Mostrando postagens com marcador Atila Iamarino. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Atila Iamarino. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 21 de abril de 2021

A gripe espanhola de 1918 não acabou

Aquele vírus se tornou a linhagem predominante em humanos e porcos e continua circulando e matando

Atila Iamarino

Doenças infecciosas vão embora? Essa é uma pergunta que tem outra conotação, onde se promove a noção de que, se as pessoas se contaminarem com a Covid-19, a doença irá embora graças à imunidade coletiva. Estudo vírus há 16 anos e não conheço um vírus que deixou de circular entre humanos pois infectou todos os vulneráveis. A varíola foi uma virose eliminada pela imunização, mas por meio da vacinação, e depois de matar pelo menos 300 milhões de pessoas no século 20.

Que fim teve a pandemia de gripe de 1918? Esse vírus ainda está entre nós.

O conceito de gripe é antigo. Há séculos temos surtos de doenças respiratórias que chamamos de gripe. Mas só fomos conhecer o vírus influenza em 1931, quando ele foi isolado de porcos e reconhecido como o causador da gripe de suínos desde 1918. E em 1933, inspirados pela descoberta, pesquisadores isolaram de humanos um outro influenza bastante parecido. E conforme outros vírus respiratórios foram isolados de nós, descobrimos um outro influenza, Então o vírus humano isolado em 1933 passou a se chamar Influenza A e o outro, descoberto depois, foi chamado de Influenza B.

Seu nome mudou de novo em 1957. Nesse ano, começando pela Ásia, houve uma pandemia de gripe que varreu o mundo e causou milhares de mortes até ser contida com uma nova vacina. Comparando o Influenza A de 1956 com o de 1957, descobrimos que o vírus havia trocado as partes que nosso sistema imune reconhece pelas proteínas de um influenza aviário. Daí o surto. Para diferenciar um do outro, o Influenza A que circulou até 1956 foi chamado de H1N1 –usando as iniciais das proteínas que mudaram, a Hemaglutinina e a Neuraminidase– e o vírus que tomou seu lugar em 1957 passou a se chamar Influenza A H2N2.

Em 1968, outro surto de gripe começou na Ásia e se espalhou pelo mundo. O vírus H2N2 trocou partes com outro vírus aviário e deu origem ao H3N2, que se estabeleceu entre nós desde então. Ainda hoje podemos ficar gripados com o H3N2. E com o H1N1, que voltou em 1977 e foi substituído pelo H1N1 da gripe suína de 2009.

Mesmo assim, até bem recentemente, não sabíamos qual era o vírus causador da pandemia de 1918, que matou por volta de 7% da humanidade no período. Por décadas se buscava encontrar alguém morto em 1918 que tivesse sido enterrado em solo permanentemente congelado, na esperança de encontrar um pouco de pulmão preservado com um vírus tão letal. O que aconteceu em 1995, quando pedaços de pulmão de corpos preservados no gelo do Alasca e em amostras de tecido em formol permitiram decifrar o genoma do vírus causador da gripe de 1918 e compará-lo com os vírus influenza conhecidos. Era o mesmo Influenza A H1N1 conhecido desde 1933 em humanos.

Ou seja, o vírus que nos atingiu em 1918 não sumiu. Ele se tornou a linhagem predominante em humanos e porcos e continuou circulando, mudando e matando até os dias de hoje. O motivo pelo qual não causa mais tantas mortes como em um século atrás é provavelmente uma combinação de fatores. Atualmente, adultos e idosos, os mais vulneráveis à gripe, já convivem com ela desde a infância e têm imunidade parcial. E essa imunidade é atualizada regularmente com vacinas atualizadas que impedem milhares de mortes.

O influenza não foi embora nem ficou mais leve; foram as pessoas mais vulneráveis que morreram. Incentivar que as pessoas contraiam Covid é passar pelo mesmo tipo de extermínio que sofremos em 1918. O mais digno é pular direto para a parte da história em que as vacinas nos fazem esquecer o quão letal uma nova infecção respiratória pode ser.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Brasil apostou em estratégia genocida para combater covid-19, diz Atila Iamarino

Coronavírus: Brasil apostou em estratégia genocida para combater covid-19, diz Atila Iamarino

Luis Barrucho

Da BBC News Brasil em Londres

O Brasil adotou uma estratégia "genocida" ao apostar na chamada imunidade de rebanho para combater a covid-19, o que possibilitou o surgimento de uma nova variante mais perigosa e que vem causando mais mortes, diz à BBC News Brasil o biólogo e divulgador científico Átila Iamarino.

A imunidade de grupo (também chamada imunidade de rebanho) ocorre quando uma parcela grande o suficiente da população desenvolver uma defesa imunológica contra o coronavírus. Nesse cenário, a doença não consegue se espalhar porque a maioria das pessoas é imune e ela passa a ter grande dificuldade para encontrar alguém suscetível.

O problema dessa estratégia, apontado desde o início por especialistas, é que ela teria um enorme custo humano — muitas mortes aconteceriam até que uma eventual imunidade de rebanho fosse alcançada. Outra questão importante nesse sentido é que não se sabe por quanto tempo a imunidade de alguém infectado pelo Sars-CoV-2 dura, se ela é de curto, médio ou longo prazo.

Em meio ao que especialistas consideram o pior momento da pandemia no país, Iamarino defende a adoção de um confinamento mais rígido e a aceleração da vacinação.

Ele critica ainda o governo federal, que acusa de ter "sabotado" Estados e municípios.

E vaticina que uma catástrofe pode estar prestes a acontecer se o que vimos em Manaus se repetir no restante do Brasil.

Doutor em microbiologia pela Universidade de São Paulo (USP), Iamarino concluiu dois pós-doutorados estudando a disseminação (ele prefere o termo "espalhamento") dos vírus e a forma como esses organismos evoluem. Um desses pós-doutorados foi na própria USP, e o outro na Universidade Yale, nos Estados Unidos.

Em sua carreira, o pesquisador de 37 anos estudou vírus como ebola e HIV.

Iamarino se tornou conhecido por sua participação no canal de YouTube do Nerdologia, um dos maiores do país. Desde o início da pandemia, tem feito transmissões ao vivo sobre o novo coronavírus, com milhões de visualizações.

Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

BBC News Brasil - O Brasil parece viver o pior momento da pandemia, tendo registrado um recorde na média móvel de mortes. A que se deve isso?

