A correspondente da Folha em Buenos Aires não encontra seu iogurte no supermercado e decide escrever uma reportagem. Vejam, não uma crônica, mas uma reportagem sobre os "produtos que somem das lojas" e a política de preços do governo argentino.
Ela não ouviu, digamos, uma dúzia de pessoas sobre a falta de produtos, não fez o que chamamos no jornalismo de "fala, povo". Algo que poderia dar uma certa aura empírica ao levantamento. O relato é testemunhal: falta iogurte no supermercado de Palermo.
A partir daí, como observa o Eduardo Sterzi, ela passa a ouvir vozes contrárias à política de controle de preços — ligada à pandemia — de Alberto Fernández. Mais precisamente, dois economistas e o presidente da Federação Argentina de Supermercados.
Poucos relatos poderiam ser tão representativos dos rumos do jornalismo. Um iogurte. No meio do caminho não havia um iogurte. O iogurte específico que ela compra, natural, não qualquer iogurte. Em pauta, a política de preços do governo argentino.
Correspondentes brasileiros em Buenos Aires não existem para cobrir apenas a Argentina, são uma espécie de "enviados especiais à América Latina". De Palermo ela fala sobre Maduro (outro dia tirou foto com Guaidó) e Bolívia, Paraguai e México, igual.
Mais ou menos como os correspondentes em Nova York, que se sentem autorizados a decidir sobre o mundo (política, economia, guerra, insurreições, ambiente, gastronomia e futebol) a partir das redações — ou, agora, diante de suas estantes.
Buenos Aires e Nova York seriam, mais ou menos, equivalentes ao tal iogurte. Um jornalismo por amostragem mínima. Você lê o NY Times e... voilá: estaria ali o microcosmo de todas as tendências econômicas e políticas deste planeta, este cantinho do universo.
Fiquei a procurar um conto que eu julgava de Borges, mas não achei. Nele o narrador se propõe a fazer a descrição do globo a partir dos mínimos detalhes geográficos de um determinado canto, digamos, do nor-noroeste da Argentina. A obra levará décadas.
O jornalismo e a ciência têm a pretensão de flagrar determinadas sínteses. Para que não caiamos naquele império (aqui sim eu sei que o microconto é de Jorge Luis Borges) onde o colégio de cartógrafos passou a fazer um mapa do tamanho exato do globo.
E aí a gente busca o universal em alguma situação particular. Com títulos e manchetes que tentem sintetizar o tema. O que não significa bater o olho numa gôndola e gritar "eureca". A política de preços na Argentina, por exemplo, não gira em torno do iogurte.
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