casos relativos às suas empresas. Até pela capacidade de pagar advogados gordos que os frequentadores de penitenciárias — aqueles que ela quer ver como cobaias — não costumam ter.

O que não pode acontecer é que, além de advogados graúdos, ela seja protegida por nossa imprensa miúda, como se fosse apenas uma moça sapeca com vozinha de criança. 

Não, meus senhores e minhas senhoras. Xuxa é uma "International Corporation". A voz dela é bem mais grossa.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

100 anos de podridão


Bem sintomático que a edição narcisista de hoje da Folha, sobre seus cem anos, tenha como principal personagem (excetuado o próprio jornal...) o deputado lombrosiano Daniel Silveira.

O jornal que se propõe a corrigir um erro de grafia de cem anos atrás — um cisco, um detalhe irrelevante — é o mesmo que não consegue ver uma trave sobre seus olhos: o papel que teve, nas últimas décadas, na promoção desse tipo de personagem infame.

Penso tudo isso em meio às centenas de lambidas de bolas (não me ocorre expressão melhor que lambidas de bolas, se alguém se incomodar por eu escrever lambidas de bolas pode pular este trecho sobre lambidas de bolas) de jornalistas, leitores, empresários — como se o jornal não tivesse tido, por sua vez, cem anos de infâmia, em meio a um ou outro espasmo de dignidade.

O Brasil é hoje o Brasil desses Silveiras e Carluchos e coturnos porque a família Frias foi suficientemente abjeta, assim como os donos dos demais grandes meios de comunicação do país, para aceitar a barbárie como saída para seus objetivos empresariais. Não à toa, na entrevista chapa-branca de Luís Frias, feita por Fernando Canzian, o dono do jornal minimiza hoje, 19 de fevereiro de 2021, hoje, a perversidade da política econômica do governo Bolsonaro. "Todo o resto foi horroroso", diz ele.

A aliança entre capitalismo e barbárie está posta há alguns séculos, desde o início desse modo de produção, mas nos países que comandam este planeta sob implosão muitos donos do poder ainda preservam certos modos, certas aparências. Aqui, não. Um deputado elogia um torturador enquanto ajuda a depor uma presidente honesta e gente como Frias não vê maiores problemas — deixa o barco rolar, enquanto o esgoto e os ratos infestam a proa e a popa e os canhões.

Como jornalista, boa parte das histórias mais sórdidas que ouvi de colegas (sobre chefetes e patrões e assédios) foram relativas ao grupo Folha. Tenho amigos que trabalharam lá e sobreviveram mentalmente. Muitos colegas aderiram àquele mundinho, àquele jeitinho cínico e àquela face yuppie (o termo é ultrapassado, mas se encaixa bem ainda hoje), àquela visão de jornalismo supostamente isentona, recheada de números caudalosos e falsas simetrias e de um nariz cultural empinado — poseur.

Portanto não vou dar parabéns coisa nenhuma para essa corja, claro. A imprensa burguesa do Brasil é um lixo, uma coisa abaixo da crítica para os padrões da própria imprensa burguesa, o que nós temos aqui é uma cumplicidade com os coturnos e motosserras e capitães-do-mato, uma extensa condescendência com os donos do capital e de terras, um exercício de celebração desta nossa plutocracia cafona e genocida.

Não adianta encher o Conselho Editorial de mulheres e ampliar o leque de colunistas para parecer inclusivo. Um jornal que não seja violento, em um país violento, precisa ser mais incisivo em relação às manifestações diárias dessa violência. Os camponeses e moradores da periferia, de um modo geral, só entrarão nessas páginas centenárias para cumprir tabela ou quando estiverem suficientemente treinados para participar desse festival de bajulações, não somente ao próprio jornal, mas ao sistema que ele banca.

Um sistema e um jornalismo excludentes, sim, e muito mais próximos, sim, dos grunhidos do Daniel Silveira do que possam supor suas publicidades infinitas.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Quantos mortos são necessários para que jornalistas chamem genocídio de genocídio?


Alceu Castilho

No ano passado, no De Olho Nos Ruralistas, criamos uma editoria chamada De Olho no Genocídio.

Com esse nome: genocídio. Por que tanta gente resistiu e resiste tanto a dar o nome preciso?

Quantos mortos são necessários para que jornalistas chamem genocídio de genocídio?

Em meio à cobertura, busquei, como editor, ser ainda mais específico: cobrar cada ministro por seu papel na matança.

A série se chamou Esplanada da Morte. (Uma pessoa da equipe achou o nome forte demais. Todos os demais acharam que era isso mesmo.)

Mas... bem. Eu não acho que nossa bolha supostamente mais indignada tenha dado a repercussão devida ao material que produzimos.

De lá para cá, mais morte, mais genocídio. Com a assinatura desses ministros e de Bolsonaro e de outros personagens que (eu fiz questão) apareceram como cúmplices: os ministros do STF, o presidente da Câmara, o presidente do Senado.

Mas até agora não caiu completamente a ficha nos campos da resistência. Nem em nossa bolha.

Bolsonaro é um psicopata cercado de outros psicopatas. E agirá como tal — sem freios e sem remorsos.

Fux e Maia precisam ser cobrados com a ênfase devida. Suas prisões (com esse nome), solicitadas. Eles precisam ser escrachados. Pressionados para que a punição internacional de cada um seja ainda maior — caso continuem a não fazer nada — do que aquela já merecida.

Seus nomes precisam ser conhecidos mundialmente.

Os jornais estrangeiros não podem falar apenas de Bolsonaro.

Ele existe porque existe também Fux, o Genocida. Maia, o Exterminador. Alcolumbre, o Capanga. Toffoli, o Fiador.

Mas tudo bem que se comece com Fux e Maia.

Com quem está no topo dessa cadeia da morte. Não apenas brasileira, como se vê.

Eles são criminosos de porte internacional. Que respondam por isso.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O Brasil está o quê?

Alceu Castilho

"Chefe, o Brasil está quebrado".

Algumas frases têm farta chance de entrar para a história. Negativamente. Basta uma palavra mal escolhida.

O Brasil está o quê?

"Quebrado", diz Bolsonaro. 

Fico a imaginar o presidente em um treinamento de mídia, repleto das próprias razões, a considerar suas soluções espontâneas melhores que as sugeridas pelos profissionais da comunicação.

E dizendo: "O Brasil está quebrado. Quebrado".

Os treinadores se olhando, coçando a cabeça, procurando um jeito de contar a ele que algumas palavras nunca devem ser ditas. "Presidente, veja bem..."

"O quê? Eu disse uma mentira?"

"Não, presidente, é que talvez isso não seja conv..."

"Está quebrado, pô! Eu não consigo fazer nada!"

"Sim, presidente, é que isso não se diz".

"O Brasil está quebrado! Culpa minha? Não. Culpa dessa imprensa. Dessa Folha de S. Paulo que não quer que eu governe".

"Presidente, essa parte da imprensa é boa, mas..."

"Mídia sem caráter! Com interesses escusos!"

"Certo, presidente, vamos desenvolver isso de uma forma, então, que não soe como se o senhor fosse o responsável por uma frase tão forte como aquela do início".

