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domingo, 6 de dezembro de 2020

O racismo estrutural

Nilson Lage

Não abro este espaço aqui à discussão, por três motivos:

1. discute-se, em redes sociais, não em busca da verdade, mas de aplauso, apoio, concordância;

2. não faço questão de estar certo; como minhas conclusões são geralmente péssimas, é tentador, imaginar que estou errado;

3. Uso isso aqui para expor ideias, não para defendê-las em batalhas verbais.

Bloqueio discussões, principalmente com militantes e apaixonados.

Isso posto, vamos ao “racismo estrutural”.

Se algo é estrutural, é de reparo inviável. Melhor destruir a estrutura danificada.

De cara, diria que se trata de imediatismo pequeno-burguês, tipo “tudo-ou-nada”, Apocalypse Now

Incomoda-me o uso de palavras, em Ciências Sociais, sem a definição precisa do que significam. “Estrutura” é um caso. Os modos de produção, as relações de classe podem ser estruturantes em uma sociedade. As trocas de bens, ideias e pessoas, não: fazem parte da dinâmica de sobrevivência, e se agregam às estruturas, que devem sustentá-las.

Isso nada tem que ver com a durabilidade de um contexto ou das ideologias que o prolongam..

O conceito objetivo de estrutura – organização das partes em um todo funcional – foi empregado metaforicamente, entre outros, por Levi Strauss, no seu estudo sobre relações de parentesco – que, ele, sabiamente, não associa a interdições de natureza genética, embora nelas devam inspirar-se, em última instância.

Tive oportunidade de debater essa representação ideológica da estrutura de parentesco com cientistas que estudavam estruturas proteicas de venenos de escorpiões. É uma viagem.

A consideração do racismo como comprometimento estrutural está presente há muito na sociedade – não apenas racista, mas, sobretudo, segregacionista – dos Estados Unidos. É a motivação das campanhas, persistentes até hoje, pela “repatriação” para a África dos descendentes de escravos (de uma dessas resultou a criação da Libéria, que não se perca pelo nome).

É falso.

O racismo, tal como aparece hoje na América, resulta de uma conjuntura colonial que se projeta no imaginário coletivo conforme um modelo de representação conveniente, binário, opositor e escamoteante da luta de classes. “Casa grande e senzala” serve ao modelo. Mas há o povo mestiço das minas, das periferias urbanadas, das vaquejadas que não serve.

Não é preciso demolir a estrutura. É bem mais fácil.

Abram institutos federais de ensino de segundo grau com acesso à universidade em lugares onde a população é pobre o miscigenada. Ofereçam condições financeiras para acesso aos cursos universitários mais prestigiados. Ensinem ciência em tempo integral às criancinhas – não só a ler, escrever e contar, mas as ciências todas. Digam a elas que estão sendo ansiosamente esperadas por gente de todas as cores.

Acreditem no povo!

E parem de brincar com as palavras.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

O Brasil não é um país seguro para negros e negras nem na hora das compras


O racismo não é uma questão pontual ou um efeito da desorganização social, mas é o próprio modo de ser da sociedade brasileira

Silvio Almeida

O Brasil é um país que se organizou de forma especialmente hostil contra a população negra. Isso pode ser visto desde a violência presente nas relações cotidianas até no escárnio e negacionismo demonstrado pelas mais altas autoridades da República quando se referem ao tema. O racismo não é uma questão pontual ou um efeito da “desorganização social”, mas é o próprio modo de ser da sociedade brasileira.

O assassinato de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro, nas dependências do supermercado Carrefour no último dia 19 de novembro, não foi o primeiro caso de violência racial em circunstâncias parecidas. Mas o fato de ter ocorrido no Dia da Consciência Negra e no ano marcado pelos protestos contra o assassinato de George Floyd nos EUA permitiu que se pudesse atentar de modo mais detalhado para a repetição de elementos comuns nesses casos de violência, algo que reforça a existência de uma estrutura racista.

O primeiro dos elementos sempre constantes nesses casos é o envolvimento de agentes de “segurança” privada. A ideia de segurança que norteia a ação de tais agentes tem foco nas mercadorias e não nas pessoas, e resulta de uma sociedade que trata negros como inimigos. Não é por acaso a ligação entre empresas de segurança privada e agentes da segurança pública. A ideia que se tem de segurança não se desvincula do racismo.

Para os negros tornou-se comum a vida em um mundo em que se casam terror e circulação mercantil.

Nesse mundo, a humanidade para o negro só dura entre o primeiro e o último produto a passar pelo caixa.

Grande parte dos negros sabe a que me refiro: nossa sina é ficar nos corredores dos mercados temerosos e sendo perseguidos, medindo cada gesto, pensando em cada movimento para não parecer “suspeito” e, assim, evitar ser humilhado ou agredido.

