sábado, 22 de agosto de 2020

Os 80 anos da morte de Trotski, o homem que rachou a esquerda ao meio

 

Sérgio Augusto

Homem de ideias e ação, proscrito pelo Czar Nicolau e por Stalin, Trotski fez mais pela causa comunista que Rosa Luxemburgo e Gramsci

Sem idade para ter sido trotskista quando isso fazia mais sentido (anos 1930, 40, 50), resignei-me a simpatizar à distância com os seguidores da Quarta Internacional e não opor resistência ao fascínio pela figura de Leon Trotski e sua trajetória de vida e ação política. Devorei os três volumes da biografia escrita por Isaac Deutscher e o que mais me foi possível alcançar, sem sequer repelir as verrinas stalinistas dignas de atenção. Cheguei a namorar a ideia de me aventurar numa ficção em que ele seria protagonista ‘in absentia’ ou fantasmático, isso bem antes de o cubano Leonardo Padura publicar O Homem que Amava os Cachorros.

Como sabem os que leram o romance de Padura: o homem que amava os cachorros matou Trotski, há exatos 80 anos. No final da tarde de 20 de agosto de 1940, quase rachou-lhe o crânio com uma picareta de alpinista. Trotski só morreria na noite seguinte. Tinha 60 anos. O sicário stalinista, Ramon Mercader, agente da polícia secreta soviética, catalão de origem e até então oculto sob as identidades falsas de Frank Jackson e Jacques Mornard, continuou vivo, porém longe do México, onde se deu o histórico assassinato.

Revi há dias o filme de Joseph Losey, O Assassinato de Trotski. Gostei ainda menos do que na época em que foi lançado (1972), mas não há decepção que supere a irritação que me provocou aquela série biográfica russa, dirigida por Alexander Kott e recentemente exibida na Netflix. Chega a ser ridícula, além de dramaticamente ‘over’ e esteticamente kitsch, pela fartura de erros, omissões e ilações que não se justificam nem como parte de um projeto visando acima de tudo demonizar o biografado. O Comissariado Cultural de Stalin o teria aprovado sem restrições.

Trotski foi um dos mais credenciados, temidos e perseguidos agitadores políticos do século passado. Churchill o considerava o mais perigoso “ogro da subversão internacional”; Hitler admitiu preferir lidar com Stalin a encarar sua nêmese. Homem de ideias e ação, proscrito por dois inimigos (o Czar Nicolau e Stalin), grande intelectual, teórico e estrategista, fez mais (se assim posso dizer) pela causa comunista do que Rosa Luxemburgo e Gramsci, pois além de tudo que acabo de enumerar pegou em armas e participou das duas revoluções russas (1905 e 1917), comandou o Exército Vermelho e venceu uma guerra civil para os bolcheviques.

Lenin, Mao, Ho Chi Minh e Fidel Castro foram líderes localizados; Trotski, errante internacionalista, com prévia experiência como jornalista cobrindo conflitos na Sérvia, Romênia e Bulgária, agitou por toda a Europa e até nos Estados Unidos, participando ainda de levantes políticos e militares nos Balcãs e na China.

Não é preciso acreditar no comunismo ou mesmo no socialismo para se deixar fascinar pela figura de Trotski, nascido Liev Davidovich Bronstein, e seus feitos, desfeitos e defeitos. George Steiner o comparou a um personagem de tragédia grega, ao obstinado Etéocles de Sete Contra Tebas. Seu parâmetro menos sujeito a controvérsias é Che Guevara, o pop star revolucionário do pós-trotskismo.

Trotski rachou ao meio a esquerda internacional e magnetizou intelectuais em tudo quanto é canto. Toda uma geração de esquerdistas independentes e antistalinistas (Dwight Macdonald, Mary McCarthy, Philip Ravh e a turma da Partisan Review) fez a cabeça de muita gente ainda na primeira metade do século passado. Jean Malaquais, guru confesso de Norman Mailer, era trotskista. Clement Greenberg, eminência parda da moderna crítica de arte nova-iorquina, desenvolveu seu estudo sobre Vanguarda e Kitsch a partir de um trecho de Literatura e Revolução, de Trotski.

No Brasil três organizações distintas de trotskistas se sucederam entre 1928 e 1968, formadas por dissidentes do Partidão, sendo que ainda havia 30 delas em atividade três anos atrás. Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Leila Abramo, Geraldo Ferraz, Patricia Galvão (Pagu), Florestan Fernandes, Edmundo Moniz, Boris Fausto foram alguns de seus mais destacados simpatizantes.

O espectro de Trotski paira até hoje sobre um vasto território literário. De George Orwell (se o Big Brother de 1984 é Stalin, Emmanuel Goldstein é Trotski, também a matriz do Bola de Neve de A Revolução dos Bichos) ao Milan Kundera de A Brincadeira, passando por Rubem Fonseca (chama-se Bertha Bronstein a impulsiva amante de Mandrake em A Grande Arte) e Paulo Francis, que em seu primeiro romance, Cabeça de Papel, se projeta na figura de um crítico de cinema, Hugo Mann, desiludido com suas crenças trotskistas.

O canadense Saul Bellow, apesar de conservador a não mais poder, rendeu-se à mística do “herético imperdoável”, em As Aventuras de Augie March. O então socialista Bellow, recém-casado com uma militante de esquerda, tinha uma entrevista agendada com Trotski para o dia 20 de agosto de 1940, na aparentemente inexpugnável fortaleza de Coyoacán, e por questão de horas não o pegou ainda vivo. Tomado por um jornalista americano, o futuro escritor conseguiu entrar no cemitério da Cidade do México e ver de perto o corpo ensanguentado de Trotski recolhido a um caixão, visão que o marcou para sempre.

“Foi ali que me dei conta de como os déspotas podem o aparentemente impossível e também quão frágil é a vida dos inexpugnáveis”, comentaria décadas adiante, já com a grana que lhe rendeu o Nobel de Literatura em sua conta bancária.

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