"Que frase? O Brasil está quebrado, pô".

"Quebradinho da silva".

"Que-bra-do!"

"Onde foi que vocês não entenderam isso daí?"

"O Brasil está quebrado e eu não consigo fazer nada, o Brasil está quebrado, chefe!"

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Os jornais impressos estão morrendo e isso não é boa notícia


Tendência da década: o fim dos jornais impressos.

Hoje a Folha chegou aqui em casa com 24 páginas. E sem publicidade.

(A rigor o jornal traz dois editais de leilões de imóveis e um comunicado igualmente pequeno da Vivo. E apenas um quadradinho de divulgação de óbito. Absolutamente nenhum anúncio propriamente dito, anúncio de empresa ou governo, aquilo que financiava os jornais.)

Isso a Folha, uma das únicas candidatas a entrar sujando nossos dedos na década de 30, junto com O Globo. O Estadão e tantos jornais regionais moribundos ficarão, no máximo, com suas plataformas digitais.

Nada disso é necessariamente positivo. Pois não existe vácuo na política (e jornais fazem política). Esse vácuo já está sendo ocupado por gente pior ainda que os donos dos meios de comunicação brasileiros — aquela nossa velha oligarquia estúpida e golpista.

Apenas residualmente os veículos pequenos se esgueiram nesse cenário. E somente uma fatia desses veículos pequenos são comprometidos com o que de melhor fazia o jornalismo (quando fazia), por exemplo a defesa de direitos elementares, com uma ou outra prática civilizatória.

Influenciadores, em sua imensa maioria, não têm compromisso nenhum com certos modos da imprensa burguesa. Estão inseridos de forma egoica na sociedade do espetáculo sem aquelas preocupações, aqueles pruridos e aqueles disfarces. E sem, como já aconteceu e não mais acontece, um mínimo de influência dos trabalhadores que faziam os jornalões, de gráficos a jornalistas.

A Folha de S. Paulo de hoje tem 24 páginas e quase nenhuma delas relevante. À exceção de um texto sobre idosos e Covid, destacado na capa e escanteado na página interna, temos de fazer um exercício para localizar algo que seja próximo do que um dia chamamos de notícia ou reportagem. Algo que fique, algo que suscite, algo que nos arrebate e faça diferença para o debate público.

E a tendência é que tudo isso piore. Piore nos jornais e piore nas redes sem contenção (alguns veem nisso pura democracia) que construímos, no mesmo tecido caótico onde foi erigida a cultura do ódio e dos cancelamentos. Aquilo que circula no whatsapp dos tiozões é a escória daquilo que criticávamos — mais ou menos como se tivéssemos de sentir saudade dos sequestradores anteriores.

Enquanto isso, os setores contra-hegemônicos continuam a se preocupar muito pouco com comunicação. Muitos estão convictos de que, de quatro em quatro anos, em meio a esse cenário estarrecedor, virá muita coisa boa, algo redentor e politizado e libertador e poético.

Não, não virá. Se deixarmos a disputa pela comunicação no ponto morto, à deriva, estaremos lutando com carrinhos de choque (aqueles dos parquinhos) contra veículos rebaixados — a regressão também é estética, afinal — e armados até os dentes.

Imaginem o naipe de cada piloto dessa frota fascista. E adivinhem de que lado nossas togas cafonas ficarão.

Seremos esmagados.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Se viralizou, boa coisa não é

 Alceu Castilho

Cheguei a um ponto da carreira (e de um estado de desânimo em relação à humanidade) que quando um texto meu viraliza muito eu me pergunto: "Será que errei em algo?"

Digo isto em relação a uma publicação escrita na madrugada de ontem, no embalo do Fantástico, sobre o professor de Zootecnia em Minas que, segundo o Ministério do Trabalho, escravizava uma mulher chamada Madalena. E que, em uma tese de doutorado, escreveu: "Aos suínos, meu eterno respeito”.

(Não que o post original tenha viralizado tanto. Mas a publicação de um sociólogo dando crédito a um certo @castilhoalceu, meu perfil no Instagram, rede onde nunca publiquei nada, sim.)

***

Eu me pergunto se errei em algo porque os fenômenos de viralização costumam estar vinculados a certo efeito de manada, acrítico. Não necessariamente, é bem verdade. Mas em muitos casos, sim. Certamente o professor Dalton terá de se ver com a Justiça, mas fico a pensar se não ajudei a sociedade a saciar sua necessidade cíclica de se proclamar civilizada. Como se, em uma sociedade especificamente sem Daltons (e seus irmãos de fé), fôssemos nos tornar melhores.

Em princípio a ideia do texto era soar humanista. Mostrar que o professor que explorava uma mulher negra não se lembrou dela em um momento-chave. Preferiu agradecer aos porcos. Teve gente que pensou no documentário "Ilha das Flores". Houve até quem invocasse George Orwell. (O máximo que fiz foi me lembrar do "Animals" do Pink Floyd.)

Mas aí li muito comentário desumanizador. Como se a reação civilizada fosse pendurar o professor em algum poste, arrancar dele  qualquer resquício de dignidade. E nessas horas eu temo, sinceramente, que uma crônica sobre as dedicatórias de um doutor escravista possa ter soado parecida com a vociferação de algum Datena qualquer, tenha dialogado excessivamente com o jornalismo cão — já que estamos no campo das metáforas bestiais.

*****

Claro que avaliar depois o resultado do que escrevemos pode soar injusto em relação às motivações. De qualquer forma eu me sinto não arrependido, mas cabreiro. Por que tanta coisa elaborada que a gente escreve, sem algum vilão definido no discurso, ganha repercussões pífias? Por que textos com nuances, com reflexões supostamente mais sutis (nesse caso até tive alguma pretensão nesse sentido, não sei se bem sucedida) entram em um limbo das publicações, mesmo entre pessoas acostumadas a raciocínios mais elaborados, mesmo em nosso acanhado campo da resistência?

Até porque, como escrevi no texto sobre Madalena, a família Dalton é uma família de classe média. Sim, ele é um professor universitário, o que torna a história mais macabra. Mas não é — apesar da violência explícita que protagonizou — o representante mais exato de nossas elites genocidas. E eu creio (sinceramente creio) que precisamos tomar as elites genocidas como alvos preferenciais de nossas exclamações e mobilizações e protestos.

(Espero que ninguém distorça o texto. Sou a favor de uma punição dura para esse senhor e aquelas senhoras. Mas que seja reparadora, em termos financeiros. E sou a favor de que sejam discutidas políticas públicas de prevenção. Que voltemos a discutir a miséria e a fome e a infância e a exploração do trabalho, para muito além de casos caricaturais.)

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Sei que tudo isso soa muito rabugento. "Alceu nunca está feliz". (Este texto não será viralizado e ninguém dirá que @castilhoalceu nunca está feliz.) E, bom, é isso mesmo. Nós, eremitas e leitores vorazes do "Lobo da Estepe", podemos até nos sentir injustiçados em relação a certas hostilidades e invisibilidades (tanta gente por aí sem ter o que dizer com tanto espaço) intrínsecas a esta nossa sociedade adoecida, mas ao mesmo tempo... desconfiamos.

