Em conversa promovida pelo GLOBO, cientistas refletem sobre o que o país aprendeu, ou deveria aprender, em um ano de pandemia
O aniversário de um ano da Covid-19 no Brasil permite refletir sobre a eficácia da resposta ao vírus, mas agora há mais erros do que acertos para processar.
— O Brasil mostrou a receita do que não fazer na pandemia — diz Natalia Pasternak, microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência e colunista do GLOBO.
Para rememorar o ano pandêmico, Pasternak conversou, a pedido da reportagem, com Margareth Dalcolmo, médica pneumologista, pesquisadora da Fiocruz e também colunista do GLOBO. O diálogo ocorreu na véspera de o país somar 250 mil mortes pela doença.
— Não pode continuar assim, como diletantismo. Estamos diante de algo muito dramático — diz Dalcolmo, que alerta para o risco de o público ter emoções “anestesiadas” com os números.
Abaixo, os principais trechos da conversa entre as duas pesquisadoras.
Duração da pandemia
Natalia Pasternak: Nenhuma pandemia dura para sempre. O quanto ela dura e o quanto ela incomoda depende muito do nosso comportamento. Como sociedade, a gente vê que os países se comportaram de maneira diferente. Então, quando nos perguntam quanto tempo mais essa pandemia vai durar, depende de fatores futuros.
Margareth Dalcolmo: O que diferencia a Covid-19 da Sars e da Mers é que nenhuma delas foi tão pandêmica e tão rápida quanto essa. O caso zero foi na China na virada do ano, e no fim de março a doença já estava nos cinco continentes. E não temos dúvida de que ela vai virar endêmica. Provavelmente o Sars-CoV-2 vai passar a integrar a lista do painel de vírus que nós aplicamos em pacientes suspeitos (de contrair viroses respiratórias), como o H1N1, alguns adenovírus e outros rinovírus.
Bons exemplos
Pasternak: Na Nova Zelândia, o fator decisivo foi o político: ter uma liderança política clara e transparente. Israel foi aos trancos e barrancos na questão de lockdown, mas agora está vacinando rapidamente, porque se planejou. Eles compraram as doses de vacina que seriam necessárias para o seu país e agora fazem uma campanha maciça.
Dalcolmo: A Austrália está numa situação espetacular, quase não tem casos. Estão com a doença controlada, porque detectam um caso e fazem a busca detalhada, bloqueiam quem teve contato com um infectado nos últimos 7 dias.
250 mil mortos
Pasternak: As previsões iniciais eram mais ou menos isso. Os primeiros modelos matemáticos foram claros em colocar o melhor e o pior cenário. Nós, infelizmente, cumprimos muito do pior. Quantas vidas teriam sido poupadas simplesmente com vontade política, organização e preparação? Como seria se o país tivesse enfrentado a pandemia de maneira coletiva e organizada? Como teria sido com líderes dando o exemplo? Tivemos o contrário: líderes dando o mau exemplo. Incitaram as pessoas a achar que não era sério, a não usar máscara e a se aglomerar à vontade.
Dalcolmo: Incomoda todos os dias ficarmos vendo essa “anestesia cívica”. Ficamos lá contando mortes. “Hoje teve 1.035, ontem 1.052...” Não pode continuar assim, como diletantismo. Estamos diante de algo muito dramático, que atingiu muitas famílias. Quantas dessas mortes poderiam ter sido evitadas? Digo de maneira quase arbitrária: pelo menos um quarto das mortes, se as pessoas tivessem recebido assistência adequada, sem bobagem de “tratamento precoce”.
Atraso na vacina
Pasternak: Minha mãe fala muito da campanha contra meningite na década de 1970. Eu vivi a do H1N1 em 2009. Essas campanhas foram de um estrondoso sucesso. Avaliar a campanha de agora é diferente, porque desta vez nós temos muitos grupos prioritários, e da outra vez não tínhamos. Mas agora a gente perdeu o bonde para adquirir as doses, e está correndo para conseguir no pinga-pinga. Um pouco aqui, um pouco no segundo semestre, um pouco no ano que vem...
Dalcolmo: A diferença também é o tamanho do problema, o grau de disseminação da Covid-19. Mas, além disso, tivemos a negação de quão estratégica era a única solução possível para uma virose aguda dessa natureza: a vacina. Não estamos tratando de hepatite C ou Aids, viroses crônicas com as quais usamos remédios. Ficou claro há muito tempo que não era remédio que iria resolver a Covid-19.
Desinformação
Pasternak: A gente precisa falar a mesma língua não só sobre vacina, mas nas medidas de prevenção. Há um ano, era compreensível as pessoas não entenderem por que temos que usar máscara e não fazer aglomeração. Um ano depois, a gente ainda precisa insistir nisso. Não basta saber de vacina, se esquecemos das outras medidas que precisam, ainda, ser usadas. Talvez agora precisem ser usadas até de forma mais enfática.
Dalcolmo: Se o país conseguisse falar a mesma língua já seria um adianto. A quem interessa gastar dinheiro para disseminar “tratamento precoce” e promover politização de algo sem sentido? A quem interessa disseminar discórdia quando temos que ter a sociedade reivindicando o seu direito a ser vacinada? Precisamos vacinar, no mínimo, 70% da população nos próximos meses e fechar o semestre assim.
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