segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Agora morrem meros cidadãos, não desembargadores, moradores de Alphaville nem engenheiros

Atila Iamarino

100 mil mortes, e abrimos escolas

Uma vez, esperando minha carona na USP, vi uma torneira pingando. Ao redor, já crescia limo e musgo no cimento. Meu primeiro pensamento foi “quanto tempo faz que não arrumam isso?”. Seriam necessários meses de água pingando para suprir aquela vida toda.

Levantei e tentei fechar a torneira. Para minha surpresa, nem quebrada estava. Como a água gasta por uma instituição pública era recurso “sem dono”, aparentemente ninguém se preocupou em fechar.

Lembro disso toda vez que ouço a água vazando no banheiro do vizinho de cima, situação recorrente nos prédios onde morei e onde a água é embutida no condomínio. Onde o custo do desperdício não cai no bolso de quem desperdiça.

A Covid-19 me lembra o mesmo. Enquanto eram italianos morrendo na TV, tínhamos aplausos e todo mundo em casa. Enquanto os leitos ocupados eram do Sírio-Libanês ou do Albert Einstein, cidades entraram em quarentena. Mas a doença foi se popularizando. E as “vidas que mais importam” passaram a ser poupadas.

A análise de mobilidade mundo afora mostra isso. Antes da pandemia, os mais ricos eram os que mais saíam de casa. Enquanto os mais pobres, que muitas vezes não têm o dinheiro da condução, eram os que tinham menos mobilidade.

Depois da pandemia, a relação se inverteu. Os mais ricos, agora, são os que mais ficam em casa. Podem trabalhar remotamente, fazem compras esporádicas que estocam e recebem encomendas na portaria.

Os mais pobres precisam se expor para trabalhar, porque a renda só permite comprar as necessidades da semana, ou porque precisam servir quem paga. A Covid agora atinge muito mais os desfavorecidos.

As mortes passaram a preocupar menos. Quem paga a conta da nossa estratégia, ou da falta de estratégia de combate à pandemia, não são os que decidem. São meros cidadãos que morrem. Não são desembargadores, moradores de Alphaville nem engenheiros.

Em agosto, passamos de 100 mil brasileiros oficialmente mortos por Covid. Mais do que outros problemas de saúde como o câncer, uma das maiores causas de morte, levaram no período. Sem falar das mortes sem teste, mortes por outros problemas de saúde que ficaram sem leito ou ambulância... Mas não preocupam.

Não temos pronunciamentos oficiais, não temos ministro da Saúde, não temos rastreio de contatos, não temos estratégia federal, não temos, não temos e não temos.

A polêmica da voltas às aulas reflete bem a preocupação mal direcionada. Socialização é fundamental para as crianças, e as perdas por ficarem em casa vão marcar uma geração.

Mas, para escolas serem seguras, o surto de Covid na região precisa ser contido.

Vários países europeus retomaram aulas sem muitos percalços porque controlaram a pandemia e têm escolas pequenas, poucos alunos por sala.

Onde as turmas são maiores e o surto segue descontrolado, como Israel e os EUA, uma escola tem surto de Covid poucos dias depois de abrir. Isso porque testam mais e têm como perceber os casos.

Enquanto o coronavírus circula sem controle em uma comunidade, não tem medida de distanciamento que uma escola adote que impeça alunos de entrarem com o vírus. E, se crianças e adolescentes não fazem parte do grupo de risco, profissionais que os atendem fazem. Professores convivem com dezenas ou centenas de alunos. Basta um ter o vírus.

Mas, assim como quem paga a conta de água não é quem deixa a torneira vazando, cobramos das escolas uma solução para as crianças em casa em vez de resolvermos o vazamento. Ou de cobrarmos das autoridades responsáveis.

Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale.

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