Essencialmente desconfiamos. Não deixo de reconhecer que o mundo e este país implodido precisem de reações mais contundentes em relação à desigualdade estrutural. Que passa pelo racismo. Em algum momento, porém, desconfio que esta nossa gramática não seja exatamente o contraponto devido ao massacre — a partir do momento que seja percebida também como massacre, e não algo que contribua para algum resgate civilizatório.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Direita nadou de braçada na eleição e esquerda acha que ganhou

Alceu Castilho

Como estou em dia sincericida, vamos lá: é assustador o quanto a esquerda brasileira enxerga o país a partir de sua bolha urbana.

Não, gente, o PSOL não venceu as eleições. O PSOL elegeu 89 dos 58 mil vereadores espalhados pelo Brasil.

Vou repetir: 89. De quantos? 58 mil. Porcentagem: 0,15%.

Essa renovação ocorre principalmente em determinadas capitais do Sudeste, Sul e Nordeste. Espalha-se por algumas cidades das regiões metropolitanas, algo do interior paulista. E só.

Nem tudo é negativo (Boulos é, de fato, uma novidade na política brasileira) e não é preciso se jogar na linha do trem, mas também não é o caso de hipertrofiar o caminho eleitoral de forma redentora — porque o que continua a vir aí é chumbo grosso.

Literalmente. A quantidade de gente violenta eleita ao longo do país deveria nos soar como assustadora. Muito legal acenarmos para um país que eleja mulheres negras e transexuais, mas isso significa exatamente uma mudança para quando? Décadas?

Até lá essa gente violenta terá destruído a Amazônia e o Pantanal e acabará de destruir o Cerrado. E o clima e o planeta.

Estamos a comemorar de forma hipertrofiada (sim, comemoremos) as migalhas e a esquecer o conjunto da obra — esse país extraordinariamente desigual e violento e não exatamente configurado a partir de uma ou outra ilha civilizatória.

Durante algumas semanas, como editor do De Olho nos Ruralistas, tentei emplacar algumas pautas sobre esse país dos grotões. Essas pautas, sinto dizer, foram solenemente ignoradas. Por quê? Porque o país se lixa — a esquerda inclusive se lixa — para os povos do campo, para a centralidade da questão agrária na formação de sua identidade. Urbana inclusive.

No domingo fizemos cinco lives em uma, das 17 às 22 horas, para algumas testemunhas. Para discutir o quadro eleitoral no conjunto dos 5.570 municípios (para além de nossas bolhas), impacto da eleição na Amazônia, contexto mundial etc. Bloco menos visto? Aquele com os povos do campo: uma quilombola, um indígena, uma camponesa.

Precisamos deixar de fazer inclusão para inglês ver. Ou para aplacar nossa consciência de classe média subserviente ao poder, ao poder de fato, o poder dessa violência patrimonialista de 500 anos, reciclável, uma reciclagem que ocorre também a partir dessa nossa distração estatística — a de enxergar enxurrada onde a mudança acontece a conta-gotas.

Por aqui eu votei nas indígenas do Jaraguá e elas não foram eleitas. Em Porto Seguro a candidata do PT renunciou, a mando do governador e do senador, esses líderes que a gente sintomaticamente chama de caciques (no país do voto de cabresto e do curral eleitoral), para desespero do candidato a vice, um cacique de fato, um indígena. E o candidato apoiado pelo governador e pelo senador, no fim das contas, foi derrotado.

Vivemos uma Síndrome de Estocolmo da realpolitik. A gente começa a chamar um canalha como Eduardo Paes de Dudu na mesma medida que chama ácido de "doce" ou drogas sintéticas de "bala". A gente infantiliza a violência e age como avestruz, como se não estivéssemos vivendo um golpe, como se não estivéssemos assistindo a um genocídio, como se não vivêssemos em um país que celebrou torturadores e passou a se mover sob o signo das arminhas.

O que queremos ser? O Barroso? Incorporar essa falsa polidez, essa condição de arautos do bem estar, vestais do otimismo (enquanto ele e os colegas legitimam a barbárie), desenvolver aquele rosto corado, a fazer de conta que toda a violência absurda que vivemos no campo e na cidade não esta aí, com a boca escancarada e cheia de dentes, deflagrada por aqueles mesmos com quem a gente passa a pactuar? Em que momento exato a gente passou a acreditar na tal "festa da democracia"?



quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Cinco minutos para Hitler, cinco minutos para os judeus

 
A manchete da Folha: "Bolsonaro se defende na ONU sobre pandemia e queimadas".

Sei que já citei algumas vezes a frase do Godard sobre jornalismo televisivo, mas vale lembrar sua crítica às simetrias indefensáveis: "Cinco minutos para Hitler, cinco minutos para os judeus".
Diria a Folha, em 1939:

"Hitler se defende na Liga das Nações sobre holocausto e câmaras de gás".

E por aí vai. Bolsonaro elogia Ustra. Bolsonaro mede quilombolas em arrobas. Bolsonaro diz que vai metralhar petistas. Bolsonaro defende cloroquina.

E a gente naturaliza a truculência a partir de sua aceitação discursiva. O uso indevido dos verbos a aniquilar nossos esboços de civilização.

A luta contra a barbárie é também uma luta pelo mínimo de estética (um dos antídotos possíveis ao poder contagioso das cloacas morais) e por uma linguagem precisa.

Uma linguagem que tenha como pressuposto a defesa da vida, da empatia. E que não tenha no cinismo seu motor primário. Ética que se diz?

Excesso de relativismo jornalístico na veia dá nisso: cinismo em relação à hierarquia dos fatos. Se o agendamento de notícias (tema fundamental do jornalismo) parte da desumanidade o mundo será mais desumano.

Bolsonaro não incinerará o Manual de Redação da Folha porque ele é uma espécie de primo distante (blasé, com óculos arrojados e sorrisinho debochado) de sua violência cafona.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Falta iogurte em Buenos Aires e jornalismo na Folha

Caco Galhardo

Alceu Castilho

A correspondente da Folha em Buenos Aires não encontra seu iogurte no supermercado e decide escrever uma reportagem. Vejam, não uma crônica, mas uma reportagem sobre os "produtos que somem das lojas" e a política de preços do governo argentino.

Ela não ouviu, digamos, uma dúzia de pessoas sobre a falta de produtos, não fez o que chamamos no jornalismo de "fala, povo". Algo que poderia dar uma certa aura empírica ao levantamento. O relato é testemunhal: falta iogurte no supermercado de Palermo.

A partir daí, como observa o Eduardo Sterzi, ela passa a ouvir vozes contrárias à política de controle de preços — ligada à pandemia — de Alberto Fernández. Mais precisamente, dois economistas e o presidente da Federação Argentina de Supermercados.

Poucos relatos poderiam ser tão representativos dos rumos do jornalismo. Um iogurte. No meio do caminho não havia um iogurte. O iogurte específico que ela compra, natural, não qualquer iogurte. Em pauta, a política de preços do governo argentino.