Outro elemento que se repete é a equação entre precarização do trabalho e terceirização. O trabalho precário e a não responsabilização pelos atos cometidos pelos agentes da prestadora de serviço, é um fator que em muito contribui para casos de violência.

Por esse motivo, é preciso avançar para um sério debate sobre como a terceirização contribui para que o racismo continue a ser um “crime perfeito”, parafraseando o professor Kabengele Munanga. Nesse sentido, acredito que o reconhecimento da responsabilidade jurídica dos tomadores de serviço é um elemento fundamental de práticas antirracistas.

E se ainda não bastasse, as mais altas autoridades da República resolveram negar a existência de racismo no Brasil. Há mais do que desrespeito nessas afirmações. Existe a vocalização de um pacto pela morte, uma vez que a negação do racismo é um salvo conduto para que negros e negras continuem sendo assassinados sem que ninguém assuma a responsabilidade.

O Brasil não é um país seguro para pessoas negras. E é importante não apenas que o mundo saiba disso, mas que sejam criadas estratégias que tratem o racismo em toda a sua complexidade.

Silvio Almeida

Professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama

terça-feira, 23 de junho de 2020

Pastor brasileiro ora por novo Holocausto



Link direto para o vídeo

A organização Sinagoga sem Fronteiras apresentou uma denúncia à Polícia Federal contra o pastor que, em sua loucura, se comporta como uma criança mimada e birrenta pedindo à deus que realize suas maldades.

"Um fascista sempre sabe quem deve morrer. E nunca é ele."


terça-feira, 16 de junho de 2020

Difícil


Os Estados Unidos passaram boa parte da sua história convencidos de que eram uma criação do iluminismo europeu, um produto das melhores intenções da Europa
Luis Fernando Verissimo

Cursei uma escola americana, onde todos os dias colocávamos uma mão sobre o lado esquerdo do peito e declarávamos nossa lealdade à bandeira dos Estados Unidos da América e à republica que ela representava, com liberdade e justiça para todos. Para ser completa, faltava à declaração um adendo de duas palavras: “inclusive negros”. No Sul dos Estados Unidos, negros eram não só discriminados e proibidos de andar nos bancos da frente dos ônibus com os brancos e frequentar os mesmos lugares públicos, mas muitas vezes caçados e assassinados por esporte. Nos estados do Norte também havia segregação, inclusive nas escolas onde todos os dias declinávamos nossa devoção à liberdade e à justiça, mas aí o crime maior era a hipocrisia, não o linchamento.

Os Estados Unidos passaram boa parte da sua história convencidos de que eram uma criação do iluminismo europeu, um produto das melhores intenções da Europa. Desde sua origem como nação existe esta consciência da América como uma experiência social, uma depuração dos ideais democráticos que o velho e viciado mundo não deixava crescer. A Constituição americana é o primeiro contrato explícito para uma sociedade de iguais na história, e seus signatários – leitores, muitos deles, de Locke, Montesquieu, etc. – sabiam que estavam inaugurando uma república inédita nas suas pretensões. Todos os outros mitos que têm formado a auto-estima americana desde então – o da terra da oportunidade, o do cadinho de raças, o do altruísmo na conquista e tolerância na vitória – partem destas primeira ideia da América como um novo começo, uma Europa regenerada, salva dos pecados da história. Na hipocrisia da declaração repetida de lealdade ao que não existe esta ilusão sobrevive.

Thomas Jefferson e os outros pais da república eram aristocratas rurais e a maioria tinha escravos. Os negros devem sua libertação à luta econômica entre o sul agrícola, o norte em vias de industrialização e o oeste pastoril, embora na história sentimental do país o fim da escravatura seja atribuída cem por cento aos bons sentimentos. Isto quer dizer que desde o momento da sua origem até as guerras judiciais pelos direitos civis nos anos sessenta do século XX, a república conviveu, com algum desconforto mas sem maiores prejuízos à sua auto-estima, com uma raça oprimida em seu meio, antes e depois da abolição. Diga-se em defesa dos ideais jeffersonianos que a igualdade dos negros foi conseguida na lei – isto é, na teoria da sociedade – antes de chegar, aos poucos, à sociedade.

A integração tem sido lenta e difícil, como prova o caso George Floyd e suas repercussões. Não sei se a declaração de lealdade à bandeira continua a ser exigida dos alunos americanos. Mas duvido que a menção de liberdade e justiça para todos não seja recebida, hoje, com pelo menos alguns sorrisos irônicos.

sábado, 13 de junho de 2020

Racistas e escravagistas choram por estátuas de carrascos



Eu sei que ninguém aguenta mais que eu fale de estátua, mas vou lançar a BRABA:

Esse bando de gente que chora por estátua nunca derramou uma lágrima pra quando lugares de memória como terreiros são atacados, ou quando uma língua dos povos desaparece da memória da comunidade.

