quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Cancelando a cancelada do cancelamento

Gregorio Duvivier

Cancelando a cancelada do cancelamento: estamos importando até as tretas

Não conheço ninguém que tenha sido cancelado, de fato, do lado de baixo do Equador

Acho que foi no falecido Facebook que li uma amiga sem filhos advogar contra o uso do termo “childless”, pra se referir a quem não tem filhos. “O sufixo ‘less’”, argumentava, “denota algo a menos —como se à pessoa sem filhos faltasse, necessariamente, algo. Por isso hoje prefiro o termo ‘childfree’, que não tem essa carga negativa.”

Um pai logo surgiu argumentando contra o uso do “childfree”, termo que, por sua vez, faria parecer que filhos aprisionam —como se a paternidade fosse um fardo. Logo começou uma longa treta entre pais e não pais, mães e não mães, childlessers e childfreers.

A discussão me espantou, e lembro dela até hoje, não porque não fosse interessante, mas porque eram todos brasileiros e estavam discutindo em português sobre um problema que a língua portuguesa já resolveu. Dizemos: “Sem filhos”, e pronto: agradamos a todos —nesse quesito.

Estávamos importando uma treta gringa, tão útil por essas bandas como um snowboard. Será que não somos autossuficientes nem no quesito treta? É preciso valorizar o problema nacional, pensei, são tantos os pepinos dessa terra que em se plantando tudo dá.

Desde então tenho visto uma série de tretas “fora do lugar”. A questão do cancelamento me parece uma delas. Defendi, por aqui, que se tratava de um meme gringo. Sérgio Rodrigues refutou num belo artigo —citando o caso Pinker, linguista cancelado nos Estados Unidos. Sérgio Rodrigues está certo. Errei ao dizer que era um meme, mas acho que não errei ao dizer que era gringo.

Continuo achando que se trata de uma treta alheia. Não conheço ninguém que tenha sido cancelado, de fato, do lado de baixo do Equador. Pra ficar num exemplo só: o desembargador sem máscara continua desembargador, e continua sem máscara.

Sérgio citou, como exemplo brasileiro, a tentativa de boicote do Malafaia contra a Natura, que fez um comercial com Thammy Miranda, pai trans. Hoje vemos que o boicote não pegou. As ações da Natura

dispararam e as vendas não parecem ter diminuído, provando que o Malafaia já não comprava muitos cremes pra pele antes do boicote.

No entanto vou discordar de mim mesmo antes que façam melhor do que eu: muitos fenômenos nascem lá e vem pra cá depois de um tempo, piorados —como a cloroquina, o crossfit e o KFC. Não teria sido Trump um prenúncio de Bolsonaro? Sérgio tem razão: é sempre bom ficar atento à bosta que nasce lá, já que importamos até os dejetos.

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