Atila Iamarino - Sabemos que há um componente sazonal no novo coronavírus, com mais casos no inverno do que no verão. Portanto, o Brasil está muito adiantado no aumento de casos — isso só deveria estar acontecendo daqui a alguns meses. Mas por que os casos estão subindo tão cedo e tão rápido?

A resposta se deve a uma combinação de fatores. De um lado, houve um movimento de abertura no fim do ano passado, com mais pessoas circulando sem restrições. De outro — e que considero o principal fator — temos a variante P.1, inicialmente observada em Manaus.

Estudos recentes apontam que se trata de uma cepa mais transmissível e que "dribla" o sistema imunológico, reinfectando quem já se curou.

Quando falamos de vírus, é natural que eles sofram mutações e se tornem mais transmissíveis. O que não precisa ser um processo natural é termos linhagens que escapam da imunidade. Essas linhagens só serão selecionadas quando o vírus continua circulando na presença de pessoas que já tiveram o vírus.

Foi o que aconteceu no Brasil e na África do Sul.

Nesse sentido, a nossa variante é fruto direto da estratégia genocida do Brasil de contar com as pessoas circulando livremente e construindo imunidade. Não é por acaso que surgiu aqui uma das variantes mais perigosas, demonstradamente perigosa.

BBC News Brasil - O que as autoridades deveriam ter feito?

Iamarino - O Brasil deveria ter se preparado melhor. Em vez disso, adotamos uma estratégia que cultivou um monstro e que, ao que tudo indica, está causando um surto de casos fora de temporada.

De fato, os hábitos sociais permitiram uma maior circulação do vírus. Apesar de estarmos em um período de baixa transmissão de doenças respiratórias, várias cidades do país já registravam alta ocupação de leitos de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo).

Em vez de decretar um lockdown para restringir a movimentação das pessoas e conter o vírus, a aposta do governo para prover o mínimo de dignidade humana foi e continua sendo criar mais leitos.

Isso é jogar nos profissionais de saúde toda a responsabilidade de resolver o problema. Não se resolvem mortes no trânsito criando mais leitos UTI, mas sim com leis de trânsito. O mesmo se aplica à covid-19. É preciso diminuir o número de casos.

Mas o Ministério da Saúde não faz campanha para o uso de máscara e distanciamento social. Tampouco reconhece o lockdown como medida necessária para conter o avanço da pandemia. Falta coordenação federal para ações locais.

Temos agora um país economicamente pior, socialmente mais cansado e com profissionais de saúde exaustos, explorados e usados da pior maneira possível.

BBC News Brasil - O que nos resta fazer, então?

Iamarino - O que o restante do mundo fez: decretar um lockdown mais rígido e correr com a vacinação. Isso é o mínimo. O problema é essa falta de coordenação a nível federal.

De que adianta um município ou um Estado decretar um confinamento se as pessoas de municípios ou Estados vizinhos continuarem circulando? Isso faz com que a localidade tenha todo o prejuízo econômico e político de confinar sua população, mas sem o sucesso que poderia ter se essa ação fosse coordenada. A falsa impressão é que o esforço não funciona, quando, na verdade, ele está sendo sabotado a nível federal.

Por isso, digo que temos dois inimigos para enfrentar no Brasil. Um é a nova variante e o outro é a falta de estratégia do governo federal.

Como resultado, temos pronta a receita para que mais variantes perigosas surjam.

BBC News Brasil - Se nada for feito, o que acontecer?

Iamarino - Nossa estratégia genocida já causou mais de 250 mil mortes. Manaus (AM) e Araraquara (SP) já registraram mais mortes no início deste ano do que durante todo o ano passado. Se isso se repetir no país todo, vai ser um outro massacre.

Mas o principal problema desse tipo de estratégia é que estamos dando ao vírus a oportunidade de sofrer novas mutações, mais perigosas. Eventualmente, as vacinas podem não ser mais eficazes — e, se esse cenário se concretizar, poderemos não ter mais solução.

O Brasil criou sua própria derrota. Estamos demorando para vacinar e deixando o vírus circular livremente.

Agora, com a escassez global de vacinas, entendo que a situação esteja muito mais difícil. E estamos tentando comprar uma vacina que ainda não tem eficácia comprovada (a indiana Covaxin).

Diferentemente dos Estados Unidos, o Brasil tem capilaridade de vacinação. Há postos de saúde por todo o território nacional que podem dar vazão as doses. Mas agora faltam as doses.

BBC News Brasil - Alguns países, como Israel, já começaram a flexibilizar as regras. O Reino Unido também anunciou o afrouxamento de suas medidas. Em um contexto em que o mundo tenta retomar a normalidade, o Brasil pode se tornar uma pária internacional?

Iamarino - Eu diria que o Brasil vai continuar a pária que virou. Já não podemos viajar para a maioria dos países, nem em condição emergencial, desde antes do surgimento dessa nova variante.

Essa nova linhagem só reforçou o fechamento das fronteiras e essa situação deve permanecer daqui em diante. Se não mudarmos as condições que propiciaram o surgimento dessa variante, vamos gerar outras e estaremos sempre renovando os motivos para o mundo não receber brasileiros.

BBC News Brasil - O senhor foi duramente criticado quando, no início da pandemia, previu que o Brasil teria 1 milhão de mortos. Essa previsão nunca se concretizou. Por quê? Acredita ter se equivocado?

Iamarino - Acredito que os extremos dessas previsões continuam muito válidos. De um lado, países como Coreia do Sul, Taiwan, Austrália, etc, mostraram que o número de mortes pode ser mínimo. Do outro, a mortalidade em locais como Manaus evidenciou que o cenário mais pessimista não é fantasioso.

A capital do Amazonas tem um excesso de enterros até o mês de fevereiro de mais de 430 pessoas por 100 mil habitantes. Se extrapolarmos isso para a totalidade da população brasileira, temos 900 mil mortos.

Se os extremos continuam válidos, o meio do caminho é onde está a faixa de erro e a incerteza. Disso dependem as ações humanas. Há uma série de fatores de que não sabíamos.

Por exemplo, a eficácia das máscaras se revelou muito maior do que esperávamos, principalmente para evitar contaminados de transmitir o vírus para os outros. Tampouco sabíamos qual eficácia as medidas de confinamento teriam.

Estávamos, portanto, lidando com uma doença nova, para a qual não havia dados preliminares.