Choram por estátuas achando que estão defendendo o passado, mas nunca vi falarem qualquer coisa sobre o cais do Valongo MAIOR PORTO DE ESCRAVOS DAS AMÉRICAS ter sido soterrado por reformas urbanas.

Mais: estátuas de Zumbi dos Palmares foram constantemente vandalizadas na última década. Algum articulista escreveu um texto emocionado clamando a população que preservasse a memória do líder quilombola???

Eu poderia falar ainda mais sobre como esse país destrói monumentos e patrimônios (materiais e imateriais) e sobre como nossa grande imprensa nunca se importou com isso. Mas vou fazer outra pergunta: por que ela se importa AGORA?

Arrisco aqui uma hipótese: medo de protestos. Medo de serem identificados com o bolsonarismo. Querem conter as forças mais radicais no campo da oposição.

Mas isso é só o superficial. No fundo, isso só revela que pra essa gente, monumentalizar bandeirantes, senhores de escravos, oligarcas e ditadores não é um problema.

Chego a pensar que talvez se identifiquem com isso (não tem uma rede de rádio e TV que saúda esse passado?).

O que não é surpresa: a grande imprensa representa uma elite brasileira - que tem cor, caso seja preciso afirmar o óbvio.

Talvez por isso sua insensibilidade com os patrimônios e monumentos dos "de baixo". Talvez por isso seu medo de que questionemos seus queridos símbolos.

De novo, monumentos e patrimônios configuram um debate sobre o presente, sobre o que e como queremos lembrar do passado.

Ao menos fica evidente, nesse contexto, do que os jornalões querem lembrar. E também, claro, do que querem esquecer.

sábado, 6 de junho de 2020

I can’t breathe


Michael de Adder

Um pouco mais de oxigênio

Os Estados Unidos não podem ser considerados um país desenvolvido porque uma percentagem considerável dos seus habitantes vive no terror constante de ser importunada e morta por agentes da autoridade.

Sei que venho de um país do terceiro mundo porque tenho mais medo de policiais do que de ladrões. Nos Estados Unidos, uma parte importante da população atravessa o quotidiano com um sentimento semelhante. Os Estados Unidos, portanto, não podem ser considerados um país desenvolvido, ao menos para uma percentagem considerável dos seus habitantes, os americanos de ascendência africana, os quais, mesmo partilhando ruas, jardins e edifícios com os seus concidadãos de origem europeia, vivem no terror constante de serem importunados e mortos por agentes da autoridade.

É dificil respirar num contexto assim. O assassinato de George Floyd por um policial branco em Minneapolis veio, uma vez mais, expor as feridas seculares da desigualdade e do racismo. Desta vez a barbárie foi filmada e, em poucos minutos, graças ao imenso poder dos novos meios de comunicação, o mundo inteiro testemunhou a lenta agonia de George.

No meu círculo de familiares e amigos há quem acompanhe com enorme entusiasmo as manifestações que se propagam por diversas cidades americanas, e também europeias, em solidariedade com a sofrida comunidade afro-americana. Multiplicam-se os protestos, os debates, os manifestos. Eu próprio juntei a minha assinatura à de outros cem escritores africanos — entre os quais Pepetela, Ondjaki, Grada Kilomba e Kalaf Epalanga —, pedindo para que os governos africanos reconheçam as ligações antigas e profundas entre o continente e as comunidades africanas na diáspora, e apoiando a União Africana, na condenação do “terrorismo contínuo do governo dos Estados Unidos da América contra as pessoas afro-americanas”.

Entre os meus amigos, há quem acredite que esta rede global de movimentos solidários está no centro de uma revolução de mentalidades capaz de, finalmente, derrotar o racismo institucional, senão no mundo, ao menos nos Estados Unidos da América.

Não estou tão otimista. Vi revoluções apagarem-se, ainda antes que se extinguissem nas ruas as altas chamas da revolta. Vi revoluções devorando os próprios filhos, ao mesmo tempo que recuavam em todos os princípios e ideais.

Espero, contudo, que desta vez a humanidade consiga avançar alguns passos no processo coletivo de renovação de mentalidades. Os manifestantes não exigem muito: querem apenas que todas as pessoas sejam tratadas com idêntico respeito — como pessoas. Querem que os agentes da lei a cumpram. Policiais devem ser treinados para proteger vidas, não para as tirar.

O Brasil precisa desta revolução ainda mais do que os Estados Unidos. A trágica epidemia que estamos vivendo pode explicar a apatia ainda prevalecente, em contraste com o ativismo que continua a ocupar ruas e praças, não apenas nos Estados Unidos, mas também em Roma, Paris e Lisboa.

