quarta-feira, 24 de junho de 2020

O que é democracia?


Não é possível aceitar que o projeto da esquerda seja silenciado do debate público. E não é possível largar a bandeira da democracia nas mãos dessa gente.
O que é a democracia? A etimologia responde que é o governo do povo. Mas "povo", no pensamento político antigo, designava a massa dos cidadãos pobres: para os autores gregos, a democracia era o governo dos pobres. Já a democracia contemporânea, a história mostra, é a resposta à luta da classe trabalhadora para ter voz nas decisões políticas.

No bojo dessa resposta, o conceito se tornou mais asséptico, adequado à ficção liberal de uma sociedade de indivíduos tornados iguais pela lei. E a democracia se viu reduzida ao método eleitoral de escolha de governantes,em geral aliado à vigência das liberdades liberais.

Qualquer que seja a definição, não é possível admitir que o ato virtual programado para sexta com Sarney, FHC, Temer, Toffoli e Huck seja "pela democracia". Eles conspiraram contra a Constituição e contra o Estado de direito. Negaram até mesmo o sentido mais esvaziado de democracia, ao derrubar uma presidente eleita e impedir a presença nas eleições de um candidato favorito (um "impeachment preventivo", na expressão de Renato Lessa).

Romperam com a legalidade para criminalizar adversários políticos, deram gás a uma forma de macarthismo tupiniquim para cercear o debate. Buscavam - e conseguiram - uma retração acelerada dos direitos da classe trabalhadora e das políticas de promoção da igualdade. Foram cúmplices ativos, todos eles, da chegada de um autoritário primitivo com inclinações fascistas à presidência e da remilitarização da política brasileira.

Estão incomodados com a irracionalidade do governo Bolsonaro, não com sua falta de responsividade aos interesses populares. Mostraram repetidas vezes que são capazes de tolerar seus "excessos", reagindo no máximo com admoestações brandas, quando ele lhes entrega o que desejam.

São "democratas" de ocasião, prontos a refazer todo o caminho do golpismo e da fascistização se julgarem que seus interesses estão ameaçados.

A eles se uniram Flávio Dino, Fernando Haddad, Ciro Gomes, Guilherme Boulos. Fico triste pelo Boulos, que, fiel a seu propósito de ser um Lula fast-track, trilhou tão rapidamente o caminho da acomodação à política tradicional. E o que é pior: num papel de absoluto coadjuvante, destinado apenas a conferir legitimidade a seus novos aliados. (E num momento em que o próprio Lula entende que esse passo é equivocado.)

Se fosse um ato do "fora Bolsonaro", estava ótimo. Contra Bolsonaro, até antidemocratas, falsos democratas e democratas de araque são bem vindos. Afinal, retirá-lo da presidência é prioridade.

Mas não é. "Fora Bolsonaro" não consta das palavras de ordem, para acomodar o setor que ainda se ilude com a ideia de enquadrá-lo, civilizá-lo, tutelá-lo, mantendo-o no poder. Para estes, a "frente ampla" é uma manobra precursora, um esforço de domesticação da oposição e reforço dos novos limites da luta política - os limites dados pelo golpe de 2016.

Falam que é o novo "diretas já". É o contrário. O movimento pelas diretas almejava ampliar a disputa política no país. Esse movimento pretensamente pela democracia visa restringi-la, normalizando a ordem instaurada pelo golpe.

Falam que a luta pela democracia política tem primazia sobre a luta pelos direitos sociais. Creio que isso trai uma visão tacanha do processo político, própria, aliás, de quem fala a partir de uma posição material confortável - e que a história já mostrou o equívoco dessa priorização. Mas, mesmo que fosse assim: os golpistas impenitentes de 2016 não prometem devolver nem a democracia política em seu sentido mais diluído.

Não é possível aceitar que o projeto da esquerda seja silenciado do debate público.

E não é possível largar a bandeira da democracia nas mãos dessa gente.

Mas, então, o que é a democracia? De minha parte, prefiro vê-la não como um conjunto de regras, mas como o movimento permanente de luta contra as formas estabelecidas de dominação social. Algo que precisará, sim, se cristalizar em alguma institucionalidade, mas que sempre manterá o impulso para ir além dela.

É o que permite que a democracia seja sempre uma forma da liberdade. E, sobre essa última, faço minhas as palavras do poeta comunista Moacyr Félix:

- Meu pai, o que é a liberdade?

- É o seu rosto, meu filho,
o seu jeito de indagar
o mundo a pedir guarida
no brilho do seu olhar.
A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto da vida
que a vida quis desvendar.
É sua irmã numa escada
iniciada há milênios
em direção ao amor,
seu corpo feito de nuvens
carne, sal, desejo, cálcio
e fundamentos de dor.
A liberdade, meu filho,
é o próprio rosto do amor.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A mão limpa, o copo d'água
na mesa qual num altar
aberto ao homem que passa
com o vento verde do mar.
É o ato simples de amar
o amigo, o vinho, o silêncio
da mulher olhando a tarde
- laranja cortada ao meio,
tremor de barco que parte,
esto de crina sem freio.

- Meu pai, o que é a liberdade?

É um homem morto na cruz
por ele próprio plantada,
é a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.
É Cuauhtemoc a criar
sobre o brasileiro que o mata
uma rosa de ouro e prata
para altivez mexicana.
São quatro cavalos brancos
quatro bússolas de sangue
na praça de Vila Rica
e mais Felipe dos Santos
de pé a cuspir nos mantos
do medo que a morte indica.
É a blusa aberta do povo
bandeira branca atirada
jardim de estrelas de sangue
do céu de maio tombadas
dentro da noite goyesca.
É a guilhotina madura
cortando o espanto e o terror
sem cortar a luz e o canto
de uma lágrima de amor.
É a branca barba de Karl
a se misturar com a neve
de Londres fria e sem lã,
seu coração sobre as fábricas
qual gigantesca maçã.
É Van Gogh e sua tortura
de viver num quarto em Arles
com o sol preso em sua pintura.
É o longo verso de Whitman
fornalha descomunal
cozendo o barro da Terra
para o tempo industrial.
É Federico em Granada.
É o homem morto na cruz
por ele próprio plantada
e a luz que sua morte expande
pontuda como uma espada.

- Meu pai, o que é a liberdade?

A liberdade, meu filho,
é coisa que assusta:
visão terrível (que luta!)
da vida contra o destino
traçado de ponta a ponta
como já contada conta
pelo som dos altos sinos.
É o homem amigo da morte
por querer demais a vida
- a vida nunca podrida.
É sonho findo em desgraça
desta alma que, combalida,
deixou suas penas de graça
na grade em que foi ferida...
a liberdade, meu filho,
é a realidade do fogo
do meu rosto quando eu ardo
na imensa noite a buscar
a luz que pede guarida
nas trevas do meu olhar.

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