Tenho visto, nos últimos dias, várias pessoas se manifestando contra os excessos da polícia política da linguagem.
Um braço é o veto a palavras e expressões, em geral por causa de etimologias inventadas ou ilações forçadas. Estão cancelados "passar pano", "trabalho nas coxas", "criado mudo", "lista negra" etc. Vi, recentemente, vários textos mostrando como a impugnação dessas expressões se baseia em argumentos totalmente fantasiosos.
Mesmo quando a sustentação do veto à palavra ou à expressão tem fundamento histórico, se esquece de algo que me parece essencial: se nem emissores nem receptores estão conscientes de seu antigo sentido nefasto, como é possível que ele produza efeitos?
Parece, às vezes, que se acredita numa espécie de homeopatia etimológica: os sentidos originais das palavras continuam operantes e potentes, mesmo depois de séculos sendo diluídos pelo uso.
E o resultado é o mesmo das beberagens do dr. Samuel Hahnemann. Elas operam por efeito placebo. E a homeopatia etimológica opera ao recuperar, para a consciência dos falantes, sentidos há muito sepultados.
Penso no verbo "denegrir". Hoje, ao menos nos círculos mais informados, é impossível usá-lo sem trazer à mente seu subtexto racista.
Até onde vejo, porém, seus equivalentes em outras línguas (dénigrer, denigrate) continuam sendo utilizado sem acionar esse passado. Os falantes do francês e do inglês estão perdendo algo? Ou estão certos, mais certos do que nós, ao optar por não reativar um sentido racista que já fora anulado por sua própria dormência?
Afinal, é isso que acontece com as palavras: elas se emancipam de suas origens. Quem fala em "veneno" não lembra de Vênus, a deusa do amor. Quem fala em "trabalho" não pensa no "tripalium", antigo instrumento de tortura. Ninguém lembra que "fodere", em latim, significa "cavar". E assim por diante.
Em suma: qual é o ganho de recuperar sentidos inertes há muito tempo?
O único ganho é a lacração fácil para quem busca no discurso alheio uma das palavras proibidas. Como se não houvesse uma enorme agenda muito mais importante - que inclui, aliás, o combate a formas ativas, atuantes, de discriminação verbal.
O outro braço é a "linguagem inclusiva" artificial, que se manifesta em fórmulas cada vez mais bizarras. Nas universidades, o modismo contamina alunes, professorxs e funcionári@s.
É preciso perguntar qual é a importância disso. Nesses últimos dias, vi gente observando que línguas como turco ou farsi não têm gênero. Nem por isso deram origem a sociedades menos machistas. É uma evidência anedótica, mas deve fazer pensar qual a importância a ser concedida a essa questão.
Uma coisa é estar consciente de exclusões na linguagem. Eu me esforço para usar o feminino como universal. Por exemplo, costumo - ou costumava, no pré-pandemia - iniciar minha fala em eventos com bom dia/boa tarde/boa noite a todas. Esperando, claro, que os homens se sentissem cumprimentados também.
Mas o limite é o que se perde. Desisti de produzir programas de aula todos no feminino, porque isso afastava alguns alunos (agora ponho feminino e masculino). Escrevi uma primeira versão de meu livro Democracia e representação também toda no feminino, mas voltei atrás porque percebi que distraía os leitores (e as leitoras) e dificultava que acompanhassem meu argumento.
O problema é esse: introduzir ruídos na comunicação que afastam muitos interlocutores e interlocutoras. A linguagem inclusiva cumpre um propósito ao chamar a atenção para determinados padrões, que universalizam o homem e singularizam a mulher.
Se, em vez de alcançar esse objetivo, ela, por mais inclusiva que se queira, exclui todo o vasto público de não iniciados, parece que se tornou contraproducente. Ou queremos mesmo falar para bolhas cada vez mais restritas?
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