Enquanto escrevo esta coluna, George Floyd estará sendo assassinado por um policial nalguma esquina de uma grande cidade brasileira. A principal diferença entre os Estados Unidos e o Brasil no que diz respeito à descriminação racial é que no país de Obama a população afrodescendente constitui uma pequena minoria — 12,7 por cento. No Brasil, os afrodescendentes são a clara maioria. É essa maioria que não consegue respirar.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

O essencial nunca muda


Imprensa Internacional

Em 2015, por ocasião dos protestos ocorridos em Baltimore, EUA, devido à morte do cidadão afro-americano Freddie Gray pelas mãos da polícia, a revista TIME publicou uma capa que procurava chamar a atenção para os protestos de 1968 depois a morte de Martin Luther King Jr. e estabelecer um vínculo histórico entre os dois.

Com a morte, há alguns dias, de outro cidadão afro-americano, George Floyd, também pela polícia, os protestos que eclodiram em Minneapolis forçam a extensão desse período de violência de 1968 a 2020.

domingo, 22 de março de 2020

Para não esquecer o racista do telejornal

Jornalistas refletem a persistência da mentalidade escravocrata na sociedade brasileira
[RESUMO] Autora aponta exemplos de racismo e preconceito de classe em telejornais, nos quais jornalistas, a seu ver, atentaram contra a autoestima de negros e pobres, associando-os a posições servis ou criminosas, atos que refletem a persistência da mentalidade escravocrata da sociedade brasileira.

Não há risco de esquecer, porém. Racismo no jornalismo é atualizado todo dia: há duas semanas, foi na TV Record, quando “vazou” para redes sociais um grupo de WhatsApp formado por jornalistas daquela emissora com o objetivo de proferir ofensas e difamações contra colegas negros da casa. Atitude criminosa, pela discriminação racial, e antiética de profissionais cuja função é informar e não educar para a percepção racista, seja em público, seja na covardia do grupo privado.

Consta que a Record demitiu os jornalistas envolvidos, inclusive João Beltrão, diretor regional de jornalismo em Brasília. Beltrão teria tentado evitar a dispensa dos profissionais, entre eles a apresentadora do telejornal DF Brasília, Lívia Braz, padrão loiro e americanizado de âncora.
Racismo e preconceito de classe foram expressos também, em tempos recentes, por três jornalistas da Globo —e dois deles ao vivo. Foi um “âncora” atrás do outro: William Waack em 2017, José Roberto Burnier em 2018 e Rodrigo Bocardi em fevereiro de 2020. “Âncora”, esse nome arrogante que se dá, na mídia televisiva e de rádio, aos comandantes de telejornais e afins.

Não é à toa que esses apresentadores são machos brancos, cabelo cortado no melhor estilo de soldado raso, à escovinha, como exige a Globo sempre simpática ao militarismo. São três caras típicas, adestradas no “media training” (treinamento “de” ou “para” ou “sobre como” aparecer na mídia) do sorriso constante —e da cara ligeiramente séria, quando da notícia triste—, como se cúmplice do telespectador na veiculação da mensagem de “felicidade” que a emissora deve promover sempre, para manter os aparelhos de TV e eletrônicos ligados e conectados nela.

O caso mais recente foi protagonizado por Bocardi, apresentador do telejornal matinal Bom Dia São Paulo, da Globo. Em 7 de fevereiro último, Bocardi “confundiu”, ao vivo, um atleta negro do clube Pinheiros com um “catador de bolinhas” do mesmo local. Bocardi é sócio do Pinheiros, reduto da classe alta paulistana —e onde o processo de seleção é daqueles que só aceita associados por indicação, valor da renda e do patrimônio, status social (prestígio, tipo jornalista “influenciador”), bem como, consequentemente, cor da pele, uma vez que poucos negros terão acesso a esses critérios.

Ao vivo, naquele dia, um repórter do telejornal entrevistava um jovem negro (Leonel, que aguardava o trem para ir ao clube Pinheiros), na plataforma do metrô de São Paulo, sobre a qualidade do transporte público na cidade. Ao ouvir a referência ao “clube Pinheiros”, Bocardi interfere imediatamente na entrevista e pergunta ao repórter se Leonel ia “catar bolinhas” (de tênis) no clube (como fazem os chamados gandulas).

Leonel respondeu: “Não, não. Eu sou atleta lá do Pinheiros, jogo polo aquático”. Bocardi, sem nenhum constrangimento e armando um simulacro de camaradagem com o rapaz negro, disse: “E eu tava achando que eram meus parceiros ali que me ajudam nas partidas e tal... um jogador de polo aquático, olha que fera”.

Ora, o jornalista não apenas expressou seu arraigado preconceito racial e de classe —aquele que bota os negros, por sua cor de pele, nas funções subalternas de cidadãos de segunda categoria— como também se esmerou na mais baixa demonstração de exibicionismo: quis deixar registrado, ao vivo, seu espetacular status de sócio do Pinheiros para a claque desavisada que interage com seu telejornal.