De qualquer forma, sabemos hoje que o melhor cenário é viável e existe, como observamos na Ásia. E que o pior cenário é possível, como também observamos no interior do Peru, no interior da Bolívia, em Manaus, em países que não são transparentes com os dados e em regiões onde não há estatísticas disponíveis.

À beira do colapso


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

O pandemicídio embalou

As 250 mil mortes por Covid são resultado de escolha consciente da gestão federal

Temos menos de 3% da população mundial, mas 1 em cada 10 pessoas que reconhecidamente morreram de Covid no mundo morreu no Brasil, país que teve um dos dez maiores PIBs do mundo.

Temos outros problemas clamando por atenção entre dólar alto, preço do combustível, ameaças crescentes à democracia, participantes do BBB… Estamos cansados de ficar em casa, longe uns dos outros, cansados dessa rotina imposta. Mas já perdemos pelo menos um quarto de milhão de brasileiros para um pandemicídio. Uma pandemia que resulta de uma escolha consciente de gestão federal, segundo a pesquisa “Direitos na Pandemia”, coordenada pela professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da USP. E nem sinal dos milhões de vacinas que farão falta nos próximos meses.

Pelo monitoramento de profissionais do basquete nos EUA, aqueles infectados pela variante B.1.1.7 parecem passar até mais de oito dias nessa fase transmissível da doença, em vez de transmitirem o vírus por quatro ou cinco dias, como a Covid regular. Esse é um dos fatores que parece tornar essa variante mais transmissível. E segundo diferentes grupos científicos ingleses, essa variante também parece aumentar o risco de hospitalização e morte. A variante P.1, que asfixiou Manaus e explode em casos no Brasil, tem as mesmas mudanças que a B.1.1.7 e outras.

Os 9 milhões e tantos de “casos recuperados” que o Ministério da Saúde promove não querem dizer absolutamente nada agora. Até o final do ano passado, poderiam significar que parte dessas pessoas não pegaria Covid novamente. Mas depois de faltar oxigênio em Manaus, a capital onde se estima que até 75% da população teve Covid no ano passado, essa ilusão acabou.

E a região Norte é só o começo. No ano passado, tivemos um surto do coronavírus regular, que começou em capitais e se interiorizou aos poucos. Passamos por momentos terríveis, mas tivemos tempo de remanejar pacientes das capitais para o interior e vice-versa. Agora a doença já está no país todo. É mais transmissível e possivelmente mais letal. Mais infectados precisam de hospital e passam mais tempo internados. E quem pegou pode pegar de novo.

Na Escócia, os vacinados estão sendo menos hospitalizados. Nos EUA, a mortalidade cai entre residentes de casas de repouso vacinados. Em Israel, os casos caíram com o “lockdown” e as hospitalizações estão caindo entre idosos vacinados. Nada de spray milagroso. E para cada “especialista” bradando que “lockdown” não funciona, tem Austrália, Nova Zelândia, Tailândia, Vietnã, Senegal, Uruguai, China, Finlândia e outros países que seguraram o vírus na base do teste, rastreio de contatos e fechamento estratégico. Nada de tratamento precoce.

Aqui, o Ministério da Saúde não se mobiliza para comprarmos vacinas como um país. Somos no máximo um apanhado sem cabeça de municípios e estados fazendo o que podem para se salvar. A familiaridade com a Covid gera indiferença, mas os leitos estão acabando e a realidade grita. Já vemos cidades menores, como Araraquara, com 100% de ocupação de UTIs. Segurar a Covid dessa forma é a saída mais cara, em termos financeiros e de vidas. E praticamente garante que o maior número possível de pacientes vai ter o pior atendimento possível, pois as unidades e os profissionais de saúde trabalham no limite e qualquer erro vira catástrofe.

Ainda não chegamos na temporada de vírus respiratórios. Variantes ainda não dominam os casos no país. O ano de 2021 mal começou. Mas já registramos mais de mil mortes por dia. Quando teremos um plano nacional de combate à Covid? Quando vamos tratar fechamento estratégico e vacinas como prioridade nacional?

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Negacionismo que mata

Tratamento precoce não tem eficácia contra a Covid e viabiliza mais mortes 
Alguns dizem que tratamento precoce “não tem eficácia comprovada”. Mas essas terapias foram testadas e os estudos demonstraram que não funcionam. Tratamento precoce é comprovadamente ineficaz e viabiliza mais mortes dando a impressão de que algo é feito. Mesmo assim, seguimos recomendando como política oficial de saúde no Brasil, em um negacionismo científico.

Quando muitos estudos com poucos pacientes são feitos em muitos centros, por simples acaso alguns deles podem apontar uma relação que não existe. Falsos experts promovendo tratamento escolhem a dedo estes poucos estudos que mostram benefícios. O mais adequado é se guiar pelos maiores estudos, com mais pacientes e maior poder estatístico, que são inequívocos: tratamento precoce não funciona. Tanto que a União Europeia e a OMS deixaram de testar a cloroquina ainda no primeiro semestre de 2020 e a OMS não recomenda e nem comenta sobre o uso de vermífugos e antiparasitários.

Alemanha e Reino Unido escolhem as medidas de fechamento que adotam de acordo com as dezenas de estudos que quantificaram quanto cada restrição de lockdown reduz a transmissão do vírus e acompanham os resultados com testes. Israel adotou o terceiro lockdown severo e uma vacinação em massa, sabendo que fechar é só parte da estratégia, e já vê uma redução enorme de hospitalizações.

No Brasil, o tratamento precoce dá para as pessoas a falsa segurança de que podem se expor à Covid, como se o kit Covid reduzisse os riscos da doença —comprovadamente não reduz. Dá para aqueles que sofrem a impressão de que algo foi feito, quando o que precisaria ser feito é saneamento básico, rastreio de contatos e testes.

Uma olhada rápida no monitoramento do Duke Global Health Innovation Center mostra que o mundo inteiro sai no tapa por vacinas. Na Europa, ninguém discute tratamento precoce. Seus líderes estão de olho nas farmacêuticas, a ponto de proporem bloqueio de exportação de doses para impedir a venda de vacinas “por fora”, como as que empresários brasileiros tentam comprar.

Nos EUA, o ex-presidente que nos forneceu cloroquina também assinou uma ordem executiva “para garantir que os cidadãos americanos tenham a primeira prioridade para receber vacinas americanas”. A prioridade por vacinas é outra. Como na Índia, que nos forneceu insumos para fazer cloroquina, mas precisou de tempo e diplomacia para fornecer vacinas.

