O mais imediatamente importante, para mim, neste relato do Luciano Martins Costa, é o que ele fala sobre o Konder (de mudar o mundo - e iludir-se a ponto de não ver o que era evidente - para calçar as meias). Mas o mais importante é mesmo o questionamento sobre o papel do Partidão. Que tem a ver com a cegueira resultante do triunfalismo dos dirigentes, que resultou em tantas tragédias. Mas que é a herança da esquerda, como me parece óbvio na nossa história recente.
É sobre um aspecto peculiar do assassinato do Herzog.
Segue:
Luciano Martins Costa
"Tirem da sala as crianças e os boçais. Vou contar uma
história que nenhum jornal nunca publicou, e que restabelece alguns fatos que
muita gente finge ignorar. Ou prefere ignorar.
Aconteceu em 1975, agosto, dois meses antes do assassinato
do jornalista Vladimir Herzog. Junto com minhas colegas G. de V. e A..., fui encarregado
de entrevistar o então comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila
Mello. Foram quinze dias de espera após o pedido de audiência, tempo em que o
serviço de inteligência do exército vasculhou nossas vidas. Nada encontraram
que impedisse o encontro.
Mas o general nos recebeu cercado por seu estado-maior e um
grupo de cinco estudantes de Direito do Mackenzie, alguns dos quais tenho
encontrado por aí, já maduros e não menos radicais.
A entrevista deveria ser publicada num jornal-laboratório da
FAAP chamado O Bloco, coordenado pelo professor Rodolfo Konder. Tudo ia bem,
mas o comandante resolveu jogar para a plateia, e começou a fazer provocações,
dizendo que nós, estudantes, exigíamos liberdade, mas aquela conversa era uma
prova de que o Brasil vivia em plena democracia. Sob acenos dos seus
convidados, seguiu falando sobre a necessidade de seguir combatendo a ameaça do
comunismo.
Então, minha amiga G. de V., que era muito esquentada,
levantou-se e encarou o general. Disse mais ou menos isto: "Censura à
imprensa, censura no cinema, censura no teatro, prisão de gente inocente sem
processo, isso não é democracia em lugar nenhum".
O homem ficou furioso. Virando-se para os
"meninos" do Mackenzie, soltou: "Estão vendo? Eu não disse? Não
adianta, só neutralizando mesmo". E passou a falar de um plano para
"neutralizar" 2 mil comunistas, gente que andava a descoberto,
inclusive influenciando os jovens como nós pela televisão e pela imprensa.
Nesse período, o jornalista Cláudio Marques e alguns
parlamentares, entre os quais o então deputado José Maria Marin, vinham
denunciando Vladimir Herzog como um agente de Moscou infiltrado na TV Cultura.
Quando, descontrolado, o general se referiu a uma
"operação Jacarta", eu fiz umas anotações. Ele me mandou rabiscar e
disse: "Se você publicar uma linha desta conversa, serão 2001
presos".
A conversa terminou abruptamente, saímos de lá caminhando
sobre nossas próprias pernas. Fui para casa, escrevi um relatório e fui
entregar a Konder. Ele disse que era bobagem, que eu estava vendo fantasmas e
soltou a blague: "Esses são os últimos radicais. O processo de abertura do
general Geisel é lento e gradual, mas é seguro".
Passaram-se dois meses, e as prisões começaram. Konder foi
um dos primeiros, a lista foi crescendo até que Vlado Herzog se apresentou para
depor. Horas depois, no dia 25 de outubro, estava morto.
Estourou a crise no interior do governo, Geisel mandou um
grupo de oficiais verificar as condições da prisão no DOI-Codi, confirmou as
torturas e colocou o general Ednardo na geladeira, preparando sua remoção do
comando. Mas o processo demorou e ele ainda permitiu a tortura e morte do
operário católico Manoel Fiel Filho.
Pouco depois que os presos foram liberados, procurei Rodolfo
Konder, mas ele não quis falar sobre a entrevista. Contei que, por algumas
coisas que ouvi do general, entendia que Herzog não foi morto por ser
comunista. Não era um militante ativo. Foi morto por ser judeu. Konder
confirmou que Vlado foi muito mais barbarizado do que os outros.
Já se passaram muitos anos. Voltei a encontrar com Rodolfo
Konder pouco antes de sua morte. Tentei lembrar o episódio, ele respondeu:
"Luciano, naquele tempo eu acordava pensando em como melhorar o mundo,
como restaurar a democracia no Brasil. Hoje, minha grande preocupação toda
manhã é - como vou calçar as minhas meias".
Recentemente, fui procurado por um jornalista do New York
Times que está escrevendo um livro sobre o que chama de "fetiche de
Jacarta", que caracteriza certos setores da política na América Latina.
Contei para ele essa história, dei uma cópia do relato que
fiz da entrevista.
A morte de Vlado impediu o massacre de centenas de jornalistas, artistas e intelectuais. Mas aqui nem o Instituto Vladimir Herzog quer saber o que era a "operação Jacarta"."
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