Bocardi pôs em prática ali uma técnica de manipulação da informação, como ensina Perseu Abramo: a técnica de inverter a relevância da notícia, apresentando como secundário o que era principal e importante (o fato em si, o objeto da matéria jornalística, a qualidade do transporte público); e apresentando como principal o que era secundário, supérfluo e acessório: o detalhe esdrúxulo de que o jornalista é sócio do Pinheiros e conta com rapazes negros, como Leonel, a seu serviço na catação de bolinhas de tênis.

Evidente a manifestação da ideologia e da técnica de dominação de classe: expor o negro (e o pobre) ao colocá-lo no lugar do servil catador de bolinhas (e nunca do atleta; e nunca do associado do clube do branco rico), para que a sociedade assim o reconheça sempre, naturalizando a desigualdade e ocultando-a ao afirmá-la como oportuna e feliz “parceria”.

A discriminação disfarçada de camaradagem —ou a falsa intimidade com o público das redes sociais, com as quais interage— é o que esse jornalista Bocardi também utiliza com a claque de telespectadores desavisados que todo dia lhe manda vídeos caseiros celebrando a palavra de ordem do telejornaleco: “que o Bom Dia volta já”, entre sorrisinhos e gritinhos, antes dos intervalos para anúncios.

Enganados, como se fossem protagonistas dos acontecimentos pelo simples fato de aparecerem na TV, esses telespectadores são tratados na verdade como imbecis, como ventríloquos incapazes de pensar ou de emitir juízo, como já disse Marilena Chaui. Trata-se de exemplo de conduta da mídia que idealiza e quer perpetuar “a sociedade sem rosto, passiva e caudatária, despolitizada e amorfa”, em palavras do crítico Fábio Lucas. Mídia esta, segundo ele, que é fonte da retórica do embelezamento da desigualdade e da dependência.

Bocardi estava muito à vontade na sua postura odiosa. O que leva a crer que o racista do telejornal age como se autorizado —pela Rede Globo, em primeiro lugar (ainda que, uma vez ou outra, a empresa se sinta na obrigação de demitir algum racista); pela persistente mentalidade escravocrata da “sociedade” brasileira; pela atual onda de fascismo alimentada cotidianamente pelos representantes do governo federal.

Muito à vontade, e bastante convicto, estava também José Roberto Burnier, o âncora do telejornal matinal GloboNews em Ponto, ao associar um assalto à sede do Corinthians (a Arena Corinthians, na cidade de São Paulo), ocorrido em setembro de 2018, aos próprios torcedores de futebol do clube, que carrega o estigma de ser time popular, do povo e, portanto, de gente pobre —e, consequentemente (na avaliação do jornalista), de marginal, ladrão etc.

Burnier perguntou, ao vivo, à repórter da matéria se a polícia já tinha alguma pista dos “criminosos”, e completou: “Estão roubando o próprio time agora, é isso?”. Postura manipuladora perversa, carregada da hipocrisia senhorial de jornalistas que se consideram eles próprios a “opinião pública” —que se colocam como protagonistas do que deveria ser a notícia, a informação.

E o racismo de Burnier contra os corintianos se enquadra na definição do jurista Uadi Lammêgo Bulos, “racismo é todo e qualquer tratamento discriminador da condição humana em que o agente dilacera a autoestima e o patrimônio moral de uma pessoa ou de um grupo de pessoas”.

O mesmo farisaísmo racial dos brancos, em expressão de Florestan Fernandes, revelou-se no episódio em que o jornalista William Waack, em estúdio da Globo pouco antes de entrar no ar, atribuiu a “coisa de preto” o barulho de buzina de um carro que passava pelo local.

Era novembro de 2017. Waack, então âncora do Jornal da Globo, faria uma transmissão em frente à Casa Branca, de Washington (EUA). Certamente viu que o motorista do carro era negro. E reclamou, na base do palavrão e da ofensa racista: “Tá buzinando por que, seu m... do c...?”, diz ele. Em seguida, xinga o motorista negro, à boca pequena: “Deve ser um, não vou nem falar, eu sei quem é... É preto, é coisa de preto”.

A fala de Waack foi divulgada em redes sociais por dois jovens negros funcionários da Globo. Talvez mais odiosa do que as demais —porque covarde, emitida nos bastidores—, a atitude do jornalista foi punida com a demissão dele pela emissora.