Aqui, o tratamento precoce encobre o prejuízo e a incompetência do Brasil em assegurar e distribuir vacinas. “Não queremos vacina, temos cloroquina”, dizia o cartaz. E dá a impressão de que a catástrofe de Manaus poderia ser evitada com um kit Covid que tem os poderes de cura de um pacote de jujubas, quando seria evitada com distanciamento, fechamento estratégico e gestão pública.

Manaus não é exceção, é o destino da falta de controle. Lá temos variantes do coronavírus com características que foram associadas com maior transmissão e com a possibilidade “realista de [...] um aumento do risco de morte”, segundo o órgão consultivo que aconselha o conselheiro-médico-chefe do governo do Reino Unido. Variantes que já circulam no país. O jogo ficou mais difícil em 2021. E esse curandeirismo que sustenta negligência fica ainda mais perigoso. Não precisamos de tratamento precoce, precisamos de vacinas e distanciamento.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Brasil, 2021

Atila Iamarino

Brasil foi referência mundial em vacinação, amamentação, genéricos e combate ao HIV. Carlos Chagas é o único cientista a descrever completamente uma doença infecciosa.

Em 2021 somos referência mundial em vacina que transforma em jacaré e único país que ainda discute cloroquina.

Vital Brazil desenvolveu alguns dos primeiros soros anti-ofídicos.

Oswaldo Cruz foi referência em combate à febre amarela e varíola.

Carlos Chagas foi o único cientista na história a descrever patógeno, vetor, hospedeiros, sintomas e epidemiologia de uma doença (tripanossomíase).

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O Brasil já foi diferente


Quando o Brasil respondeu à altura

Atila Iamarino

HIV ensinou lições preciosas ao Brasil, fazendo do país exemplo para o mundo

A Covid-19 não é a única pandemia em curso. Vários vírus vindos de animais nos atormentam. E o caminho que o seguimos na pandemia de HIV ensina lições preciosíssimas que fizeram do Brasil exemplo mundial.

Em 1983, quando a África do Sul reconheceu seus dois primeiros casos de Aids, o Brasil já tinha mais de 40. Os dois países reconheceram a pandemia de HIV em anos próximos, mas seguiram caminhos bem diferentes.

Segundo o Global Burden of Disease (Estudo Global do Fardo de Doenças, tradução livre), em 1990, os dois tinham cerca de 0,2% da sua população diagnosticada com HIV. Em 2017, último ano com resultados mundiais do estudo, o Brasil tinha por volta de 930 mil infectados (0,6% da população), enquanto a África do Sul tinha 6,7 milhões, ou por volta de 18% da sua população. E a história de como seguimos caminhos soa bem familiar.

Quem passou pela década de 1990 certamente lembra do caminho brasileiro. Enfrentamos o vírus falando em todas as mídias sobre o perigo da Aids e a importância da camisinha. Ao invés de fingir que estaria tudo bem, tratamos de sexo tanto que o nome Bráulio ainda é marcado. Um Ministério da Saúde presente e com ações em todos os níveis, de municipais a federal, instituímos testes de bolsas de sangue e testes gratuitos e anônimos para quem quiser descobrir se teve contato com o vírus em muitos países o teste é pago.

ONGs ajudaram a tirar o estigma de doença gay e sensibilizar a população como um todo. Instituímos terapia gratuita para quem se expôs sem querer (a Profilaxia Pós-Exposição ao HIV ou PEP) e terapia para soropositivos. com direito a quebra de patente de antivirais, o que parece um gasto, até economizarmos em internações e tratamento de quem não desenvolveu Aids.

Viramos referência mundial. De acordo com um dos vários estudos internacionais que elogiaram nossa ação, evitando internações, o Brasil pode ter poupado 2,2 bilhões de dólares entre 1996 e 2004. É mais barato prevenir complicações do que tratar doentes, especialmente com UTI.

Enquanto isso, a África do Sul foi por um caminho terrível. O Ministério da Saúde do país não interagia com organizações não governamentais, e em 1994 sua reorganização complicou muito o combate ao vírus, pois a responsabilidade foi transferida para as províncias que ainda dependiam de recursos federais.

Em 1999, a situação ficou pior. O presidente sul-africano eleito Thabo Mbeki ignorou o consenso científico e seguiu a linha de negacionistas internacionais, um deles nobelista, que diziam que o perigo do HIV era exagerado. Para eles, a Aids era uma doença causada por fraqueza.

Mbeki ignorou recomendações internacionais de órgãos como a OMS e não realizou campanhas nacionais de prevenção e testagem preventiva.

Mesmo com casos aumentando e milhões de sul africanos contraíram HIV, Mbeki continuava propagandeando uma terapia controversa rejeitada pela ciência, que já promovia antes de ser eleito.

Um composto chamado virodene, capitaneado por Olga Visser, uma pesquisadora da Universidade de Pretoria que mentiu sobre seu vínculo com uma instituição de medicina portuguesa. O composto acabou sendo testado em hospitais militares e não funcionou.

Empresários associados à Mbeki aparentemente estavam lucrando com o investimento do governo no virodene. Hoje, praticamente um quinto do país tem HIV e a estimativa de vários estudos é que a negligência do presidente resultou na morte evitável de mais de 350 mil sul africanos.

Quanto ao caminho que seguimos com a Covid-19, a maior dúvida é quantas mortes evitáveis teremos.

Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale.

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

À deriva e contando com Deus


Atila Iamarino

A queda de mortes por Covid é tão opaca quanto o céu enfumaçado de Cuiabá 

Enquanto escrevo, o Brasil está em um período de queda de mortes por Covid-19. Até quando e até onde vai, não sabemos. O atraso de registros e a falta de testes deixam o cenário tão opaco quando o céu de Cuiabá com a fumaça do Pantanal. Com certeza tem muito esforço por trás dessa queda, trabalho de profissionais de saúde, prefeitos, governadores e quem mais tenta fazer sua parte. Mas nossa situação é tão descoordenada que não reconhecemos uma causa universal.

Em países europeus, puderam medir o efeito de cada decisão na redução de casos: fechamento de escolas, de comércio, proibição de aglomerações e afins, já que foram medidas federais acompanhadas de testes. Aqui, a explicação mais próxima da realidade que ouvi foi a fala de Mandetta ainda em março, dizendo que a Covid-19 seria sazonal e veríamos uma redução de casos parecida com a da gripe, entre o final de agosto e começo de setembro.

