sexta-feira, 18 de setembro de 2020

À deriva e contando com Deus


Atila Iamarino

A queda de mortes por Covid é tão opaca quanto o céu enfumaçado de Cuiabá 

Enquanto escrevo, o Brasil está em um período de queda de mortes por Covid-19. Até quando e até onde vai, não sabemos. O atraso de registros e a falta de testes deixam o cenário tão opaco quando o céu de Cuiabá com a fumaça do Pantanal. Com certeza tem muito esforço por trás dessa queda, trabalho de profissionais de saúde, prefeitos, governadores e quem mais tenta fazer sua parte. Mas nossa situação é tão descoordenada que não reconhecemos uma causa universal.

Em países europeus, puderam medir o efeito de cada decisão na redução de casos: fechamento de escolas, de comércio, proibição de aglomerações e afins, já que foram medidas federais acompanhadas de testes. Aqui, a explicação mais próxima da realidade que ouvi foi a fala de Mandetta ainda em março, dizendo que a Covid-19 seria sazonal e veríamos uma redução de casos parecida com a da gripe, entre o final de agosto e começo de setembro.

Se for sazonalidade que nos poupa, ótimo agora, ruim a longo prazo. Ótimo porque os casos estão caindo, vidas estão sendo salvas e realmente precisamos de um descanso para poder retomar a vida viável. Ruim a longo prazo, porque significaria que o que controlou nossa pandemia foram forças da natureza. Ou seja, boa sorte se precisarmos controlar melhor ou quando a temporada de gripe voltar.

Estamos contando com a vontade divina de nos proteger. Com o milagre do vírus sumir, com um tratamento milagroso de um kit Covid que só com reza funciona para conter o vírus e com o milagre de uma vacina. Vacinas são viáveis e a ciência vem fazendo sua parte, andando a passos largos. Mas quem determina sua eficácia é, em última análise, uma força que não controlamos: nosso sistema imune. Ter uma vacina que dê certo, seja segura e eficaz, fácil de produzir, armazenar e distribuir aos milhões e disponível para todos ainda em 2021 seria algo próximo de um milagre. Da mesma forma que incendiamos o Pantanal com ação humana e a falta de ação federal deixa como saída rezarmos por chuvas.

Agora, o Ministério da Saúde defende tratamento precoce e autonomia de municípios e estados. Traduzindo: contem com a força divina, porque não há tratamento preventivo ou precoce da Covid com comprovação científica. E, se der errado, problema dos municípios e estados, o país não tem nada a ver com isso. Mas medidas, como a compra de reagentes para testes, dependem de uma ação coordenada de um país.

Nos EUA, que passa uma calamidade similar e adotou a mesma postura de cada estado por si, algumas verdades apareceram. O genro de Trump, Jared Kushner, foi pego atrapalhando a estratégia de testagem que deveria gerir, enquanto a Covid atingia mais estados democratas, de oposição, que ele queria responsabilizar. Seu sogro, o presidente, confessou em gravação que sabia sobre o coronavírus ser mais letal do que a gripe e transmitido pelo ar, mas preferiu mentir em público “para não criar pânico”. O resultado são quase 200 mil mortos e um país à beira da sua temporada de Covid com o inverno. No Brasil, com 135 mil mortos, não sabemos se as autoridades que fizeram o mesmo tipo de negação foram só ignorantes ou seguiram a mesma estratégia.

Estamos presos na casa na enchente da parábola. A água está subindo, mas não agimos para sair. Rezamos para que a chuva de casos pare, enquanto ignoramos o barco da quarentena, a canoa do rastreamento de contatos, o helicóptero de uma ação federal contra a pandemia. Deus pode ser brasileiro, mas não fazemos a nossa parte.

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