Eis a mídia da sociedade escravocrata brasileira, como afirma Florestan, sociedade que só preparou o escravo e o liberto para os papéis econômicos e sociais que eram vitais para o equilíbrio interno dela própria —para impedir todo esclarecimento da vida social organizada entre os escravos e os libertos, por causa do temor constante da “rebelião negra”. Mas quando a rebelião virá?

terça-feira, 3 de março de 2020

Bem-vindo à realidade


O PESADELO DE HÍCARO

Leandro Fortes

Em 2018, quando a campanha de Jair Bolsonaro começou a ganhar corpo, não sei por que cargas d'água, esse rapaz surgiu na minha timeline do Facebook: Hícaro Teixeira, jornalista, saracoteando nos corredores do Congresso Nacional, apoiando as teses absurdas da extrema direita. Fazia o estilo histriônico e agressivo da moda, meio Mamãe Falei, meio chacrete do MBL, tipo Fernando Holiday.

Eu vi aquele menino negro apoiando um demente que pesava quilombolas em arroba e, indignado, escrevi no post dele que era ridículo um negro, sob qualquer pretexto, apoiar a candidatura de Bolsonaro.

Na manhã seguinte, minha caixa de mensagens do Facebook estava infestada de fascistas me xingando de racista e incitando Hícaro a me processar. Um bando de débeis mentais estimulados pelo clima eleitoral de então.

Passado um tempo (duas ou três semanas), recebi um telefonema de uma escrivã de polícia civil do Distrito Federal, não lembro de qual DP. A agente queria esclarecimentos sobre meu comentário na postagem de Hícaro, porque o alegre ativista de direita, então um bolsonarista de carteirinha, havia feito um boletim de ocorrência me acusando de racismo.

A policial ouviu meu argumento fundamental: eu não podia ser racista porque o comentário tratava, justamente, da incoerência de um negro apoiar a candidatura de um racista declarado. Ela concordou, agradeceu pelos esclarecimentos e nunca mais tive notícias, nem dela, nem do BO de Hícaro.

Agora, leio que o jovem, arrependido da merda em que se meteu, virou alvo, ele sim, dos racistas que formam a base de ódio do bolsonarismo. A turma com a qual ele andava e que só o aceitava enquanto ele se comportava como escravo domado.

No momento em que Hícaro tomou consciência de sua condição de negro em um País racista e, hoje, governado por gente que o odeia, estruturalmente, virou um inimigo a ser eliminado - se possível, fisicamente.

Bem-vindo à realidade, Hícaro.

sábado, 18 de janeiro de 2020

Carta ao desgraçado


Nilson Lage

Nossa cultura nada tem com a fé dos hipócritas, a família castradora, a Pátria assassinada. Pelo contrário, é sincera, liberta e viva ainda.

Nascemos nus, entre matas e rios. Quando jovens, enfeitávamos o pênis porque, ao ferir a harmonia das curvas do corpo, deve ter serventia estética, além das funcionais. Quando mulheres, guardávamos a porta do feto, para amados amantes. no casamento ou antes e após ele.

O sexo é um direito humano inalienável, a que devem ter acesso todos os púberes, da adolescência e idade adulta até à morte. A contracepção, conjunto de normas e procedimentos que a cultura ordena e devem ser transmitidos pelos pais aos filhos.

Não há como educar os moços de um jeito e as moças de outro.

Nos dois primeiros séculos de nossa História, e em partes do espaço e do tempo do terceiro século, tivemos terra e natureza, que agora nos sonegam. Havia entrepostos de comércio estrangeiros -- portugueses por todo o litoral, franceses no Maranhão, Pernambuco e Rio e Janeiro; espanhóis no Sul. Os holandeses ficaram mais tempo no Recife. Mas, nesse mundão de país, isso pouco importava.

Todos vinham fazer negócios, sós, por longo tempo; em seus países de origem, o gozo das mulheres era pecado e os minutos do coito, para elas, tempo de reza ou impaciência. Como apeteciam aos colonos as índias e, logo, as negras, gente normal e sadia!

O racismo ibérico é social, não do indivíduo, não se confunde com o segregacionismo e a rejeição ao mestiço (caso típico de Meghan), na cultura anglo-germânica. A colonização portuguesa (Portugal já era uma mistura de etnias) começou, de fato, com os ciclos da cana-de-açúcar e das minas, que trouxeram os escravos africanos. Os desdobramentos foram distintos. Nas fazendas, a casa grande confrontava a distante senzala, em alegoria à luta de classes -- talvez, por isso, o relato preferido nos raciocínios dialéticos. Nas minas, para onde vinham apenas senhores de confiança do rei, contato urbano, próximo e formação de uma cultura barroca diferenciada. Todas as damas de casas de grossas paredes em Diamantina, então a rica e poderosa Tijucos, eram negras, relata a historiadora Júnia Ferreira Furtado, em seu "Chica da Silva e o Contratador de Diamantes". Houve casos de abandono de filhos ilegítimos -- Luís Gama, eminente tribuno, filho de mãe livre e negra, foi vendido como escravo aos dez anos com a provável anuência do pai, branco -- mas a regra não era essa. A pesquisa de genes mitocondriais realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais provou isso há décadas. Somos inevitavelmente, um povo mestiço, mesmo os de sobrenomes de grife.