Se for sazonalidade que nos poupa, ótimo agora, ruim a longo prazo. Ótimo porque os casos estão caindo, vidas estão sendo salvas e realmente precisamos de um descanso para poder retomar a vida viável. Ruim a longo prazo, porque significaria que o que controlou nossa pandemia foram forças da natureza. Ou seja, boa sorte se precisarmos controlar melhor ou quando a temporada de gripe voltar.

Estamos contando com a vontade divina de nos proteger. Com o milagre do vírus sumir, com um tratamento milagroso de um kit Covid que só com reza funciona para conter o vírus e com o milagre de uma vacina. Vacinas são viáveis e a ciência vem fazendo sua parte, andando a passos largos. Mas quem determina sua eficácia é, em última análise, uma força que não controlamos: nosso sistema imune. Ter uma vacina que dê certo, seja segura e eficaz, fácil de produzir, armazenar e distribuir aos milhões e disponível para todos ainda em 2021 seria algo próximo de um milagre. Da mesma forma que incendiamos o Pantanal com ação humana e a falta de ação federal deixa como saída rezarmos por chuvas.

Agora, o Ministério da Saúde defende tratamento precoce e autonomia de municípios e estados. Traduzindo: contem com a força divina, porque não há tratamento preventivo ou precoce da Covid com comprovação científica. E, se der errado, problema dos municípios e estados, o país não tem nada a ver com isso. Mas medidas, como a compra de reagentes para testes, dependem de uma ação coordenada de um país.

Nos EUA, que passa uma calamidade similar e adotou a mesma postura de cada estado por si, algumas verdades apareceram. O genro de Trump, Jared Kushner, foi pego atrapalhando a estratégia de testagem que deveria gerir, enquanto a Covid atingia mais estados democratas, de oposição, que ele queria responsabilizar. Seu sogro, o presidente, confessou em gravação que sabia sobre o coronavírus ser mais letal do que a gripe e transmitido pelo ar, mas preferiu mentir em público “para não criar pânico”. O resultado são quase 200 mil mortos e um país à beira da sua temporada de Covid com o inverno. No Brasil, com 135 mil mortos, não sabemos se as autoridades que fizeram o mesmo tipo de negação foram só ignorantes ou seguiram a mesma estratégia.

Estamos presos na casa na enchente da parábola. A água está subindo, mas não agimos para sair. Rezamos para que a chuva de casos pare, enquanto ignoramos o barco da quarentena, a canoa do rastreamento de contatos, o helicóptero de uma ação federal contra a pandemia. Deus pode ser brasileiro, mas não fazemos a nossa parte.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

É mais produtivo olhar onde as pessoas colocam o dinheiro que ouvir o que dizem


Quando a carteira fala mais alto

Atila Iamarino

Gosto muito da expressão “put your money where your mouth is”, algo como “coloque seu dinheiro onde sua boca está” —perdão pela ignorância se tivermos algo equivalente. É como dizer: se o que você fala é isso tudo mesmo, por que não aposta? O inverso é bem válido. Costumo achar mais produtivo olhar para onde as pessoas estão colocando o dinheiro delas do que o que falam. Assim entendemos o negacionismo.

Ainda temos uma discussão sobre o papel humano no aquecimento global, como se a questão estivesse em aberto, graças ao financiamento de campanhas de desinformação por companhias de petróleo como a Mobil Oil. A mesma empresa que desenhou plataformas de exploração perto do Ártico que dependem do derretimento do gelo para serem viáveis. Plataformas que são construídas levando em consideração o aumento do nível do mar. Aquele aumento que em público dizem ser um exagero.

Um esforço conjunto da faculdade de jornalismo de Columbia, a Columbia University Graduate School of Journalism, e do jornal Los Angeles Times mostrou como as grandes produtoras de petróleo mundiais, como a Exxon, construíram plataformas, dutos e estradas se prevenindo contra tempestades mais severas ou o aumento do nível do mar previstos pelos modelos climáticos que descrevem o aquecimento global. Preveniram-se do aquecimento que ajudam a causar. A boca dizia que isso é um mito, que as mudanças são incertas e os modelos climáticos estão errados. A carteira pagava para proteger os investimentos contra esse mito, usando os modelos, desde pelo menos 1989! No que acreditar? Tendo a achar que ações falam mais alto.

A Covid-19 é um risco ou um exagero? Muitos empresários, cujo sucesso depende de entender projeções matemáticas, crescimento exponencial e estatística básica, defendem que a quarentena está acabando com a economia e deveríamos retomar a vida normal. Seus funcionários deveriam ter escolas funcionando onde deixar os filhos. O comércio já deveria ter normalizado. As pessoas precisam trabalhar. Vários ótimos argumentos. Feitos pelos empresários da segurança de casa, claro. Do autoisolamento. Até vemos negadores circulando, abraçando pessoas na rua e sem máscaras. Mas entre quem tem um pouco de inteligência, a história é outra.

Entre empresas que vivem de inteligência de dados, como o Google, todo mundo entrou em home office desde o começo de março, e vai continuar até o meio de 2021. Pelo menos. Uma empresa que analisa dados e tendências entre as mais valiosas do mundo já tinha mandado seus funcionários para casa antes dos países começarem a decretar quarentena. E não vai trazê-los de volta tão cedo. Mas funcionários do Google podem trabalhar remotamente. E quem não pode, o que faz? Que tal olhar para onde vai o dinheiro de novo.

Enquanto alguns de seus cidadãos se negam a usar máscaras, os EUA tentaram impedir a fabricante de máscaras 3M de exportar o equipamento produzido no país para o Canadá e a América Latina. Máscaras deveriam ser de americanos. Além de comprar doses prioritárias de várias vacinas em desenvolvimento, também tentaram comprar a exclusividade da candidata alemã CureVac. Não uma dose, não boa parte das doses, todas.

Nós distribuímos “kit Covid” para as pessoas retomarem a vida, uma combinação de cloroquina e ivermectina que tem a mesma comprovação para prevenir a doença que uma fitinha do Senhor do Bonfim, mas com efeitos adversos. Já os EUA compraram praticamente toda a produção inicial do medicamento remdesivir, porque ele parece ser promissor, ao mesmo tempo que nos mandaram a cloroquina que não estão usando. Trump defende que cloroquina funciona. Eu prefiro olhar para onde ele coloca o dinheiro.


Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Agora morrem meros cidadãos, não desembargadores, moradores de Alphaville nem engenheiros

Atila Iamarino

100 mil mortes, e abrimos escolas

Uma vez, esperando minha carona na USP, vi uma torneira pingando. Ao redor, já crescia limo e musgo no cimento. Meu primeiro pensamento foi “quanto tempo faz que não arrumam isso?”. Seriam necessários meses de água pingando para suprir aquela vida toda.

Levantei e tentei fechar a torneira. Para minha surpresa, nem quebrada estava. Como a água gasta por uma instituição pública era recurso “sem dono”, aparentemente ninguém se preocupou em fechar.

Lembro disso toda vez que ouço a água vazando no banheiro do vizinho de cima, situação recorrente nos prédios onde morei e onde a água é embutida no condomínio. Onde o custo do desperdício não cai no bolso de quem desperdiça.

A Covid-19 me lembra o mesmo. Enquanto eram italianos morrendo na TV, tínhamos aplausos e todo mundo em casa. Enquanto os leitos ocupados eram do Sírio-Libanês ou do Albert Einstein, cidades entraram em quarentena. Mas a doença foi se popularizando. E as “vidas que mais importam” passaram a ser poupadas.

A análise de mobilidade mundo afora mostra isso. Antes da pandemia, os mais ricos eram os que mais saíam de casa. Enquanto os mais pobres, que muitas vezes não têm o dinheiro da condução, eram os que tinham menos mobilidade.

Depois da pandemia, a relação se inverteu. Os mais ricos, agora, são os que mais ficam em casa. Podem trabalhar remotamente, fazem compras esporádicas que estocam e recebem encomendas na portaria.

Os mais pobres precisam se expor para trabalhar, porque a renda só permite comprar as necessidades da semana, ou porque precisam servir quem paga. A Covid agora atinge muito mais os desfavorecidos.

As mortes passaram a preocupar menos. Quem paga a conta da nossa estratégia, ou da falta de estratégia de combate à pandemia, não são os que decidem. São meros cidadãos que morrem. Não são desembargadores, moradores de Alphaville nem engenheiros.

Em agosto, passamos de 100 mil brasileiros oficialmente mortos por Covid. Mais do que outros problemas de saúde como o câncer, uma das maiores causas de morte, levaram no período. Sem falar das mortes sem teste, mortes por outros problemas de saúde que ficaram sem leito ou ambulância... Mas não preocupam.

Não temos pronunciamentos oficiais, não temos ministro da Saúde, não temos rastreio de contatos, não temos estratégia federal, não temos, não temos e não temos.

A polêmica da voltas às aulas reflete bem a preocupação mal direcionada. Socialização é fundamental para as crianças, e as perdas por ficarem em casa vão marcar uma geração.

Mas, para escolas serem seguras, o surto de Covid na região precisa ser contido.

Vários países europeus retomaram aulas sem muitos percalços porque controlaram a pandemia e têm escolas pequenas, poucos alunos por sala.

Onde as turmas são maiores e o surto segue descontrolado, como Israel e os EUA, uma escola tem surto de Covid poucos dias depois de abrir. Isso porque testam mais e têm como perceber os casos.

Enquanto o coronavírus circula sem controle em uma comunidade, não tem medida de distanciamento que uma escola adote que impeça alunos de entrarem com o vírus. E, se crianças e adolescentes não fazem parte do grupo de risco, profissionais que os atendem fazem. Professores convivem com dezenas ou centenas de alunos. Basta um ter o vírus.

Mas, assim como quem paga a conta de água não é quem deixa a torneira vazando, cobramos das escolas uma solução para as crianças em casa em vez de resolvermos o vazamento. Ou de cobrarmos das autoridades responsáveis.

Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Os tipos de ignorância na Covid


A forma ativa, na qual se gasta energia para se manter a ignorância, é a mais preocupante
Nossa ignorância a respeito da Covid se comporta um pouco como a pandemia. Diminuindo aqui e ali, mas em alguns pontos vai bem, obrigado, e crescendo. Estudar ignorância é traçar uma fronteira clara: a partir daqui, não sabemos mais. O que transforma o que não sabemos que não sabemos no que sabemos que não sabemos, parafraseando Donald Rumsfeld.

Temos a ignorância nativa, o que não se sabe porque é desconhecido. Quanto tempo quem se curou continua protegido? Quão sazonal é o vírus? Teremos um descanso no verão? De onde veio o vírus? Essa ignorância estamos resolvendo com a ciência. Já temos 4 vacinas candidatas em teste, prontas para responder algo fundamental: será que funcionam?

Temos a ignorância passiva. O que deixamos de saber porque não há tempo para se saber tudo. Pesquisadores de diversas áreas deixaram de lado sua vocação tradicional e suas áreas de estudo para entenderem a pandemia que parou o mundo. E provavelmente muitos não voltarão ao que faziam antes.

Mas tem um tipo de ignorância mais preocupante. A ignorância ativa. Aquela que se gasta energia e tempo para se criar e se manter. Por vezes, é um esforço desejável. As empresas que desenvolvem e testam as vacinas candidatas atuais mantém a formulação do que testam e o andamento dos testes sigiloso, por questões de mercado, de propriedade intelectual e de privacidade dos voluntários. Mesmo assim, algumas foram invadidas por hackers que estavam justamente atrás dessa informação valiosa.

Outras vezes é um esforço também ativo, mas sigiloso, feito para a manter o público propositalmente ignorante sobre algo. Um esforço que vai desde a tentativa de mascarar dados, ocultar números, até atitudes mais insidiosas como dificultar a testagem para Covid. E como a realidade da pandemia tem se tornando cada vez mais difícil de ignorar, pelo menos em terras brasileiras, esse esforço para manter as pessoas ignorantes fica cada vez mais agressivo.

É aqui que entra a polarização da pandemia e a disputa de identidades. Humanos são animais sociais. E se tem uma forma de nos fazer ignorar a realidade, é condicionar nossa presença em um grupo a isso. Quer fazer parte do seu grupo querido, onde estão suas pessoas queridas? Aqui todos acreditam nesse pacote de ideias. Não se pode questionar nenhuma delas. Eles fazem do jeito deles, nós fazemos do nosso e não tem mistura. Quem fez algo errado? Foi alguém do outro grupo? Então é abominável. Foi alguém do seu grupo? Nem é aquilo tudo. Foi o líder? Com certeza teve motivos nobres para fazer o que fez.

