domingo, 16 de agosto de 2020

A guerra híbrida das vacinas

 
Nilson Lage

O debate sobre as vacinas para o covid-19 progride em octógonos paralelos.

O mais típico da onda de retrocessos que varre o mundo evoca (a) direitos individuais e (b) temores imaginários, contra as vacinas em geral. É algo relacionado ao liberal-positivismo, que não se pode discutir – como todo conhecimento místico – e deve ser contido por algum tipo de repressão, porque propaga riscos enormes.

Há os que defendem a adoção exclusivamente de vacinas que não apenas produzam anticorpos capazes de destruir o vírus sem efeitos colaterais em um grupo de testagem, mas também garantam imunidade por prazo conhecido e não ofereçam o risco de reação imunológica ou de outro tipo em casos raros, tudo comprovado por acompanhamento em uso amplo e universal e avaliação acadêmica. Vacina com esse nível de segurança levará anos para ser obtida, até porque não se conhecem bem os vírus, sua capacidade e velocidade de adaptação por mutação, entre outros dados de pesquisa.

Como vivemos situação de emergência, com o número de mortos caminhando para um milhão em todo o nundo, acertou-se previamente, algo menos rigoroso: a vacina seria desenvolvida em três fases, a última das quais com a aplicação a uma amostragem de alguns milhares de pessoas expostas a contágio. Sua aplicação seletiva e em massa permitiria a contenção e controle da pandemia.

Há dezenas de iniciativas, das quais as mais avançadas são a da vacina russa, que acaba de entrar em produção; de uma vacina chinesa (da Sinovac); e da vacina fabricada pela indústria privada AstraZeneca e criada na Universidade de Oxford, na Inglaterra.

A Sinovac associou-se ao Instituto Butantã e Oxford à Fiocruz; os russos não encontraram com quem associar-se no Brasil, país em que a tecnologia de química fina concentra-se em órgãos públicos.

Aí começa outra dimensão do problema: como o Butantã é fundação estadual paulista e o governo federal, a que pertence a Fiocruz, hostiliza a China por adoração aos Estados Unidos, a vacina da Sinovac tornou-se “vacina do Doria” e “daquele outro país”, na expressão depreciativa de Jair Bolsonaro. A compra dos direitos de um lote de cem milhões de doses da vacina de Oxford foi acertada e se espera o embate entre as duas facções politicas nos postos de saúde aí por volta de fevereiro próximo.

Sobrou, como tema polêmico, a vacina russa, a primeira a ser produzida. Foi desenvolvida sobre base já testada para outros vírus recentes – o que dispensaria a testagem em escala maior --, em laboratórios equipados para ações de defesa em guerra biológica. A ciência russa figura entre as mais celebradas nesse campo e o governo utilizou imediatamente o pioneirismo como troféu publicitário.

Temos, enfim, o confronto ideológico em escala global.

A guerra das vacinas tornou-se uma disputa entre os Estados Unidos, onde a medicina é antes de tudo um negócio, e sociedades com mais ágil planejamento central – Rússia e China, a que se soma a Inglaterra, que tem tradicional e ainda poderoso sistema de saúde pública. Empresas privadas, em um caso como esse – em que o produto dificilmente poderá ser monopolizado via patentes para venda com o maior lucro possível – só investe quando tem respaldo político e cobertura financeira dos estados nacionais ou clientes. Isso retardou projetos, principalmente os alemães, norte-americanos e suíços.

Como a prioridade russa e chinesa incomoda os Estados Unidos e a propaganda americana vai muito além da mídia – influi em praticamente toda literatura distribuída no mundo a profissionais de saúde – a vacina segura, que levará anos para ser obtida, retornou à discussão.

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