terça-feira, 17 de novembro de 2020

Direita nadou de braçada na eleição e esquerda acha que ganhou

Alceu Castilho

Como estou em dia sincericida, vamos lá: é assustador o quanto a esquerda brasileira enxerga o país a partir de sua bolha urbana.

Não, gente, o PSOL não venceu as eleições. O PSOL elegeu 89 dos 58 mil vereadores espalhados pelo Brasil.

Vou repetir: 89. De quantos? 58 mil. Porcentagem: 0,15%.

Essa renovação ocorre principalmente em determinadas capitais do Sudeste, Sul e Nordeste. Espalha-se por algumas cidades das regiões metropolitanas, algo do interior paulista. E só.

Nem tudo é negativo (Boulos é, de fato, uma novidade na política brasileira) e não é preciso se jogar na linha do trem, mas também não é o caso de hipertrofiar o caminho eleitoral de forma redentora — porque o que continua a vir aí é chumbo grosso.

Literalmente. A quantidade de gente violenta eleita ao longo do país deveria nos soar como assustadora. Muito legal acenarmos para um país que eleja mulheres negras e transexuais, mas isso significa exatamente uma mudança para quando? Décadas?

Até lá essa gente violenta terá destruído a Amazônia e o Pantanal e acabará de destruir o Cerrado. E o clima e o planeta.

Estamos a comemorar de forma hipertrofiada (sim, comemoremos) as migalhas e a esquecer o conjunto da obra — esse país extraordinariamente desigual e violento e não exatamente configurado a partir de uma ou outra ilha civilizatória.

Durante algumas semanas, como editor do De Olho nos Ruralistas, tentei emplacar algumas pautas sobre esse país dos grotões. Essas pautas, sinto dizer, foram solenemente ignoradas. Por quê? Porque o país se lixa — a esquerda inclusive se lixa — para os povos do campo, para a centralidade da questão agrária na formação de sua identidade. Urbana inclusive.

No domingo fizemos cinco lives em uma, das 17 às 22 horas, para algumas testemunhas. Para discutir o quadro eleitoral no conjunto dos 5.570 municípios (para além de nossas bolhas), impacto da eleição na Amazônia, contexto mundial etc. Bloco menos visto? Aquele com os povos do campo: uma quilombola, um indígena, uma camponesa.

Precisamos deixar de fazer inclusão para inglês ver. Ou para aplacar nossa consciência de classe média subserviente ao poder, ao poder de fato, o poder dessa violência patrimonialista de 500 anos, reciclável, uma reciclagem que ocorre também a partir dessa nossa distração estatística — a de enxergar enxurrada onde a mudança acontece a conta-gotas.

Por aqui eu votei nas indígenas do Jaraguá e elas não foram eleitas. Em Porto Seguro a candidata do PT renunciou, a mando do governador e do senador, esses líderes que a gente sintomaticamente chama de caciques (no país do voto de cabresto e do curral eleitoral), para desespero do candidato a vice, um cacique de fato, um indígena. E o candidato apoiado pelo governador e pelo senador, no fim das contas, foi derrotado.

Vivemos uma Síndrome de Estocolmo da realpolitik. A gente começa a chamar um canalha como Eduardo Paes de Dudu na mesma medida que chama ácido de "doce" ou drogas sintéticas de "bala". A gente infantiliza a violência e age como avestruz, como se não estivéssemos vivendo um golpe, como se não estivéssemos assistindo a um genocídio, como se não vivêssemos em um país que celebrou torturadores e passou a se mover sob o signo das arminhas.

O que queremos ser? O Barroso? Incorporar essa falsa polidez, essa condição de arautos do bem estar, vestais do otimismo (enquanto ele e os colegas legitimam a barbárie), desenvolver aquele rosto corado, a fazer de conta que toda a violência absurda que vivemos no campo e na cidade não esta aí, com a boca escancarada e cheia de dentes, deflagrada por aqueles mesmos com quem a gente passa a pactuar? Em que momento exato a gente passou a acreditar na tal "festa da democracia"?



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