A mestiçagem contagia os europeus que para aqui migraram nos últimos 150 anos, em que pese a maciça propaganda racista europeia -- em particular junto às colônias alemã e italiana -- conduzida na década de 1930 e continuada por antropólogos norte-americanos, no pós-Segunda Guerra. O princípio teórico que sustenta esse fato é que não se pode separar o homem corpo do homem espírito, que se define como persona a partir da cultura, palavra, mesa, cama, valores. Nem os alemães de Blumenau nem os italianos de Londrina seriam bem compreendidos na Alemanha ou na Itália de hoje.

A narrativa casa grande/senzala estendeu-se às lavouras do café, principalmente no Rio de Janeiro, e do algodão, no Nordeste -- aí por pouco tempo: quando o jangadeiro Dragão do Mar sustou o desembarque de africanos no Ceará expressava a luta contínua contra o tráfico conduzida por índios e mestiços -- os hoje nordestinos, execrados pela elite antinacional de São Paulo.

A escravidão foi episódica e geralmente escassa no Norte, Centro-Oeste e Sul. Nosso tipos nacionais -- o seringueiro, o mateiro, o sertanejo, o caipira, o gaúcho, o jangadeiro, o vaqueiro da caatinga -- são personagens resultantes da miscigenação de brancos e índios, eventualmente cafuzos. No censo de 2010, mais de metade da população se declarou “não branca”. Dada a força de “ideologia do embranquecimento” na autoestima das pessoas, a proporção deve ser bem maior.

Nada temos com a Cruz de Cuernavaca, a música de Wagner, a simetria ascética do cenário, as citações de Goebbels; feühres, duces ou mediocridades projetadas por artes de mídia.,

O que está errado no vídeo que registra seu crime é a bandeira.

sábado, 13 de julho de 2019

Marilene Felinto diz que levou décadas para superar o racismo brasileiro

Flip 2019: Aplaudida de pé, Marilene Felinto diz que levou décadas para superar o racismo brasileiro


Numa das mesas mais aplaudidas da programação principal da 17.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) até aqui, a escritora Marilene Felinto emocionou a plateia ao comentar sua trajetória particular e dizer que levou décadas para superar o “racismo internalizado na mentalidade do brasileiro”.

“Os ancestrais de minha mãe são possivelmente sobreviventes da degola e da tortura a que foi submetida pelo exército de Euclides da Cunha a gente preta do arraial de Canudos, os milhares de escravos recém-libertos que zanzavam pelo sertão em busca de comida e alguma crença para suportar aquelas condições desumanas de vida”, leu, de um texto escrito previamente à mesa, num dos momentos mais emocionantes da Flip até aqui.

Ela reconhece que o escritor fez sua mea-culpa anos depois do fim da Guerra, em Os Sertões, mas diz que o fato pouco lhe importa. “Levei anos para superar o estrago do racismo internalizado na mentalidade do brasileiro, tão bem codificado no linguajar culto de Euclides da Cunha e dos sociólogos do seu tempo”, disse.

“Minha presença aqui e esta fala, que vocês infelizmente pagaram para ouvir, pode destoar assim do que se espera. Mas é que eu não aceito a norma quando ela significa a manutenção, a naturalização da perversidade, da exclusão, da desigualdade social. Levei décadas para superar o complexo de inferioridade resultado da discriminação de raça e de classe. Durante tempos, acreditei na minha própria feiura. ‘Sou feia’, eu me dizia quando menina, me olhando no espelho”, leu.

Dona de uma trajetória única no cenário das letras brasileiras, Marilene lançou seu primeiro romance, As Mulheres de Tijucopapo (republicado em nova edição para a Flip, em edição independente, assim como outros de seus livros), em 1982, e depois estabeleceu uma voz ativa na imprensa brasileira com uma coluna de comentários políticos na Folha de S. Paulo, a convite do jornalista Otavio Frias Filho, com quem depois rompeu. Ela deixou a experiência na imprensa de lado, disse, “por não aceitar o estado de coisas como ele é”.

“Não aceitei a censura, a liberdade de expressão que só cabe aos donos da mídia”, disse. Em outro momento, ela afirmou que a mídia brasileira deve uma reparação histórica aos brasileiros.

Rompida com a imprensa, Marilene desenvolveu ainda um trabalho educativo com jovens da periferia de São Paulo, estudando economia, sociologia e filosofia com alunos do ensino médio, e trabalhou para o PT em algumas ocasiões. A escritora vive há anos no interior de São Paulo e nunca parou de escrever, embora estivesse há tempos sem publicar.

Sobre As Mulheres de Tijucopapo, que chega agora à sua quarta edição, a escritora diz em seu prefácio: “É um romance de juventude. Por isso mesmo cheio dos defeitos, do ímpeto equivocado, dos impulsos irascíveis daquele período da vida (para não dizer da minha já tresloucada personalidade). Mas é nele também que reconheço a força inconfundível, o vigor imbatível da fase única em que uma pessoa se move impulsionada por uma fé cega no amanhã”.

