“Cogito, ergo sum.” Comumente traduzida como “Penso, logo existo”, a proposição do filósofo René Descartes em seu Discurso do Método pode ganhar uma conotação científica graças ao novo livro do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis. Em O Verdadeiro Criador de Tudo, o pesquisador compila quatro décadas de investigações laboratoriais e acadêmicas, e passa por áreas do conhecimento como arte, filosofia, matemática, física, linguística e história para formular uma teoria que coloca o cérebro humano em primeiro plano para explicar nossa realidade.
A metade inicial do livro é dedicada à exposição de alguns resultados empíricos obtidos por Nicolelis, seus colegas de laboratório e outros cientistas pelo mundo. Entre os experimentos, há por exemplo um teste em que ratos foram capazes de detectar luz infravermelha quase como um novo sentido, demonstrando a plasticidade cerebral, capacidade que o cérebro tem de se modificar e adaptar a novas circunstâncias. Há também o caso clássico de pacientes que perderam um membro e continuam a senti-lo, ou que sentem um toque feito em uma mão falsa como se fosse em sua própria mão. Já em outro teste, grupos de três chimpanzés conseguiram sincronizar seus cérebros para controlar, juntos, os movimentos de um braço mecânico, comprovando a existência de uma rede cerebral, chamada pelo autor de Brainet.
“Basicamente, uma Brainet é um computador orgânico distribuído composto de múltiplos cérebros individuais, que se sincronizam – no domínio analógico – por um sinal externo, como luz, som, linguagem, química, ondas de rádio ou eletromagnéticas, e é capaz de produzir comportamentos sociais emergentes”, explica o autor.
Embora pareçam desconectadas entre si, as experiências relatadas no início do livro introduzem conceitos neurofisiológicos essenciais para se compreender o que a Teoria do Cérebro Relativístico de Nicolelis propõe. Por exemplo, a ideia de que existem dois tipos de informação: a shannoniana (que vem do matemático Claude Shannon, tido como criador da teoria da informação), que é computável, transmissível em padrões de zeros e uns, e armazenável em bits e bytes, como a linguagem humana ou a matemática; e a informação godeliana (que vem do matemático Kurt Gödel), que é analógica, não digital, e se acumula nos tecidos orgânicos de modo que não pode ser computável.
“Eu sempre uso o exemplo da beleza. Cada um de nós tem uma definição própria da beleza”, explica Nicolelis em entrevista ao Estadão. “Ao se acumular de forma godeliana, literalmente no tecido neural, ela se torna única para cada um de nós, e não é transmissível por informação shannoniana, por meio de bits e bytes.”
No livro, Nicolelis mostra como a arte rupestre foi o início dessa revolução comunicacional que permitiu à humanidade transmitir informação de uma forma inédita na evolução dos organismos. “De acordo com o pensamento do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, os magdalenianos inauguraram a tradição humana de mostrar com as mãos aquilo que não podia ser dito com voz. Usando os termos da teoria do cérebro relativístico, os nossos ancestrais do Paleolítico Superior usaram a pintura em vez da fala para melhor retratar as manifestações mentais da informação gödeliana de alta dimensão, coisas como emoções, abstrações, pensamentos, que não podem ser descritas de forma completa por canais que transmitem informação shannoniana de baixa dimensão, por exemplo, a linguagem.”
Partindo desses pressupostos, Nicolelis mostra como as instituições humanas são, na verdade, abstrações mentais, produtos dessas redes de cérebros interconectados que viabilizam a vida em sociedade. Até mesmo a ciência e as descrições matemáticas do universo, para o neurocientista, se encaixam nessa categoria. “Como a ciência foi criada pela mente humana, como qualquer outra abstração mental para explicar o universo ou gerir a vida, ela tem limites pela própria biologia da nossa mente. Até quando um físico opta por um modelo matemático, ele toma uma decisão subjetiva. Existe uma estética científica e, em muitos casos, ela define quais teorias vão triunfar”, acredita ele.
Para Nicolelis, por mais que se tente tornar a ciência puramente racional e objetiva, há limites para esse método. Para ele, o princípio da incerteza de Heisenberg, o teorema da incompletude de Gödel e a aleatoriedade de números randômicos evidenciam “pontos cegos do cérebro”, e não problemas nas teorias que explicam o universo. “Alguns limites nós não vamos conseguir ultrapassar, determinados pela forma como nosso cérebro é moldado, e eles são intransponíveis”, afirma o autor. “Esses mistérios foram identificados por grandes gênios e, se você analisar todos em conjunto, consegue delimitar o que nosso cérebro é capaz de compreender.”