Correspondentes brasileiros em Buenos Aires não existem para cobrir apenas a Argentina, são uma espécie de "enviados especiais à América Latina". De Palermo ela fala sobre Maduro (outro dia tirou foto com Guaidó) e Bolívia, Paraguai e México, igual.

Mais ou menos como os correspondentes em Nova York, que se sentem autorizados a decidir sobre o mundo (política, economia, guerra, insurreições, ambiente, gastronomia e futebol) a partir das redações — ou, agora, diante de suas estantes.

Buenos Aires e Nova York seriam, mais ou menos, equivalentes ao tal iogurte. Um jornalismo por amostragem mínima. Você lê o NY Times e... voilá: estaria ali o microcosmo de todas as tendências econômicas e políticas deste planeta, este cantinho do universo.

Fiquei a procurar um conto que eu julgava de Borges, mas não achei. Nele o narrador se propõe a fazer a descrição do globo a partir dos mínimos detalhes geográficos de um determinado canto, digamos, do nor-noroeste da Argentina. A obra levará décadas.

O jornalismo e a ciência têm a pretensão de flagrar determinadas sínteses. Para que não caiamos naquele império (aqui sim eu sei que o microconto é de Jorge Luis Borges) onde o colégio de cartógrafos passou a fazer um mapa do tamanho exato do globo.

E aí a gente busca o universal em alguma situação particular. Com títulos e manchetes que tentem sintetizar o tema. O que não significa bater o olho numa gôndola e gritar "eureca". A política de preços na Argentina, por exemplo, não gira em torno do iogurte.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

A música sublime de Ennio Morricone

Morricone soube ser sublime em um gênero muito específico, o spaghetti western. Ao musicar as obras mais importantes de Sergio Leone.
Alceu Castilho

Quando Ennio Morricone recebeu o Oscar honorário pela carreira, em 2007, disse — ele falava com a voz embargada — que aquilo não representava um ponto de chegada, mas um ponto de partida. 

"Para melhorar-me. Melhorar-me a serviço do cinema e também a serviço da minha estética pessoal na música aplicada".

Ele tinha 78 anos.

Dedicou o prêmio a cada diretor com quem tinha trabalhado.

(Enumero alguns aqui: Bertolucci, Bellocchio, Leone, Pasolini, Pontecorvo, Lattuada, Petri, Comencini, Zurlini, Monicelli, Tornatore, Olmi, Argento, Lina, Paolo e Vittorio Taviani. Grandes entre os grandes do cinema italiano. E mais: Polanski, De Palma, Stone, Almodóvar, Tarantino.)

Trilhas para filmes de Tornatore e Tarantino, por exemplo, foram feitas depois desse discurso. Quando Morricone também dedicou o Oscar a cada artista com quem tinha trabalhado. E, por último mas não menos importante, para sua mulher, Maria. 

A imagem dele estendendo a estatueta para ela sempre me impressionou muito. A humildade naquele homenzinho — o maior compositor da história do cinema — era algo tão marcante quanto sua produtividade, que nunca deixou de estar ligada à qualidade. Foram mais de 500 filmes.

Ao acordar, hoje, uma amiga tinha me marcado em notícia do G1. Foi assim que fiquei sabendo de sua morte. Minha filha ainda não acordou e não pude contar a ela. Ela e alguns poucos sabem o quanto significa para mim. (Fiquei com a mão no rosto por uns 15 minutos até criar coragem para ler a notícia e, em seguida, tentar escrever algo.)

***

Até poucos meses atrás ainda tinha remota esperança de ir para a Itália quase que somente para ver um show de Ennio Morricone. Com a pandemia (e diante do fato de que o último show tinha sido no início de 2019), já estava tentando me conformar com a impossibilidade, já estava processando um luto específico. 

Quem me conhece minimamente sabe de minha paixão pelo cinema italiano, o quanto isso está umbilicalmente ligado à minha vida, às minhas percepções não somente estéticas, mas também políticas. (Esse homem musicou filmes de Petri, Montaldo, Damiani, Pontecorvo, ele musicou o cinema político.)

E ele fez a trilha de "Cinema Paradiso", o filme que me abriu as portas para esse universo. Neste momento minhas emoções são também aquelas de Totó, o personagem do filme, ao ver a trilha sonora de suas paixões. A música do maestro convida qualquer saudosista (como no caso da minha pessoa) a desabar em lágrimas.

Morricone soube ser sublime em um gênero muito específico, o spaghetti western. Ao musicar as obras mais importantes de Sergio Leone. Penso aqui na chamada de celular do meu irmão, o assobio de "O Bom, o Mau e o Feio", em todas as vezes que falamos do maestro em família. Morricone, um consenso familiar.

Penso em "The Ecstasy of Gold", para sempre uma das minhas músicas preferidas de qualquer artista, certamente uma das que mais me tiram destes chãos sórdidos, que me levam a algum patamar utópico onde poderia haver alguma civilidade. (Eu, praticamente um misantropo.)

Escuto novamente a música e levo novamente as mãos ao rosto. Respiro fundo.

***

Naquela sequência de "Três nomes e um Destino" (gosto mais do nome "O Bom, o Mau e o Feio"), Tuco — o Feio — procura um túmulo onde haveria US$ 200 mil em ouro. A música é essencial na narrativa, Sergio Leone contou a história toda, até o trielo final, sabendo que a trilha era tão importante quanto as imagens. Em uma sequência sem diálogos.

Lembro-me da primeira vez em que assisti ao trielo — não era um duelo, chegava o momento de Bom, Mau e Feio se enfrentarem. Cheguei já no fim do filme, meu pai assistia na sala, meu pai amava os "faroestões", como ele dizia. E eu fiquei me perguntando: gente, o que exatamente estou vendo? (Trata-se de uma das sequências mais incríveis da história do cinema.)

Quis o destino que o último filme a que assisti (devo ter revisto pela oitava vez, há duas semanas) fosse "A Classe Operária Vai ao Paraíso", de Elio Petri, um filme de 1971. Uma obra-prima do cinema político e uma entre as tantas trilhas incríveis de Morricone.

Exatamente o último frame desse filme (a imagem congelada ainda fresca em minha memória) trazia a imagem de um homem, mais ou menos da minha idade atual, andando para trás, a bombar uma carregadeira, na fábrica onde aqueles trabalhadores não sabiam para quem produziam aquelas peças.

Deve ter sido lá pela quinta vez que assisti que finalmente percebi quem era aquele trabalhador. Petri não escolhera aleatoriamente aquele que, do mundo dos sons ao mundo das imagens, encerraria sua visão pessimista do paraíso.

Aquele homem com uma boina era Ennio Morricone.

‡ (1928-2020)

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Quem participa de governo genocida, é genocida


Qualquer genocida que se proponha a participar de um governo genocida deverá ser considerado como tal, um genocida. Ele pode ser um plagiador genocida, um engomadinho genocida, um diplomata genocida, um militar genocida, um liberal genocida (supostos liberais são defendidos pela grande imprensa, pois lá estão para atender o mercado e implodir direitos de trabalhadores), um doutor genocida, um pós-doutor genocida, um menino genocida de Chicago, uma missionária genocida, um verborrágico genocida, um advogado genocida. Com seus séquitos de apoiadores genocidas: imprensa genocida, blogueiros genocidas, mentirosos genocidas, procuradores genocidas.