Os outros títulos lançados agora em edição da autora são: Fama e Infâmia: Uma Crítica ao Jornalismo BrasileiroSinfonia de Contos de Infância: Para Crianças e AdultosContos Reunidos e Autobiografia de uma Escrita de Ficção.

Marilene disse ainda se sentir fora de moda e malcomportada. “No que se refere ao universo da cultura, das artes perpetua-se a mesma desigualdade da estrutura social brasileira em todos os âmbitos: trata-se da mesma hierarquia social branca e rica, o cenário é composto pelos mesmos sobrenomes de sempre”, disse.

Ao reconhecer que lhe foi muito custoso aceitar o convite para participar da Flip, dedicou sua fala “aos escritores do interior do Brasil”, “aos escritores anônimos, das cidades e das periferias das grandes cidades, entre estes últimos, jovens e moças negros, vítimas do extermínio cotidiano que ali se processa”.

Ela disse entender que os palcos e espetáculos de literatura, como aquele em que estava presente, não tem nada em comum com a atividade silenciosa da escrita e da leitura. “Mas o que, afinal, eu vim fazer aqui, então?”, questionou. “Acontece que certo tipo de escritor como eu é bem louco e faz pouco sentido.”

Escrever literatura, para ela, só serve para o próprio autor do texto elaborar e investigar questões que ele mesmo considera insuportável na realidade. “Para torná-la suportável, então, a pessoa escreve sobre ela, inventa outra realidade. Mas quem precisa disso?” Ela reconhece, a seguir, porém, que a literatura pode ser um "empreendimento de saúde", emprestando palavras de Gilles Deleuze.

Entre outras homenagens na sua fala de abertura, mencionou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (“o melhor que já houve por aqui, a despeito dos erros que tenha cometido”), Dilma Rousseff (“que abriu com suas saias de guerrilheira um espaço de esperança para nós, mulheres”) e o jornalista Glenn Greenwald, que na sexta-feira, 12, arrastou uma verdadeira multidão em Paraty. A curadora da Flip, Fernanda Diamant, Marielle Franco e a jornalista Suely Duval Gonçalves, também foram citadas por Marilene.

No rápido papo que se seguiu à leitura do texto, o mediador Fernando Barros e Silva leu outro texto de Marilene, inédito, em que ela conta ter sido estuprada por uma figura relevante do mercado editorial brasileiro nos anos 1980. “Se fosse jovem, me juntaria ao movimento Me Too e diria seu nome”, escreveu. "Mas confio a missão às novas gerações."

Questionada pela plateia sobre sua opinião sobre os novos movimentos feministas, disse: “Sempre fui feminista. Tem que ser, alguém tem dúvida? Acho lindo essa coisa de feminismo negro. Na minha época era diferente, mas você tem um posicionamento do movimento negro jovem brasileiro que é admirável. Isso tem que ser dito, apoiado e admirado”.

Ao explicar que teve aprender o “paulistês” quando chegou em São Paulo (sua família é de origem nordestina), comentou que o choque cultural da cidade grande foi “fortíssimo”, questão que a fez escrever seu primeiro romance. Com bom humor, disse que poderia parecer que ela estava gostando de estar ali, no palco da Flip - “mas não estou”, riu.

No fim do debate, ofereceu sua visão sobre a atual situação política brasileira: “É uma tragédia, um retrocesso social gravíssimo para todas as camadas sociais. Jovens, velhos. Temos que apostar na Vaza Jato, não vejo outra solução no momento”, disse, referindo-se ao vazamento de mensagens de membros da Operação Lava Jato e do então juiz Sérgio Moro.

domingo, 2 de junho de 2019

Os europeus menosprezaram os neandertais - até perceberem que compartilhavam seu DNA

Antonio Luiz M. C. Costa

Quando se descobriu que são os europeus e não os aborígenes australianos que têm mais parentesco com os neandertais, a imagem do homem de Neandertal passou por uma transformação dramática.

"Quando seus restos foram descobertos em 1856, o naturalista alemão Ernst Haeckel sugeriu nomear-lhes Homo stupidus. Mas agora esses mesmos neandertais, outrora definição de dicionário de assassinos simplórios, boçais e incivilizados, foram estranhamente reabilitados."

Em 2018, pesquisadores na Suíça e na Alemanha sugeriram que os neandertais tinham um "comportamento cultural sofisticado", levando um arqueólogo britânico a se perguntar se "eram muito mais refinados do que se pensava".

Um arqueólogo na Espanha afirmou que humanos modernos e neandertais devem ter sido "cognitivamente indistinguíveis".

"Os neandertais são romantizados. