Antiantirracismo
Sabemos que, ainda hoje, há uma prática no Brasil de simplesmente negar o racismo. Todo aquele discurso eugênico de embranquecer o país, que prevaleceu até os anos 1930, deu lugar à ideia de democracia racial, supostamente evidenciada pela miscigenação.
Anos antes da Abolição, foi aprovada a Lei Saraiva (1881), que negava aos analfabetos o direito de votar. Na virada do século 19, os alfabetizados representavam 15% da população. Entre os negros, esse número, considerados censos latino-americanos com recorte racial (Cuba e Porto Rico), devia girar em torno de 2%.
Essa realidade só veio mudar com o fim da ditatura militar, cem anos depois, em 1985, quando a taxa de analfabetismo no Brasil ainda era de 22%. A de negros, de cerca de 36%. O povo passou a votar.
A luta pela universalização do direito à educação ganhou impulso. E logo os negros bateram à porta da universidade, que permanecia fechada. Vieram o Prouni (2004), o Reuni (2007), o Enem/SiSu (2009) e as cotas (2012), que a abriram.
Depois de muita pressão social, a questão do racismo foi assumida e, por meio de políticas afirmativas, iniciou-se um processo de reparação histórica.
Houve novos incidentes racistas nesta semana nos EUA. Depois de George Floyd, outro negro, Jacob Blake, foi vítima de violência policial. Os policiais americanos, acusados de racismo, defendem-se como podem. No primeiro caso, em que Floyd teve o pescoço pressionado contra o asfalto por nove minutos, alegam suicídio por overdose. No segundo, em que Blake foi alvejado sete vezes pelas costas, dizem que a vítima tentou pegar uma faca no carro.
As reveladoras cenas, que acontecem rotineiramente no Brasil, transformaram cidades americanas em praças de guerra. O movimento americano Vidas Negras Importam vem ganhando apoio no mundo, inclusive aqui.
O clã governamental, por meio do filho "diplomata", resolveu tomar partido. Eduardo Bolsonaro foi às redes sociais, no que foi seguido por "jornalistas chapa-branca", para se insurgir contra o movimento antirracista.
O caso do dossiê do Ministério da Justiça dá uma pista do que está em curso. O governo decidiu fichar e monitorar professores e policiais antifascistas. Se numa democracia plena eles seriam dignos de homenagem, aqui estes profissionais sofrem uma ação antiantifascista por parte do governo, refreada pelo STF.
Alinhado a isso, Bolsonaro inaugura um novo modo de lidar com o racismo. Ele não o nega, faz mais: condena o antirracismo. Onde isso vai dar?
A pregação antiantirracista pode acirrar os ânimos ou reacomodar um dos traços mais característicos da nossa infeliz formação nacional.
Fernando Haddad
Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo
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