terça-feira, 23 de junho de 2020

É possível realizar eleições em meio a um morticínio?



Dificilmente será possível evitar o adiamento das eleições.

Na verdade, o simples adiamento provavelmente não resolverá as questões de saúde pública. Dada a insanidade em que estamos mergulhados, não há nenhuma segurança de que a situação estará melhor em novembro ou dezembro.

Seria necessário pensar em medidas adicionais - por exemplo, expandir o período da votação para três ou quatro dias e dividir os eleitores de cada seção por turnos, a fim de evitar aglomerações.

Essa é a parte mais fácil, a mecânica da coleta de votos. O mais difícil é permitir que haja um debate político minimamente aprofundado e abrangente. A eleição, afinal, não é o momento em que se contam votos, mas - idealmente - um processo em que a sociedade discute que caminhos deseja trilhar.

O isolamento social prejudica fortemente essa possibilidade. O corpo a corpo que permite o diálogo com os eleitores comuns, o comício que fortalece o sentido de pertencimento da militância, a reunião com o sindicato ou associação de moradores que permite balizar compromissos - tudo isso fica impossibilitado.

As campanhas para vereador, em particular, que não têm destaque nos meios de comunicação, serão quase invisíveis, com grande vantagem para a recondução dos atuais detentores de mandato.

Mesmo para prefeitos, o isolamento social fará a campanha ser totalmente mediada. É possível pensar em medidas compensatórias - por exemplo, ampliar a duração e o período de veiculação do horário de propaganda eleitoral no rádio e televisão (que tem sido desinflado sistematicamente há décadas, por uma combinação de interesses políticos e pressão das emissoras comerciais).

Outra ideia: definir um calendário de debates com participação obrigatória de todos os candidatos.

São medidas, no entanto, que não suprem todas as necessidades. Para começar, muitos municípios não têm emissoras próprias - e ficam a descoberto do HGPE. Talvez, como meia sola, a justiça eleitoral possa estabelecer canais na internet para a propaganda política nessas localidades.

Os maiores problemas, porém, não advêm das questões passíveis de regulação. Com uma campanha sob isolamento social, avulta a importância dos meios de comunicação eletrônicos e das mídias sociais. Espaços, como sabemos, muito vulneráveis à manipulação.

A mídia brasileira retornou, nos últimos anos, à situação em que se encontrava logo após a ditadura - de partidarismo escancarado e nenhuma preocupação com a manutenção de uma fachada de respeitabilidade profissional.

A Rede Globo, hoje "parceira na luta pela democracia", continua invisibilizando a esquerda, blindando Moro e assim por diante. Não há dúvida de que está disposta a jogar pesado para favorecer seus candidatos preferidos. Record e SBT se assumiram como panfletos bolsonaristas.

Entre as emissoras locais, a situação tende a ser igual, se não pior.

Seria necessária uma intervenção forte para garantir um mínimo de equidade no noticiário. Mas certamente não há vontade política para isso.

Nas mídias sociais, avançou-se muito pouco para bloquear os esquemas de disseminação de inverdades. Há bastante denúncia, mas pouca prevenção. Até porque realmente não é fácil garantir a liberdade de expressão, incluindo com centralidade a possibilidade de manifestação de vozes dissidências, com o bloqueio de mensagens malévolas.

Medidas eficazes, mas radicais, certamente não prosperarão - como o bloqueio do WhatsApp durante todo o período da campanha eleitoral ou a determinação de que o algoritmo do Youtube opere de maneira reversa, apresentando, na sequência de cada vídeo, o contraditório em vez do similar.

Os desafios são enormes. A situação da pandemia agrava o cenário, mas a raiz dos problemas está em outra questão: é a contradição intrínseca a um sistema que deseja se legitimar por meio do processo democrático, mas se esforça por manter a população despolitizada.

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