O racismo não é uma questão pontual ou um efeito da desorganização social, mas é o próprio modo de ser da sociedade brasileira
O Brasil é um país que se organizou de forma especialmente hostil contra a população negra. Isso pode ser visto desde a violência presente nas relações cotidianas até no escárnio e negacionismo demonstrado pelas mais altas autoridades da República quando se referem ao tema. O racismo não é uma questão pontual ou um efeito da “desorganização social”, mas é o próprio modo de ser da sociedade brasileira.
O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, nas dependências do supermercado Carrefour no último dia 19 de novembro, não foi o primeiro caso de violência racial em circunstâncias parecidas. Mas o fato de ter ocorrido no Dia da Consciência Negra e no ano marcado pelos protestos contra o assassinato de George Floyd nos EUA permitiu que se pudesse atentar de modo mais detalhado para a repetição de elementos comuns nesses casos de violência, algo que reforça a existência de uma estrutura racista.
O primeiro dos elementos sempre constantes nesses casos é o envolvimento de agentes de “segurança” privada. A ideia de segurança que norteia a ação de tais agentes tem foco nas mercadorias e não nas pessoas, e resulta de uma sociedade que trata negros como inimigos. Não é por acaso a ligação entre empresas de segurança privada e agentes da segurança pública. A ideia que se tem de segurança não se desvincula do racismo.
Para os negros tornou-se comum a vida em um mundo em que se casam terror e circulação mercantil.
Nesse mundo, a humanidade para o negro só dura entre o primeiro e o último produto a passar pelo caixa.
Grande parte dos negros sabe a que me refiro: nossa sina é ficar nos corredores dos mercados temerosos e sendo perseguidos, medindo cada gesto, pensando em cada movimento para não parecer “suspeito” e, assim, evitar ser humilhado ou agredido.
Outro elemento que se repete é a equação entre precarização do trabalho e terceirização. O trabalho precário e a não responsabilização pelos atos cometidos pelos agentes da prestadora de serviço, é um fator que em muito contribui para casos de violência.
Por esse motivo, é preciso avançar para um sério debate sobre como a terceirização contribui para que o racismo continue a ser um “crime perfeito”, parafraseando o professor Kabengele Munanga. Nesse sentido, acredito que o reconhecimento da responsabilidade jurídica dos tomadores de serviço é um elemento fundamental de práticas antirracistas.
E se ainda não bastasse, as mais altas autoridades da República resolveram negar a existência de racismo no Brasil. Há mais do que desrespeito nessas afirmações. Existe a vocalização de um pacto pela morte, uma vez que a negação do racismo é um salvo conduto para que negros e negras continuem sendo assassinados sem que ninguém assuma a responsabilidade.
O Brasil não é um país seguro para pessoas negras. E é importante não apenas que o mundo saiba disso, mas que sejam criadas estratégias que tratem o racismo em toda a sua complexidade.
Silvio Almeida
Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama
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