terça-feira, 18 de agosto de 2020

Não existem batalhas que não possam ser vencidas

O cristofascismo pode ser derrotado

Luis Felipe Miguel

O direito ao aborto é condição básica para a edificação de uma ordem democrática. Sem ele, metade da população tem acesso a uma cidadania apenas incompleta, já que o reconhecimento como agente moral plena e a soberania sobre si mesma - que desde os primórdios da teoria liberal são considerados os pontos de partida para o usufruto dos direitos - ficam suspensos em determinadas circunstâncias.

No entanto, os grupos progressistas jamais foram capazes de conceder à defesa desse direito a mesma prioridade que a direita dá à oposição a ele.

Para os governos do PT, parecia bom negócio incorporar os fundamentalistas religiosos à sua amplíssima base de apoio no Congresso. Mas o preço, além dos cargos de sempre, era ceder em pontos como direitos das mulheres, direitos da população LGBT e laicidade do Estado.

Somente uma visão muito ultrapassada da hierarquia das pautas políticas sustenta que essa barganha era razoável. Estão em jogo a integridade física e a liberdade de muitos milhões de pessoas. E a laicidade é, simplesmente, um pré-requisito da democracia.

Mesmo entre defensoras dos direitos das mulheres, a causa do aborto era muitas vezes considerada perdida de antemão. Melhor deixá-la de lado, pragmaticamente, e focar em questões que permitiam vitórias: combate à violência no lar, extensão de direitos às empregas domésticas, atenção à saúde da mulher, todas áreas em que o ciclo petista obteve avanços importantes.

Quando Dilma, candidata, comprometeu-se publicamente a não avançar na pauta do direito ao aborto, até lideranças feministas afirmaram compreender e aceitar a postura. Rose Marie Muraro disse: "Eu entendo e faria a mesma coisa". Maria Laura, ex-secretária-adjunta da SEPM, completou: "Numa campanha eleitoral só traz esse tema quem quer queimar o movimento feminista".

Entendo a situação. Ninguém queria ajudar a vitória de José Serra, que, além de naturalmente ser o José Serra, naquele momento estava apostando fortemente num discurso próximo da ultradireita religiosa. Mas, na prática, significava duas coisas: (1) permitir que a direita mantivesse o monopólio da pressão política sobre o tema; (2) abrir mão do debate público.

É preciso questionar a ideia de que essa batalha não pode ser vencida. O aborto está legalizado em Portugal, um país mais católico e mais tradicionalista do que o Brasil. A legalização ocorreu por referendo popular, em 2007. Na também católica Cidade do México, o aborto foi legalizado em 2008. Na Argentina a batalha da opinião pública foi travada - e ganha. Na Itália, que abriga a Santa Sé em seu território e convive com reiteradas tentativas de intervenção do Vaticano em suas decisões políticas, o aborto é legal desde 1978. A Espanha, outro país de irrepreensíveis credenciais católicas, tão atrasado que mantém uma monarquia, legalizou o aborto em 1985, ampliando as garantias da lei em 2010.

As condições de vencer a batalha só serão criadas na luta. As mobilizações feministas em favor do direito do aborto no Brasil mostram que há poder de mobilização e convencimento. O problema é o establishment político pedindo permanentemente para deixar de lado.

Ao abrir mão do enfrentamento, os grupos progressistas deixam terreno aberto para a manipulação política que os fundamentalistas cristãos fazem de seu rebanho. E observem que falei "fundamentalistas", categoria que inclui tanto setores evangélicos quanto católicos. No caso agora da menina capixaba, por exemplo, a posição do bispo de Olinda e Recife, Antonio Fernando Saburido, foi tão abominável quanto a de Silas Malafaia.

O direito ao aborto tem que ser bandeira prioritária e inegociável de todos os democratas - pela vida e liberdade das mulheres, pela igualdade na cidadania, pela laicidade necessária à democracia.

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