Não é preciso muito para convencer conservadores a caçar hereges

Oitenta concubinas

Luis Fernando Verissimo

Epifânio era um bispo conhecido pelo rigor dos seus princípios. No século IV, quando a Igreja definia seus próprios dogmas em longos debates, Epifânio representava a ortodoxia conservadora que a mantinha no caminho da verdade, mesmo que essa “verdade” fosse o que mais se discutia na época. Pela firmeza das suas posições, Epifânio tinha enorme influência sobre os outros bispos e na redação das “verdades” consagradas nos concílios como doutrinas. Para garantir a pureza das verdades reveladas, Epifânio identificou oitenta heresias a serem banidas dos ritos e sacramentos da Igreja.

Mas Epifânio não conseguiu dormir naquela noite. Sua identificação de heresias estaria certa? (Agostinho produzira sua própria lista, com 83 heresias). Oitenta seres humanos seriam marcados como hereges e atravessariam os tempos com aquela cicatriz moral. E quem era ele — um mero mortal, um mortal especial pela sua relação especial com Deus, mas um mortal assim mesmo —, quem era ele para determinar quem era um herege e quem era um equivocado?

E então Deus atendeu às preces de Epifânio, que lhe pedia ajuda, uma orientação que fosse. E Deus dirigiu os passos de Epifânio à sua Bíblia e instruiu a Epifânio que abrisse a Bíblia nos “Cantares de Salomão”, onde estava escrito: “Sessenta são as rainhas, e oitenta as concubinas, e as virgens sem número”. E Deus disse que aquela era sua mensagem, e que as oitenta concubinas confirmavam o acerto de Epifânio em identificar os hereges e bani-los dos ritos e sacramentos da Igreja. E Epifânio foi dormir satisfeito, certo de que fora justo. E não lhe ocorreu perguntar o que hereges tinham a ver com concubinas.

A história do bispo Epifânio é verdadeira, só não sei o que significa. Talvez que qualquer coisa pode ser uma mensagem de Deus, se você está disposto a acreditar em qualquer coisa. Ou então que não é preciso muito para convencer conservadores a caçar hereges.