Qualquer coisa que, distraidamente, a gente pense que tenha ares remotamente republicanos, mas apoie as aberrações comandadas por Jair Bolsonaro, deverá ser considerada instrumento do genocídio, aríete do fascismo.
***
A habilidade para mentir, a formação universitária ou o óculos de tartaruga deste ou daquele ministro deverão ser considerados detalhes em relação ao essencial: o fato de que esses senhores e senhoras promovem uma matança.

Uma matança real e uma administração farsesca, porque eleita com base em notícias falsas e com promessas (de combate à corrupção, por exemplo, ou novidade-na-política) que não resistem à análise da mais embaçada das últimas lupas.

*****

A maior beleza do governo terá sido Augusto, o Cão, aquele que foi sem nunca ter sido. As fotos de Sebastião Salgado na Funai estão sendo leiloadas e o deboche (com ele as implosões éticas e estéticas) foi instituído como marca. Como condição.

Não é apenas que o ministro tal tenha copiado e colado trechos inteiros, como se fosse apenas ele o mau caráter. Toda a lógica é de copiar e colar, ou talvez o contrário, copiar e descolar, copiar e destruir, copiar e implodir.

Copiar códigos de destruição, parâmetros de violência institucional, pactos mafiosos (e fascistas e genocidas), regras plenamente compreendidas por aqueles que não estão lá para construir um país, mas para massacrar.

Nesse contexto, soa curioso defendermos este ou aquele genocida por características (de cor, gênero ou o que seja) que absolutamente não fazem parte dos motivos que o líder dos genocidas tenha tido para escolher seus infames.

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Eles e elas estão lá por serem intrinsecamente infames e psicopatas e debochados e desprovidos de nossos códigos supostamente bem comportados, supostamente ciosos e defensores das Grandes Lutas Contemporâneas, e eu digo supostamente porque, de tão bem comportados, até linguisticamente bem comportados (quanto pudor para usar a palavra genocídio, não é mesmo), em determinado momento esse bom comportamento dá a volta inteira na teia do deboche e a gente se vê subitamente capturada, fazendo raciocínios e desenvolvendo teorias que beneficiam apenas os fascistas e só fariam sentido se não estivéssemos a assistir a um genocídio descarado, enquanto os assassinos destroem e gargalham.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Divertindo-se até a morte



Alceu Castilho


O quanto terá a pandemia se tornado um entretenimento?

E o quanto a nossa revolta terá se tornado apenas um simulacro?

Penso isso a propósito de Roger Waters e seu "Amused to Death", de 1992, inspirado no livro "Amusing Ouservels to Death", de Neil Postman (1985), este a proclamar a opressão da diversão (Huxley) como algo mais atual que a opressão do Estado (Orwell) em nossa configuração.

O líder do Pink Floyd escreveu isto, lá nos anos 90:

Bartender what is wrong with me
Why am I so out of breathe
The captain said, "Excuse me, ma'am
The species has amused itself to death

(Garçom, o que há de errado comigo?
Por que estou tão sem fôlego?
O capitão disse: "Desculpe-me, senhora.
A espécie se divertiu até a morte)

Só que o contexto era de guerra. não de uma pandemia. A vilã era a televisão, não a internet.

Essa que trouxe a barbárie dos donos dos meios de comunicação ao alcance de nossa própria indiferença e disfarçada morbidez.

Outra música de Waters falava da "bravura de estar fora de alcance", sobre líderes políticos tarados por armas e seus amestrados televisivos.

You opened your suitcase
Behind the old workings
To show off the magnum
You deafened the canyon
A comfort a friend
Only upstaged in the end
By the uzi machine gun
Does the recoil remind you
Remind you of sex?
Old man
What the hell you gonna kill next
Old timer, who you gonna kill next.

Agora não apenas Ronald Reagan ou Jair Bolsonaro jogam esse joguinho globalizado, a responsabilidade foi dividida, teremos mais um invasor de UTI de plantão, mais uma compra suicida no shopping, e qual a próxima pessoa que nossos tarados locais matarão, nesta terça-feira?

Eu abro o Facebook e vejo mais um líder indígena morto, um cacique, um professor. E mais um. E mais um. E mais um. Em meio à insônia, penso no que vou pautar no meu trabalho como jornalista, no que conseguiremos fazer com uma equipe pequena, nas tentativas de resgate, pelo menos, dessa memória, da história de cada um desses que partem.

A esperança equilibrista olha o lamaçal lá embaixo e quase tem vertigem.

Pois aqueles com as gravatas obscenas optaram mesmo por espalhar o vírus, não mais por um controle remoto cúmplice, que perpetuaria pela televisão o apocalipse da guerra distante, mas por meio de outro tipo de simulacro, o das frases feitas (e hipnoticamente repetidas) para termos a impressão de que algo-está-girando-em-torno-da-normalidade-neste-país-em-frangalhos.

As notas de repúdio como perdigotos, a rotina burocrática e jornalística como um disparo de aerossóis, enquanto governadores e prefeitos jogam sua gangorra assassina e enquanto o entertainer mais ousado atrai as nossas atenções, o presidente decrépito a gargalhar como se fosse uma metralhadora engasgada.

A voz sexy de Bonner (não consigo pensar na voz real, lembro-me de Adnet imitando a voz de Bonner e chacoalhando a cabeça como se fosse um sedutor) nos avisa que os coniventes entrarão para o lado errado da história. Sim, sim, quase só nos restou estar do lado certo da história, essa espécie de Lei de Darcy Ribeiro, fizemos o que foi possível e odiaríamos ter nos alinhado do outro lado.

A questão é: fizemos?

A questão é: isso não nos tira de antemão uma disposição para o enfrentamento?

Pois ainda daria tempo de salvar algumas centenas de milhares de vidas, em meio a essa zorra, ainda daria tempo de evitar milhões de depressões ou surtos ou desistências.

O quanto a opção de entrarmos para o lado correto da história terá se tornado também um entretenimento possível, uma face militante desse reality show, de uma farsa, com personagens furiosos cuidadosamente desenhados pelo Boninho?

Um petisco que oferecemos a nós mesmos, um troféu de consolação, como se homenageássemos um túmulo do resistente desconhecido, mas desconhecido de si mesmo, desconectado das reais possibilidades de resistência.

Mais ou menos como se tivéssemos nos tornado menos efetivos que distribuidores de sopas (e com todo respeito a eles, de verdade), mas com a sensação midiática de que nos revoltamos e abafamos, "vejam só o que eu falei hoje daquele policial", "olhem para mim, cancelei aquele cara, vocês viram que cancelei aquele cara...", e nessa toada quase enforcamos o último genocida, não é mesmo, Cuenca, nas tripas do Edir Macedo.