É assim que se nega evolução. É assim que se nega o aquecimento global. É assim que se empurram tratamentos que não funcionam contra a Covid.

Mas com vacinas, não dá para se ter uma disputa de times. Não é uma questão de "quem gosta toma vacina, quem não gosta toma cloroquina". Não se vacinar é como dirigir bêbado, coloca a sua vida e a vida dos outros em risco. É uma atitude muito mais coletiva do que parece.

Nem todos podem ser vacinados, como transplantados e outros imunocomprometidos. E nem todos que tomam a vacina se imunizam. Então, para se garantir que a população esteja protegida, quanto mais contagiosa a doença e quanto menor a eficiência de uma vacina, mais pessoas precisam ser vacinadas.

Para parar a Covid e retomar nossa vida, provavelmente vamos precisar dos dois. Manter distanciamento e máscaras para diminuir seu contágio. E vacinar uma grande proporção da população, provavelmente mais de 70%, antes de quem está em risco poder circular sem medo.

Em se tratando de ignorância, vacinas são como a democracia, a ignorância alheia também me põe em risco.

Atila Iamarino
Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube.

terça-feira, 30 de junho de 2020

O que leva alguém a não usar máscara contra a Covid-19?


Atila Iamarino
Mais informação não altera atitudes em relação à ciência
Pergunte a qualquer pessoa o que um gráfico decrescente quer dizer e a maioria intui que é uma quantidade caindo com o tempo. Mas basta misturar um pouco de disputa ideológica e um fenômeno interessante acontece.

Se você rotular o gráfico como quantidade de gelo na Antártida ao longo do tempo e perguntar de novo, quem nega que o aquecimento global exista passa a interpretar o gráfico de maneira errada. E quanto maior o grau de educação, maiores as chances de a pessoa errar na interpretação e arrumar uma boa desculpa para isso.

E aquecimento global não é o único alvo polarizado sobre o qual as pessoas erram propositalmente ao serem perguntadas. A academia americana de ciências pergunta regularmente se as pessoas acreditam que o universo começou com o Big Bang. Apesar do avanço da ciência e todo gasto com educação e divulgação científica dos EUA, a taxa de acerto tem se mantido em 40% desde pelo menos 2012.
É uma pergunta com duas alternativas, sim ou não. Se as pessoas estivessem chutando uma resposta, acertariam metade das vezes. Essa quantidade de “erros” não é por acaso.

Quando mudaram a pergunta para “De acordo com astrônomos, o universo começou com o Big Bang?”, em 2016, quase 70% dos respondentes acertaram que sim.

A maioria dos americanos entrevistados sabe que essa é a visão científica, só não concordam com a ciência. Metade dos entrevistados que “erraram” não o fizeram por falta de informação mas sim porque discordam da realidade.

Esse fenômeno do raciocínio politicamente motivado passando por cima do que diz a realidade não é exclusivo de áreas científicas; só fica mais evidente aqui pois o consenso científico é menos rotulável como opinião. Mas a própria divulgação científica frequentemente ignora o fenômeno e ainda assume que se as pessoas pelo menos tivessem acesso à informação, veriam a verdade.

Ainda se descrevem os erros em pesquisas públicas sobre evolução como “falta de familiaridade com o tema”. E agora nós vemos essa negação colocando a saúde das pessoas diretamente em risco. Ceticismo sobre casos, ceticismo sobre medidas, até as mortes por Covid-19 se tornaram mortes de “pessoas com Covid-19”.

Movimentos de direita nos EUA inauguram o ceticismo sobre as máscaras, que seriam movimento da esquerda para domar as pessoas. Pergunte para uma asiática se as máscaras funcionam e ela vai responder, de máscara, que com certeza. Pergunte a um brasileiro e é questão de tempo até ele colocar em dúvida, como líderes políticos vêm fazendo. Como já fizemos com as vacinas.

Aliás, vacinas contra o coronavírus serão outro problema. Parece que todos estão esperando sua dose para voltar a rua, mas, dependendo da vacina que der certo, a história pode ser bem diferente.

Se a primeira vacina disponível vier de uma empresa com “sino” no nome, conspirações contra a “vacina chinesa” certamente farão da Covid-19 um problema mais persistente, como ainda é o sarampo.

O livro “ The Knowledge Illusion” define muito bem o que acontece. As atitudes em relação à ciência não são determinadas por uma validação racional de evidências. Por isso, mais informação não muda essas atitudes. As atitudes científicas são determinadas por fatores contextuais e culturais que as fazem muito resistentes à mudanças.

Ou seja, se sua comunidade acha usar máscaras uma afronta à liberdade ou qualquer outra indignação nociva dessas, não serão mais fatos ou mortes que vão convencer essas pessoas a colocarem máscaras. O mesmo acontecerá com vacinas. Por mais vidas que estejam colocando em risco. A solução, nesse caso, não é dar mais informação mas sim cobrar uma postura da mesma maneira que fazemos com cintos de segurança. Vacinas talvez precisem ser impostas, assim como o uso de máscaras.

Atila Iamarino
Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

sábado, 20 de junho de 2020

O que pareceria absurdo meses atrás, agora virou corriqueiro


Atila Iamarino

Brasil, rumo a 1 milhão de recuperados 
Não pergunte o que aconteceu com os 50 mil brasileiros fora do Placar da Vida 
Com 1 milhão de casos confirmados de Covid-19 e cerca de 50 mil mortes, atingimos um patamar que pareceria absurdo meses atrás, agora corriqueiro. Com problemas políticos que fazem a maior pandemia do século virar preocupação secundária, cidades reabrem e retomamos atividades como se estivéssemos em março.

Mas precisaremos de um pouco de inferência para reconstruir a situação atual. A velocidade da luz é como nossa indignação, limitada. Então, quando você olha para o céu noturno, vê como as estrelas que nos iluminam estavam anos atrás, quando a luz que aqui chega partiu delas.

Se o Sol desaparecesse, notícia de segunda página no Brasil atual, os afortunados com quintal demorariam oito minutos para dar por falta dele. Olhar números brasileiros é como olhar o céu noturno de uma cidade grande: é impossível de ver tudo e o que vemos é uma imagem do passado.

Com a falta crônica de testes, estimativas variam de 7 a 12 vezes mais casos de coronavírus do que o registrado. E ainda temos o atraso entre os boletins municipais de casos e o consolidado pelas secretarias estaduais. Isso garante que o patamar de 1 milhão de infectados por Covid-19 foi atingido ainda no começo de maio.