Por isso, a tese de Nicolelis é que nosso cérebro de fato fabrica continuamente o que nós compreendemos como realidade, até mesmo o tempo e o espaço – algo que o físico e divulgador científico italiano Carlo Rovelli também defende em seu livro A Ordem do Tempo. “As estrelas não celebram aniversário, os meteoros não contam quantas voltas eles deram no Sistema Solar. A noção de tempo é uma construção mental aproveitando-se das voltas da Lua, da Terra. Nas reações químicas, nos fenômenos termodinâmicos, há a matéria prima para o conceito do tempo, mas é preciso o intérprete para criar esse conceito. Já o espaço é um conceito referencial, não existe enquanto entidade física, apenas como algo que separa os objetos. O cérebro preenche as lacunas para criar um senso de realidade que faça sentido para nós”, explica o Nicolelis.
Após apresentar sua tese principal, o livro passa para questões mais práticas, mostrando preocupação com a maneira como os cérebros interagem – e são modificados por – aparelhos eletrônicos nos tempos atuais. “Toda tecnologia na história da humanidade moldou o cérebro de alguma maneira. A escrita, a criação de livros, meios de comunicação... Mas, nesse momento, o bombardeio digital está envolvido em tantos aspectos da vida que esse processo está amplificado e tem o poder de alterar nossa lógica do cérebro, que é primariamente analógica, embora tenha componentes digitais. Essa inundação digital está contribuindo para uma série de modificações fundamentais na arquitetura e no comportamento do cérebro. Não é à toa que as redes sociais criaram uma redução dramática na empatia humana.”
A teoria de Nicolelis talvez seja a culminação do processo descrito pelo brasileiro Fernando Vidal e pelo argentino Francisco Ortega no livro Somos Nosso Cérebro?, lançado agora pela editora N-1. A obra traça um panorama histórico da noção neurocêntrica da subjetividade, desde Hipócrates até a neurociência moderna, passando por obras de John Locke e Descartes, para mostrar como a ciência vem passando por um “neurocentrismo”, que traz para o centro de tudo o cérebro. Isso não se limita à biologia, mas rege questões práticas como a discussão ética por trás do transplante de órgãos, do aborto e da eutanásia.
Embora tenha sido publicada originalmente no exterior em 2017, a obra oferece um interessante contraponto à teoria de Nicolelis, fornecendo uma visão crítica à ideia de que tudo se resuma ao cérebro, questionando inclusive a metodologia de captura de imagens por ressonância magnética, que catapultou a neurociência nas últimas décadas.
“Todos ouvimos com demasiada frequência que o cérebro é o objeto mais complexo do universo e que a coisa mais importante que aprendemos sobre esse órgão é o quão pouco sabemos sobre ele. Além de atender bem a interesses profissionais, a combinação do ‘conhece a ti mesmo’ délfico e do ‘só sei que nada sei’ socrático convenceu muitos de que o mundo não é totalmente desencantado e os levou a juntar-se ao coro. No final das contas, e além das questões limitadas com que lidamos aqui, a ideologia que nos diz que somos essencialmente nossos cérebros alega fornecer respostas para diversas perguntas eternas sobre a natureza humana e o destino humano”, escrevem Vidal e Ortega. “Ao contrário do que os neurocientistas costumam afirmar ou insinuar, a convicção de que “somos nossos cérebros” não é corolário de avanços neurocientíficos nem um fato empírico. Em vez disso, é uma posição, filosófica ou metafísica, mesmo que alguns aleguem ser determinada pela ciência, que depende de pontos de vista sobre o que é ser uma pessoa humana.”
A despeito das possíveis críticas – às quais Nicolelis não foge, inclusive comentando quais seriam os pontos críticos que poderiam, se desprovados, pôr em xeque a teoria –, O Verdadeiro Criador de Tudo oferece uma visão extremamente original para problemas das ciências exatas, humanas e biológicas por meio de grande erudição e décadas de experimentação empírica. Ainda que sob o risco de flertar com um reducionismo determinista proveniente da noção de que somos nossos cérebros e nada além.
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