Quase. Apenas proclamamos a revolta, emitimos uma espécie de granada estéril, algo para cubano ver, enquanto no fundo estamos amortecidos — e atados a determinados códigos do sistema, diante da morfina da internet, desses anestésicos compartilhados em círculos.

Como se passássemos uma bola de suposta energia revolucionária para o companheiro ao lado. Orgulhosíssimos. E em seguida dormíssemos. (Não apenas uma esquerda maconheira. Uma esquerda iludida.)

Capturaram-nos.

E a luta para sair das cordas exige a compreensão de que não basta apenas lutar contra os adversários que nos massacram (e eles absolutamente não têm escrúpulos, são focados e morrem de tesão ao nos verem fracos), teríamos de abdicar desse ringue e dessas cordas, desse show, do ingresso que nos pagaram e das apostas absurdas que fizemos.

O pacto entre derrotados (cito sempre Ernesto Sabato) precisa, antes de mais nada, prever as camadas de derrotas, entendê-las em todas as suas configurações e em seu âmago, o cavalo de Troia não era apenas um cavalo, era uma manada, e enquanto a gente se orgulha por não ser o gado (a vitória possível se tornou ser algo em oposição ao gado) o inimigo já terá se apropriado até de nossa suposta indignação, terá sido ele que enforcou o último rebelde com as tripas do último ateu.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Quem não está na resistência a Bolsonaro também é genocida


Alceu Castilho

Vejo o seguinte título: "Manifestação em Paris denuncia genocídio em andamento no Brasil".

(Observem: em Paris.)

No primeiro parágrafo, a palavra genocídio entre aspas.

Por que entre aspas?

Neste momento, aqueles que precisam denunciar a matança política em curso (o genocídio) ainda colocam a palavra entre aspas.

***
Vivemos ainda uma etiqueta de milênios atrás, aqueles meses anteriores à pandemia. Como se ainda fosse possível ter modos diante dos assassinos, uma certa compostura para pedir, a quem tenha alguma nesga de poder, alguma eventual intervenção.

— O senhor poderia pedir àqueles senhores para não fazer isso? Dizem que morrerão algumas centenas de milhares de pessoas. (Pigarro.) Passe-me o sal, por favor.

As pessoas na sala de jantar são as pessoas na sala do genocídio.

*****
Enquanto isso, a barbárie avança e a assistimos nesse tom abaixo, como se a nossa estupefação fosse uma arma cândida contra os raivosos.

Os raivosos são os fascistas de mãos dadas com os histéricos. E aí não haverá mesmo respeito a leitos ou cruzes ou qualquer projeto de temperança.

Essa gente tem um líder genocida e (como um vírus) se alastra de forma destruidora, com a seguinte característica: destruição pela destruição.

E nós vamos nos esforçando para ter a mesma contenção implosiva de um Barroso, o mesmo alheamento insípido de um Toffoli, a mesma inexistência calhorda de um Aras.

*******
Lutamos contra a pandemia nas cordas, sem os restos de energia de algum boxeador estratégico para um contragolpe eficaz.

Decidimos apanhar nas cordas, sem reagir, sem ajudar o homem que perdeu o filho e recoloca as cruzes, assistindo (bem antes da pandemia, é verdade) à reunião dos covardes para dar pontapés em cada um de nós e nós seremos os próximos e mesmo assim nós (que nos entorpecemos tanto) paramos até de gritar nas janelas.

A doutrina do choque dos genocidas ocorre de forma verborrágica, ela substituiu a "violência da calma" da qual falava Viviane Forrester.

A violência da calma somos nós mesmos que a praticamos agora, nós, as vítimas, ou aqueles que deveriam proteger as vítimas, agora uma violência suicida e da autocensura, uma síndrome de Estocolmo na qual a cada dia se sequestra um resquício de capacidade de reação.

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Como se tivessem colocado kriptonita nas máscaras.

Sugaram nossas energias. E esses vampiros fascistas berram cada vez mais para que essa energia continue desaparecendo, a kriptonita são os próprios berros, ela vem em forme de aerossóis e perdigotos.

Precisamos reagir e isso não passa somente pelo lamento tímido de cada erupção do horror.

Não basta também apenas chamarmos o Bolsonaro de genocida.

(Sem aspas, por favor.)

Genocida é cada um daqueles que tem algum milímetro de poder.

Devemos agir como se cada um deles (Aras, Toffoli e suas turmas) fosse muito mais perigoso que esses invasores de hospitais e destruidores de cruzes.

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Quem não estiver do lado da resistência é fascista (e genocida) e precisa ser enfrentado como tal.

Sem palavras chocas.

Neste momento sobram tumbas e faltam heróis.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Um genocídio dentro do genocídio


Alceu Castilho

Homens públicos em todos os níveis (federal, estadual, municipal) estão a promover um genocídio dentro do genocídio.

Como se tivessem prazer em transportar a lógica das bonecas russas (uma dentro da outra) para o terreno da matança.

Penso isso a respeito da reabertura dos shoppings e de outros pontos de comércio. Não contentes em estimular o contato social em pleno crescimento da pandemia, os hipócritas que nos governam ainda restringem o horário. Claro. Se é para ter concentração de gente, por que não concentrar ainda mais, não é mesmo?

Aquela reabertura de shopping em Blumenau foi tomada como um capítulo especial da barbárie brasileira. A entrada macabra nas lojas ao som de saxofone.

Corria o longínquo dia de 22 de abril de 2020.

Um mês e meio depois, esse sax dos genocidas (Hamelin ficou desatualizado) inspira prefeitos e governadores de todo o país. 

(Bolsonaro, psicopata, não precisa de histeria de massas.)

No fundo estamos a adaptar a lógica destruidora do capitalismo — crises dentro das crises — para o campo do genocídio.

Já sem as máscaras da suposta alegria. As pessoas estão tristes nas filas dos shoppings, elas encarnam o horror. Mas ainda há quem veja nisso algum resquício de normalidade.

E com isso vamos nos acostumando a encaixotar indignações dentro de indignações, até que o último grito fique sufocado no último lamento triste de um simulacro de saxofone.

Da suposta alegria à entropia. Abraço de afogados a seco, sem álcool, sem carnaval, sem distrações, o consumo exacerbado pelo próprio consumo exacerbado, uma fila na lotérica para que os genocidas sorteiem o próximo que vai morrer.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Doria também faz parte da história brasileira do horror



O grau de psicopatia no estulto instalado no Palácio do Planalto é tão grande que a gente acaba esquecendo de cobrar os governadores e prefeitos. Mesmo aqueles que se mostram supostamente mais sensatos.

Mais sensatos em relação a quê? Em relação a um presidente desprovido de escrúpulos, fora da curva, uma vergonha mundial.

Em situação normal, por que não, deveríamos estar chamando Doria de genocida. E Zema (esse está totalmente alinhado com o sociopata) e Witzel e quase todos os governadores.

Porque eles também acenaram e acenam para o mercado em detrimento da vida.

Falemos de Doria. Por que os assassinos que comandam as carreatas contra o isolamento não foram presos? Fossem estudantes ou professores ou moradores da periferia teriam sido, não?

