sábado, 21 de novembro de 2020

Pé na cova


Sérgio Augusto

Vocês souberam da morte de Brigitte Bardot? 

Nem eu. 

Os franceses souberam em primeira mão; ao menos aqueles que acessaram o site da rádio estatal RFI, na manhã da última segunda-feira. Uma falha técnica no sistema de informática da emissora vazou para a rede um alentado necrológio que era para permanecer lacrado em seus arquivos, ao alcance exclusivo da redação da RFI. 

Foi um morticínio. Além de BB, a emissora “matou” Pelé. E também Elizabeth II, a rainha da Inglaterra. E mais Sophia Loren, Jimmy Carter, Raúl Castro, Pierre Cardin e Yoko Ono. No mundo do cinema, uma devastação: Clint Eastwood, Alain Delon, Jean-Paul Belmondo, Jean-Louis Trintignant e Roman Polanski. Nenhuma vítima – et pour cause – do coronavírus.

Nosso Pelé já deve estar acostumado a barrigas do gênero. A CNN o despachou para o além, seis anos atrás, alçando-o à concorrida casta de defuntos apócrifos, que inclui desde Karl Max (finado pela imprensa de 1871, com 12 anos de antecedência) a Beyoncé, passando por Mark Twain, Baudelaire, Bertrand Russell, Churchill, Josephine Baker, Hemingway, García Márquez e Bob Hope, entre muitos outros.

Twain teve a reação mais engraçada. “As notícias a respeito da minha morte foram um tanto ou quanto exageradas”, declarou às folhas no dia seguinte ao seu passamento prematuro.

As páginas de obituários sempre foram as mais procuradas e lidas dos jornais. As pessoas não querem apenas saber quem morreu, mas também regozijar-se por ainda não ter chegado a sua hora de frequentar aquelas páginas. “Morreu, morreu, antes ele do que eu”, proclamava um despudorado sambinha dos meus tempos de menino, perfeita ilustração musical para o que Bruce Weber, calejado obituarista do New York Times, batizou de “schadenfreude recreativo”.

Minha primeira experiência como obituarista foi no Jornal do Brasil, por volta de 1966. Criou-se no pioneiro Departamento de Pesquisa do jornal um não menos pioneiro setor dedicado à produção de obituários antecipados, adrede apelidado “Pé na Cova”. Cada redator recebeu seu quinhão de macróbios para sobre cada um deles caprichar um perfil a ser guardado, a fim de evitar atropelos de última hora. Para mim reservaram, entre outros, o imperador japonês Hirohito e o jornalista e acadêmico Austregésilo de Athayde. 

Pesquisávamos a vida e a obra da personalidade selecionada e escrevíamos o necrológio, deixando em aberto a causa mortis e as minúcias a serem acrescentadas quando o morto finalmente morresse. Dávamos aos textos títulos aleatórios, que poderiam ser ou não utilizados na data de sua publicação. Até em razão dessa incerteza e também para aliviar o clima mórbido da empreitada, costumávamos brincar um pouco, nos títulos, com nossos ilustres mortos-vivos. 

Lembro de dois títulos que obviamente não foram reaproveitados pelo jornal quando o imperador japonês e o “presidente vitalício” da ABL deram seus últimos suspiros: “Hirohito, que morreu sem dar um grito” e “Austregésilo, enfim de ataúde”. O Jornal do Brasil não era o Pasquim.

O necrológio de Hirohito mofou 24 anos no arquivo do jornal; o de Austregésilo, 28. Surgiu ali a minha reputação de pé-quente, de emérito procrastinador de óbitos. “Escreva o meu; pago o que você quiser”, implorou-me, de brincadeira, um amigo obituariável. Não atendi seu pedido, mas ele, para minha sorte também, continua vivo, até mais do que eu.

No início dos anos 1990, encomendaram-me, na Folha de S. Paulo, os obituários de Tom Jobim e das cantoras Marlene e Nora Ney, os três vendendo saúde. Marlene sobreviveria 22 anos ao meu texto e Nora Ney, consideráveis sete verões. 

Tom foi uma lamentável exceção. De procrastinador de óbitos passei a procrastinador de obituário. E logo o dele. Por motivos vários, remanchei tanto a feitura do necrológio, que Tom acabou morrendo, de repente, o que me obrigou a improvisar uma elegia a toque de caixa, ao sabor do choque e da tristeza pela perda de nossa maior glória musical. Até hoje me sinto um pouco culpado pela morte do maestro soberano.

Os obituários mais penosos são aqueles que nos pegam de surpresa ou, pior ainda, envolvem figuras cuja reputação nos inibe e atemoriza. É muita responsabilidade reduzir a um punhado de linhas vidas demasiado ricas de histórias e feitos. 

Se Walt Disney não tivesse sido criogenado às pressas, eu poderia dizer que escrevi seu necrológio com o cadáver ainda morno, na tarde de 15 de dezembro de 1966 para a capa do Caderno B do Jornal do Brasil. Aquilo foi mais que uma tarefa, foi um susto, um desafio para o pivete que eu ainda era. Penei bem menos, na década seguinte, para dar conta em cima do laço das mortes de Chaplin e Elvis Presley, na revista Isto É. 

Poucas coisas são mais desafiadoras e dolorosas do que falar por obrigação da morte de um amigo que sabemos ainda vivo, embora mais pra lá do que pra cá. Todos os verbos conjugados no passado: “foi”, “era” – é muito esquisito, se não agourento. E a gente ainda fica torcendo para que o nosso texto, suspenso pela recuperação do presuntivo defunto, seja condenado ao ineditismo e arquivado indefinidamente. 

Duas celebridades a mim ligadas e por todos nós admiradas quase sucumbiram a um piripaque, pouco tempo atrás, e não houve jeito de eu escapar da missão de obituá-las (ou seria obitoá-las?) preventivamente, aqui no Estadão. Como elas continuam vivas, posso dizer que minha reputação de pé-quente foi em parte restaurada. Estou aceitando encomendas. 

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’

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