Marcelo Coelho
A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei
Não é preciso insistir no que houve de ignorância e despropósito durante a passagem de Abraham Weintraub pelo Ministério da Educação.
Acho interessante outro tipo de comentário. A saber, o de que Weintraub “não fez nada”, deixou tudo parado, não “tocou nenhum projeto”.
Na verdade, o objetivo era esse mesmo. Na famosa reunião ministerial, Weintraub se limitou a expressar o desejo de ver membros do STF na cadeia.
Ele também explicou o que o fizera aderir ao governo Bolsonaro: a “luta pela liberdade”. “Não quero ser escravo neste país”, acrescentou.
O povo não está gritando “por mais projetos”, disse ele. “Está lutando pela liberdade.” Toda essa discussão de “vamos fazer isso, vamos fazer aquilo” não seria capaz de mobilizá-lo. O principal, repetiu, era lutar —e não dialogar— contra os que querem “as tetas” do Estado.
Vieram, como condimento, confissões de “ódio” aos partidos comunistas, às expressões “povos indígenas” e “povo cigano” e, como se sabe, ao STF.
Esse discurso se deu numa ocasião em que se apresentava, justamente, um “plano” para a recuperação econômica do país. Nada de concreto, como se sabe, mas o suficiente para justificar projeções de PowerPoint e palavras de confiança no futuro.
O que deduzir disso?
É possível que exista um setor do governo, composto por ministros militares como o da Infraestrutura, ainda ligado à ideia de que o Estado serve para “fazer alguma coisa”.
O sentido básico do governo Bolsonaro, entretanto, é claramente outro. A ala financeira de Paulo Guedes, assim como a ala dos fanáticos evangélicos e olavistas, está unificada num propósito claro —o de destruir o Estado.
Neoliberalismo feroz e maluquice conspiratória são faces da mesma moeda. O núcleo supostamente técnico de Paulo Guedes e a turma delirante da guerra contra índios, quilombolas e comunistas compartilham da mesma visão de mundo.
Fascismo? O filósofo político Renato Lessa, numa discussão disponível no YouTube (procure por “Simpósio Direitas Brasileiras”), questiona essa caracterização.
Claro que podemos chamar de “fascista” esse governo e seus seguidores. São truculentos, extremistas, vulgares, despreparados, belicosos e idiotas.
Mas o fascismo, lembra Renato Lessa, buscava incorporar todos à máquina do Estado. Havia destacamentos infantis, associações de jovens, alas femininas. Desenvolvo a ideia por minha conta: o plano era criar uma escola fascista, uma arte fascista, uma medicina fascista. A ideologia era totalitária, de fato, porque absorvia toda a sociedade (excluídos os “elementos indesejáveis”) em organizações de Estado.
O plano de Bolsonaro é sem dúvida inverso —embora a mentalidade ativista e truculenta seja comparável à dos camisas-negras. Trata-se de unificar não só os que são contra o Estado, mas também os que estão à margem, ou fora, da lei.
É a ilegalidade no poder: isso unifica milícias, madeireiros, invasores de terra indígena, destruidores de patrimônio histórico, infratores contumazes de trânsito, sonegadores de impostos, policiais torturadores, militantes racistas, compradores de armas de fogo.
Uma ampla parcela de trabalhadores informais, de pequenos empreendedores, de profissionais liberais que acham complicado preencher nota fiscal, de donas de casa revoltadas com os novos direitos das domésticas, alia-se ao clube.
Os antigos representantes do pensamento econômico liberal encontraram, assim, uma base social imprevista.
O Estado brasileiro, que já não funcionava, deixou abandonada uma gente que se acostumou a se virar sozinha, fugindo de fiscais, empregando ou sendo empregada sem respeito à CLT, estudando em faculdades particulares de última categoria.
Estado para quê? “Só serve para atrapalhar”, pensa essa população que, na verdade, é vítima precisamente da falta de um Estado que funcione. “Melhor a milícia! Melhor a gente se armar! Melhor o Guedes!”
Do outro lado, temos os evidentes casos de corrupção, de crise fiscal e de carência nos serviços públicos a alimentar com fatos reais o delírio extremista e destrutivo.
Não é por acaso que o bolsonarismo se volte contra o Judiciário, de cujas ações se beneficiou. A luta contra a corrupção foi apenas o pretexto para uma luta maior: a luta contra a lei.
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Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.
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