terça-feira, 23 de junho de 2020

Divertindo-se até a morte



Alceu Castilho


O quanto terá a pandemia se tornado um entretenimento?

E o quanto a nossa revolta terá se tornado apenas um simulacro?

Penso isso a propósito de Roger Waters e seu "Amused to Death", de 1992, inspirado no livro "Amusing Ouservels to Death", de Neil Postman (1985), este a proclamar a opressão da diversão (Huxley) como algo mais atual que a opressão do Estado (Orwell) em nossa configuração.

O líder do Pink Floyd escreveu isto, lá nos anos 90:

Bartender what is wrong with me
Why am I so out of breathe
The captain said, "Excuse me, ma'am
The species has amused itself to death

(Garçom, o que há de errado comigo?
Por que estou tão sem fôlego?
O capitão disse: "Desculpe-me, senhora.
A espécie se divertiu até a morte)

Só que o contexto era de guerra. não de uma pandemia. A vilã era a televisão, não a internet.

Essa que trouxe a barbárie dos donos dos meios de comunicação ao alcance de nossa própria indiferença e disfarçada morbidez.

Outra música de Waters falava da "bravura de estar fora de alcance", sobre líderes políticos tarados por armas e seus amestrados televisivos.

You opened your suitcase
Behind the old workings
To show off the magnum
You deafened the canyon
A comfort a friend
Only upstaged in the end
By the uzi machine gun
Does the recoil remind you
Remind you of sex?
Old man
What the hell you gonna kill next
Old timer, who you gonna kill next.

Agora não apenas Ronald Reagan ou Jair Bolsonaro jogam esse joguinho globalizado, a responsabilidade foi dividida, teremos mais um invasor de UTI de plantão, mais uma compra suicida no shopping, e qual a próxima pessoa que nossos tarados locais matarão, nesta terça-feira?

Eu abro o Facebook e vejo mais um líder indígena morto, um cacique, um professor. E mais um. E mais um. E mais um. Em meio à insônia, penso no que vou pautar no meu trabalho como jornalista, no que conseguiremos fazer com uma equipe pequena, nas tentativas de resgate, pelo menos, dessa memória, da história de cada um desses que partem.

A esperança equilibrista olha o lamaçal lá embaixo e quase tem vertigem.

Pois aqueles com as gravatas obscenas optaram mesmo por espalhar o vírus, não mais por um controle remoto cúmplice, que perpetuaria pela televisão o apocalipse da guerra distante, mas por meio de outro tipo de simulacro, o das frases feitas (e hipnoticamente repetidas) para termos a impressão de que algo-está-girando-em-torno-da-normalidade-neste-país-em-frangalhos.

As notas de repúdio como perdigotos, a rotina burocrática e jornalística como um disparo de aerossóis, enquanto governadores e prefeitos jogam sua gangorra assassina e enquanto o entertainer mais ousado atrai as nossas atenções, o presidente decrépito a gargalhar como se fosse uma metralhadora engasgada.

A voz sexy de Bonner (não consigo pensar na voz real, lembro-me de Adnet imitando a voz de Bonner e chacoalhando a cabeça como se fosse um sedutor) nos avisa que os coniventes entrarão para o lado errado da história. Sim, sim, quase só nos restou estar do lado certo da história, essa espécie de Lei de Darcy Ribeiro, fizemos o que foi possível e odiaríamos ter nos alinhado do outro lado.

A questão é: fizemos?

A questão é: isso não nos tira de antemão uma disposição para o enfrentamento?

Pois ainda daria tempo de salvar algumas centenas de milhares de vidas, em meio a essa zorra, ainda daria tempo de evitar milhões de depressões ou surtos ou desistências.

O quanto a opção de entrarmos para o lado correto da história terá se tornado também um entretenimento possível, uma face militante desse reality show, de uma farsa, com personagens furiosos cuidadosamente desenhados pelo Boninho?

Um petisco que oferecemos a nós mesmos, um troféu de consolação, como se homenageássemos um túmulo do resistente desconhecido, mas desconhecido de si mesmo, desconectado das reais possibilidades de resistência.

Mais ou menos como se tivéssemos nos tornado menos efetivos que distribuidores de sopas (e com todo respeito a eles, de verdade), mas com a sensação midiática de que nos revoltamos e abafamos, "vejam só o que eu falei hoje daquele policial", "olhem para mim, cancelei aquele cara, vocês viram que cancelei aquele cara...", e nessa toada quase enforcamos o último genocida, não é mesmo, Cuenca, nas tripas do Edir Macedo.

Quase. Apenas proclamamos a revolta, emitimos uma espécie de granada estéril, algo para cubano ver, enquanto no fundo estamos amortecidos — e atados a determinados códigos do sistema, diante da morfina da internet, desses anestésicos compartilhados em círculos.

Como se passássemos uma bola de suposta energia revolucionária para o companheiro ao lado. Orgulhosíssimos. E em seguida dormíssemos. (Não apenas uma esquerda maconheira. Uma esquerda iludida.)

Capturaram-nos.

E a luta para sair das cordas exige a compreensão de que não basta apenas lutar contra os adversários que nos massacram (e eles absolutamente não têm escrúpulos, são focados e morrem de tesão ao nos verem fracos), teríamos de abdicar desse ringue e dessas cordas, desse show, do ingresso que nos pagaram e das apostas absurdas que fizemos.

O pacto entre derrotados (cito sempre Ernesto Sabato) precisa, antes de mais nada, prever as camadas de derrotas, entendê-las em todas as suas configurações e em seu âmago, o cavalo de Troia não era apenas um cavalo, era uma manada, e enquanto a gente se orgulha por não ser o gado (a vitória possível se tornou ser algo em oposição ao gado) o inimigo já terá se apropriado até de nossa suposta indignação, terá sido ele que enforcou o último rebelde com as tripas do último ateu.

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