Por que esse combate tímido à redução assassina do isolamento? Ora, essa diminuição pode custar mais algumas dezenas de milhares de vidas, nada menos. (Especificamente em São Paulo.)

***
A dor de milhões de pessoas neste país também tem motivações políticas, não apenas biológicas. E cada charlatão que se utiliza da política para fins pessoais, e não para o interesse público, deve ser nomeado como agente ativo dessa violência.

(Nesse sentido, vale assinalar que especialistas isentões não ajudam a entender a pandemia como um fenômeno social. Nem a parte biológica nem a estatística — muito menos esta — são desprovidas de aspectos políticos.) ((É a política, Átila. É sempre a política.))

Tudo isso vale para qualquer Unidade da Federação e cada município deste país, este país que só não podemos dizer que está sem comando porque está sob o comando de um carrasco, de um promotor sistemático da morte.

*****
Como moro em São Paulo, fica aqui minha ênfase no governador de plantão. (E convido a todos a discutir também a política local, prefeituras inclusive.)

Doria não ser tão ostensivo como Bolsonaro em suas omissões e pulsão pela morte significa apenas que ele não é tão orgulhoso de suas violências como Bolsonaro. (Observem como a polícia de São Paulo está matando, com crueldade, os excluídos de sempre.)

A infâmia também se veste de verniz.

A TV Cultura, por exemplo, deveria estar totalmente voltada para a cobertura da pandemia. USP, Unesp e Unicamp, sob pressão, não deveriam estar a fingir que as aulas estão sendo dadas de forma adequada, com o semestre sendo oferecido como se os estudantes não estivessem sob um trauma.

Em maio e junho teremos o horror instalado no estado mais populoso do país. Somos 44 milhões de almas sem um líder de fato. Enquanto Doria faz suas continhas políticas (em relação ao governo federal e à elitezinha que o sustenta), o vírus faz contas maiúsculas.

Ele e cada político dessa laia também entrarão na história brasileira do horror.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Nota de repúdio às notas de repúdio



Venho por meio desta nota de repúdio emitir uma nota de repúdio às notas de repúdio.

Com todos os dedos que temos de ter em relação às notas de repúdio, já que seria impensável uma nota de repúdio conter palavras contundentes, exigências severas. Com t-o-d-a a c-a-l-m-a necessária, t-o-d-o-s os c-u-i-d-a-d-o-s para que não tomem esta nota de repúdio como, digamos, um repúdio, um repúdio-raiz, uma repulsa (desculpem-nos se uma palavra como esta soar demasiado ousada), uma reviravolta em relação ao estado de coisas imediatamente anterior.

Certamente em crises de outrora — regimes bastante duros que houve na Alemanha e na Itália, por exemplo, ou uma certa ação desproporcional dos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki — tivemos antepassados de notas de repúdio similares a esta nota de repúdio, mas de uma forma evolutiva, para que as notas de repúdios fossem progressivamente sendo buriladas, descascadas de formatos suficientemente expressivos que pudessem caracterizar algum risco real de ruptura.

Dizem que o presidente do Brasil — dizem — teria dito coisas muito feias em relação ao regime que adotamos há algumas décadas, em um contexto aparente de uma grave crise no setor de saúde. Data venia, não seria o caso, portanto, de as notas de repúdio neste caso levarem outro nome que não notas de repúdio, às vezes com "indignação veemente", para que não sejam confundidas com as nossas cuidadosas notas de repúdio? (Estamos praticamente a sugerir a criação de outro formato literário!)

É o momento de se repensar essas notas! Fica aqui o nosso veemente protesto! 

Senão, onde esse mundo vai parar?

sábado, 18 de abril de 2020

É hora de enfrentar os milicianos, fascistas e genocidas


Alceu Castilho

É bem verdade que os perversos saíram de suas tocas insuflados por um político perverso, um adorador da tortura que chegou à Presidência ao catalisar exatamente esse ódio coletivo, esse desprezo pela vida e pelos bens comuns.

Mas precisamos nos acostumar com a ideia de que vivemos em uma sociedade em que uma porcentagem enorme da população simplesmente nasceu sem empatia ou teve sua capacidade de ter compaixão estraçalhada ao longo dos anos.

Avisamos tanto, não? Sobre falsa simetria, que não era Fla x Flu, que não era direita x esquerda, que era a extrema-direita contra a civilização. Mas isentões, pretensos relativistas e cúmplices de todo o país quiseram ficar bem com essa turma.

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Uma dermatologista contar que receita cloroquina para seus funcionários (para que eles não deixem de trabalhar) não significa apenas que ela seja uma sociopata. Significa que foram criadas condições midiáticas para essa expressão.

A Deutsche Welle descreve essa turba como uma seita. Como um motorista que está na contramão, na estrada, e recebe um aviso da polícia: tem um motorista na contramão. E discorda: "Não tem um motorista só, são milhares!"

Isso só foi possível porque os donos dos meios de comunicação e seus chefetes amestrados jogaram pesado a favor de seus financiadores. E optaram por espremer as riquezas do país (as diferenças do país) em uma narrativa miúda.

Pelas reformas violentas, essas implosões previdenciária e trabalhista que eles chamam de reforma e são implosões, são decisões assassinas, cruéis. E que continuam em curso, mesmo em tempos de pandemia. Em Brasília e na sua telinha.

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E agora cada um dos perversos mais explícitos se tornou uma ameaça física. Temíamos que eles aumentassem a violência com armas e os vemos agora como gente que tosse sem culpa. Espalhadores sem escrúpulos de perdigotos.

É preciso admitir que, em determinado momento do processo, possivelmente em 2013, nos acovardamos.Tinha muito valentão para quebrar vidraça e pouca gente suficientemente antifascista para enfrentar os fascistas. Lembram-se?

Os fascistas acuaram petistas, sindicalistas e movimentos diversos de esquerda em plena Avenida Paulista. O que se fez? Um suposto movimento tático, um recuo "estratégico", tão sutil e furtivo que nunca mais vimos o contra-ataque.

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As pessoas violentas que odiaram o mínimo de políticas sociais na era petista (e até mesmo na era FHC) foram aceitas como interlocutoras como se não estivessem no campo da violência. Máfias foram e ainda são descritas como atores legítimos.

Podem observar: Renata Lo Prete conta no Jornal da Globo que as milícias — ou seja, as máfias — determinaram reabertura do comércio nas comunidades do Rio, mas conta em tom doce, como se não tivéssemos de nos assombrar.

Ou seja, insuflou-se o ódio contra movimentos sociais legítimos (observem colunista de jornal que chamava sem-teto de terrorista) na mesma medida em que esses criminosos eram incorporados à narrativa, quase como extensão do Estado.

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E essa gente chegou ao poder. Com um psicopata que reuniu perversos com o gesto da arminha e disse que quilombolas não servem para nada e odeia homossexuais e indígenas e mulheres. O psicopata foi naturalizado pelos isentões.

Alguns deles estão aí, agora, como se não tivessem feito nada. Só que esses arrependidos entram na nossa mesma luta desigual. Porque os signos da civilização (o mínimo que ainda temos) foram corrompidos, a linguagem foi deturpada.

