sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

100 anos de podridão


Bem sintomático que a edição narcisista de hoje da Folha, sobre seus cem anos, tenha como principal personagem (excetuado o próprio jornal...) o deputado lombrosiano Daniel Silveira.

O jornal que se propõe a corrigir um erro de grafia de cem anos atrás — um cisco, um detalhe irrelevante — é o mesmo que não consegue ver uma trave sobre seus olhos: o papel que teve, nas últimas décadas, na promoção desse tipo de personagem infame.

Penso tudo isso em meio às centenas de lambidas de bolas (não me ocorre expressão melhor que lambidas de bolas, se alguém se incomodar por eu escrever lambidas de bolas pode pular este trecho sobre lambidas de bolas) de jornalistas, leitores, empresários — como se o jornal não tivesse tido, por sua vez, cem anos de infâmia, em meio a um ou outro espasmo de dignidade.

O Brasil é hoje o Brasil desses Silveiras e Carluchos e coturnos porque a família Frias foi suficientemente abjeta, assim como os donos dos demais grandes meios de comunicação do país, para aceitar a barbárie como saída para seus objetivos empresariais. Não à toa, na entrevista chapa-branca de Luís Frias, feita por Fernando Canzian, o dono do jornal minimiza hoje, 19 de fevereiro de 2021, hoje, a perversidade da política econômica do governo Bolsonaro. "Todo o resto foi horroroso", diz ele.

A aliança entre capitalismo e barbárie está posta há alguns séculos, desde o início desse modo de produção, mas nos países que comandam este planeta sob implosão muitos donos do poder ainda preservam certos modos, certas aparências. Aqui, não. Um deputado elogia um torturador enquanto ajuda a depor uma presidente honesta e gente como Frias não vê maiores problemas — deixa o barco rolar, enquanto o esgoto e os ratos infestam a proa e a popa e os canhões.

Como jornalista, boa parte das histórias mais sórdidas que ouvi de colegas (sobre chefetes e patrões e assédios) foram relativas ao grupo Folha. Tenho amigos que trabalharam lá e sobreviveram mentalmente. Muitos colegas aderiram àquele mundinho, àquele jeitinho cínico e àquela face yuppie (o termo é ultrapassado, mas se encaixa bem ainda hoje), àquela visão de jornalismo supostamente isentona, recheada de números caudalosos e falsas simetrias e de um nariz cultural empinado — poseur.

Portanto não vou dar parabéns coisa nenhuma para essa corja, claro. A imprensa burguesa do Brasil é um lixo, uma coisa abaixo da crítica para os padrões da própria imprensa burguesa, o que nós temos aqui é uma cumplicidade com os coturnos e motosserras e capitães-do-mato, uma extensa condescendência com os donos do capital e de terras, um exercício de celebração desta nossa plutocracia cafona e genocida.

Não adianta encher o Conselho Editorial de mulheres e ampliar o leque de colunistas para parecer inclusivo. Um jornal que não seja violento, em um país violento, precisa ser mais incisivo em relação às manifestações diárias dessa violência. Os camponeses e moradores da periferia, de um modo geral, só entrarão nessas páginas centenárias para cumprir tabela ou quando estiverem suficientemente treinados para participar desse festival de bajulações, não somente ao próprio jornal, mas ao sistema que ele banca.

Um sistema e um jornalismo excludentes, sim, e muito mais próximos, sim, dos grunhidos do Daniel Silveira do que possam supor suas publicidades infinitas.

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