Mortes são outra imagem atrasada. Entre óbito, diagnóstico de Covid-19, que leva dias, registro em cartório e comunicação dos órgãos oficiais, os números reais de mortes são entre 1,6 e 2,7 vezes maiores do que as registradas até então. O que diz que, ao atingirmos o patamar de 50 mil mortes registradas, o número real de mortes com diagnóstico fica entre 80 mil e 135 mil.

Ainda tem as mortes não diagnosticadas. Passamos por um surto de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) dezenas de vezes maior que de anos anteriores. Síndrome que atinge mais os grupos de risco para Covid-19, como homens acima de 60, cresce como Covid-19, mata com sintomas de Covid-19, mas atinge mais regiões que testam pouco para Covid-19. Como Paraná, Minas Gerais e Mato Grosso.

Segundo a Lagom Data, temos uma morte por SRAG para cada duas a três mortes por Covid-19. Sobram mortos e falta diagnóstico. Considerando mortes por causas naturais (o que inclui SRAG), como o epidemiologista Otavio Ranzani estimou até o fim do mês de abril, o diagnóstico de Covid-19 explicava menos de 40% das mortes acima da média de anos anteriores.

E graças ao número desatualizado de SRAG e síndrome gripal no site do Ministério da Saúde, esse céu está cada vez menos visível. No seu lugar, entrou o placar da vida, com o animador número de vidas salvas de quem se curou.

Seguimos olhando para o pouco que dá. O crescimento de casos do Brasil aparenta ter se estabilizado. Na falta de um plano federal de ação coordenada, a explicação do que passamos só pode ser suposta. Pode ser pela ação dos líderes locais, pode ser pela maior conscientização dos brasileiros, pode ser que a Covid-19 siga a sazonalidade da gripe descendo de norte a sul do país entre abril e agosto.

Amazonas e Pará registram mais mortes na região Norte e tiveram uma queda contínua nas últimas semanas. Ceará e Pernambuco lideram casos na região Nordeste e passaram pelo mesmo. Mas no país como um todo, os números se balanceiam, pois os casos e mortes se estabilizaram na região Sudeste enquanto crescem no Centro Oeste e na região Sul.

A maioria dos novos casos já se concentra fora de capitais, onde logo devem causar mais mortes. Quando o país completa dois meses sem um plano e mais de um mês sem um ministro da saúde, registramos em média 30 mil casos de Covid-19 por dia, então em mais um mês podemos dobrar a marca simbólica do milhão.


Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

sábado, 6 de junho de 2020

Número real de mortes por Covid-19 pode chegar a 60 mil

Atila Iamarino

Contando mortes em excesso, mortes acima da média de anos passados, temos 26.548 óbitos até 21/05. Além das mortes por COVID-19. São pelo menos mais de 25 mil mortes além das 35 mil mortes oficiais. É isso que querem varrer pra baixo do tapete sem testes e sem boletins.


E como está a morte em excesso no Brasil como um todo no ano de 2020 e por idade, sexo e aqueles ocorrendo em casa?

O gráfico mostra o acumulado de óbitos diários entre 2020 menos 2019, por causas naturais de 01/01/2020 até 21/05/2020.

Por idade:

Maior excesso nos >60 anos (quase totalidade por COVID19), porém excesso de óbitos nos de 40-59 e mais de 20 anos. 

Menos óbitos nos abaixo dos 20 anos (fato já observado em outros países)

Idade ignorado não entrou na classificação (pouquíssimos).

Por sexo:

Padrão por idade se mantém em cada sexo, porém excesso maior no sexo masculino, como esperado pelo que já sabemos pelo COVID19
Mortes em excesso nos domicílios e por idade.

Mesmo padrão nas idades, porém imenso excesso de mortes em domicílio. Poucas codificadas como confirmada ou suspeita de COVID19.
Os dados são preliminares, pois o registro civil atualiza a cada 6/8 horas. Eu, @turicas @Capyvara @lucaslago @barbalhofernand @rfsaldanhario @thomasfujiwara etc estamos discutindo e monitorando os atrasos há semanas. Já podemos dizer que conseguimos um log dos atrasos que se estabilizam por volta de 14 dias. Mas é desigual por estados e por municípios, sendo muito melhor em uns, mais atrasados em outros, melhor nas capitais.

E claro, o atraso de 2019 é mínimo comparado ao 2020. Ou seja, estas estimativas parecem ser conservadoras. 

Por isso escolhi dia 21/05 (14 dias atrás). Também para evitar ficar selecionando datas ao acaso, como se tem feito, comecei de Janeiro e vim adicionando 1 a 1. Diário tem menos efeito atraso que por semana. Tb se pode fazer média móvel se não for fazer acumulado como fiz


Resolvi colocar Brasil geral para termos a ideia do problema, caso não tenha ficado claro. Imaginem, o COVID, com os atrasos do Registro Civil, com o tamanho do país, que tem uma linha de base imensa para ser perturbada e mostrar o excesso, já observamos isso. E não só idosos.

terça-feira, 12 de maio de 2020

Governo genocida deixará o Brasil sem vacina por opção

Atila Iamarino 

Se não pensou nas consequências, eu desenho. A União Europeia montou um fundo de pesquisa e desenvolvimento de vacinas e todos os países poderiam contribuir. O Brasil, nona economia do mundo, não quis participar. Vamos ficar sem vacina por opção.

Fomos um dos últimos países grandes a ter casos, temos universidades e centros de pesquisa, temos médicos formados, temos sistema público de saúde. Nós cavamos o buraco onde nos encontramos agora, não deixem transferirem a culpa pra fora ou dizer que foi surpresa. 


segunda-feira, 4 de maio de 2020

O lockdown vem aí



Atila Iamarino

Uma atualização sobre a situação brasileira. Como está muito certo que a letalidade da COVID-19 realmente é alta e os números do país podem ser bem sérios. Uma discussão sobre os índices de subnotificação e quantos casos podemos estar perdendo e análise que mostram que o crescimento da COVID-19 no Brasil está entre os piores do mundo. E uma análise de quais regiões do país estão pior e porque várias cidades devem (ou pelo menos deveriam) entrar em lockdown pelos próximos dias, a exemplo de São Luis no Maranhão.

domingo, 3 de maio de 2020

Os seis estágios do negacionismo