A Constituição, violentada. Os códigos (na imprensa, no judiciário, nas reuniões de pais e condomínios) não têm mais a argamassa necessária para a defesa de princípios elementares. Porque aos perversos se somaram os indiferentes.

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O resultado dessa equação será um genocídio. Já iniciado. Para começo de conversa precisamos derrubar o líder desse extermínio. Sem medinho do canalha que o defende e está ao nosso lado, em nossa família ou no escritório.

Sim, a palavra é enfrentamento.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Precisamos derrubar Bolsonaro, urgentemente, em nome da vida



Alceu Castilho

A semana começa sob o signo mórbido dos bolsominions na Paulista a carregar alegremente um caixão, ao som (ironicamente, do macro ao micro) de "Astronomia 2k19". A música eletrônica do italiano Stefano Folegatti, o Stephan F, embalou os memes sobre enterros em Gana, adaptados aos tempos de coronavírus. E lá foi embalar o pesadelo de outono na avenida que simboliza São Paulo.

Os fanáticos, em sua maioria homens, metade com camisetas verdes e amarelas ou bandeiras do Brasil, carregam pelo asfalto o simulacro de caixão e dançam. Orgulhosíssimos. Chamou-me a atenção a imagem de um barbinha que, salvo engano, discursa violentamente em outro vídeo, a negar a existência da Covid-19. (Ao seu lado, aparece brevemente uma estúpida com máscara sob a boca.)

***
Muita gente já falou sobre a pulsão de morte embutida nos supostos negacionistas, esses falsos céticos. Supostos porque, a esta altura, é difícil imaginar alguém que, no fundinho de suas almas, creia realmente na inexistência do vírus. Eles negam discursivamente, ao mesmo tempo que desejam — conscientemente ou não — sua proliferação. Questão: apenas por psicopatia?

Talvez devamos começar a pensar na vertente histriônica do bolsonarismo, em meio aos portadores de outros transtornos de personalidade e em diálogo com os delírios. (Não, eu não os considero inimputáveis.) Qual a diferença entre essa dança do caixão e aquelas coreografias feitas durante a campanha do miliciano, com músicas ruins (a de Stephan F é contagiante) e coreografias chinfrins?

A identificação com Jair Bolsonaro não se dá apenas pela afinidade com o que sai de sua boca, mas também pela pantomina, por sua capacidade de replicar gestos um tanto hipnóticos (uma arminha não apenas como arminha), sem o antigo pudor dos intimidados. Mais ou menos como uma revolução dos rejeitados, aqueles que não sabiam dançar e agora podem exibir seus passinhos em palco fúnebre.

O espaço obtido por essa escória decorre exatamente dessa afinidade muito excepcional com o que está no limite ou além do limite, com a overdose, paradoxalmente defendida em nome da ordem e do progresso e dos homens de bem. Mais ou menos como se eles tivessem tido um insight em meio aos próprios transtornos: eles entenderam a pulsão de morte embutida no sistema em que vivemos e a repetem, exatamente como farsa.

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Novamente Federico Fellini foi o intelectual quem sacou tudo isso muito antes de nós, ao retratar implacavelmente o fascismo. Estava tudo lá, vejam "Amarcord", o ridículo, a celebração do patético, a implosão estética, atirava-se em um campanário para interromper o hino comunista. A bufonice do Duce compunha essa estética ao mesmo tempo cafona e propagadora da violência. O culto à violência como uma espécie de nicho psicológico de mercado.

Esses senhores e senhoras medíocres entenderam mal as sessões da tarde sobre revoltas dos nerds (os nerds tinham inúmeras qualidades, como sabemos) e se apresentam hoje como orgulhosos da própria degradação. Quanto mais nos chocarmos com essas manifestações — com esse histrionismo macabro — mais eles gozarão. Foi o que lhes restou: a defesa de uma família Addams sem glamour, reduzida à condição de lúmpen inglório.

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Para combater essa gente de nada adianta dar nome a cada cafajeste menor, expor o último mentecapto no primeiro poste de cloroquina. Eles têm um líder, um líder a gargalhar disso tudo, o presidente mezzo sociopata e mezzo imbecil que conseguiu (pela soma peculiar de deméritos) catalisar toda essa tristeza, esse vazio e suas expressões decrépitas. É Bolsonaro que precisamos derrubar, com urgência, em nome da vida. Os órfãos em êxtase voltarão para a sala de jantar.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Eleitorado de Bolsonaro não tem nada a ver com gado



Alceu Castilho

Estava vendo um vídeo de um cara tocando Led Zeppelin para umas dezenas de bois e vacas. Violão. Ele tocou seis músicas. Quando veio a quarta, "Stairway to Heaven", o gado se aproximou. Um deles (com gosto muito parecido com o meu) ficou encantado com "Over the Hills and Far Away".

Precisei ver isso para entender o quanto a imagem de gado para os fascistas que apoiam Jair Bolsonaro não é exatamente precisa. Somente nesse vídeo (em outros eles apreciam jazz ou música erudita) eles demonstram uma sensibilidade superior à da multidão genocida.

Problematizar o "Fora, gado!" significa que talvez devamos utilizar outras categorias (históricas, sociológicas, mas também outras metáforas) para questionar religiosos que fazem gestos de arminhas ou portadores de carrões que defendem, com máscaras, a volta dos pobres ao trabalho.

Bolsonaro não é um cavalo. É um bípede sem pluma (como diria Julio Cortázar) e sem compaixão, incapaz de entender uma pandemia ou se solidarizar com outras pessoas. É um fruto da glorificação do individualismo, do oportunismo e do arrivismo. Um inescrupuloso conveniente — às elites.

Uma espécie de mercenário, portanto. Com suas máscaras de mentiroso compulsivo, de palhaço infame e de propositor de violências, suficientemente caricato para reunir em torno de si (em torno dos interesses cínicos do capital) outros bípedes igualmente violentos ou tolerantes à violência.

Mais invejosos que ingênuos, esses que a gente simplifica chamando de "gado" estão do outro lado da cerca, são os que apostam num político sem caráter da mesma forma que jogam na loteria. Em nome da exclusão, da chance remota de que, um dia, também se tornem uns achacadores.

Uns chantagistas, uns manipuladores, aqueles que vão fazer de conta que se deram tão bem quanto o punhadinho de bilionários, os verdadeiros donos do cassino. Meta de vida: chegar lá (não em Brasília, mas no centrinho local de um poderzinho qualquer) e, como Bolsonaro, humilhar alguém.

Nada de "gado". Parasitismo, talvez, mas um parasitismo muito peculiar, já que disposto a proclamar inimigos para disfarçar a própria condição predadora. Inimigos diversos, mas necessariamente, entre eles, aqueles que preferem outros valores: o bem comum, a solidariedade.

Os apoiadores do genocida não entendem as letras do Roger Waters e não compreenderiam uma entrevista do Ailton Krenak. Não por problemas cognitivos, mas éticos. Eles são aqueles que se sentem ricos com a miséria alheia, os que não se importam com a morte e com os açoites.