sábado, 26 de setembro de 2020

Carteirada social


Rudá Ricci

Vocês já perceberam que estou pouco tolerante com liberais e liberalismos que recentemente vêm invadindo a esquerda brasileira. Um dos termos que incomoda é o tal "lugar de fala". Segue um fiozinho 

1) Há algumas décadas, se fazia um alerta, quando se iniciava uma exposição que era preciso saber de que lugar se falava. Era um alerta sobre os vícios e limitações de nossa existência e ângulo de visão 

2) Tratava-se de um ato de humildade e reconhecimento que uma pessoa, isoladamente, não consegue ter uma visão acabada do mundo. 

3) Kurosawa dirigiu um filme sobre esta leitura enviesada que o ângulo pessoal tem sobre qualquer acontecimento. Rashomon - Às Portas do Inferno, trata da impossibilidade de obter a verdade sobre um evento quando há conflitos de pontos de vista.

4) "Lugar de fala" como é usado hoje, é justamente o inverso: é reserva de mercado. Exclusivismo. Ultraliberal. Hiperindividualista. Sugere que a história pessoal é sempre mais autorizada e definitiva que a coletiva. 

5) Ora, se o meu lugar de fala é um lugar pequeno, enviesado, da minha história pessoal, como considerar que ela é maior que a história contada pelo coletivo, pela classe social, pela humanidade? 

6) A forma como se emprega o tal "lugar de fala" me remete à autoajuda. Parece um esforço para dizer que quem se sente marginalizado tem valor. Mas.... valor individual, quase uma autoridade em assuntos gerais, desde que os tenha vivenciado ou algo do gênero. 

7) Pior: cria uma credencial quase biológica para alguém ser, de antemão, especialista em assuntos que vão muito além de sua vivência pessoal. Temas como escravidão só poderiam ser analisados por quem foi escravo. Mas, e se não há mais escravos vivos? 

8) Não existindo escravos vivos, parece haver uma certa regra mágica que daria o direito de filhos, netos ou tataranetos de escravos falarem sobre algo que não vivenciaram. Fica interditado, assim, a generosidade, a "encarnação" no sentido cristão (a empatia com o sofrimento) 

9) Ora, se é para dizer que quem é explorado tem o direito a ter voz e de ter autonomia, não é preciso criar clichês liberais, não? Basta dizer isso e pronto. Mas, o fato é que esta terminologia veio importada de fundações empresariais que treinam "lideranças" jovens nos EUA 

10) Para terminar o fio, fico cada vez mais incomodado com esses modismos e clichês que nada dizem, vazios de conteúdo histórico, usados para fazer com que cada fique no seu quadrado. E, assim vai a noção de humanidade. (FIM)

Nenhum comentário:

Postar um comentário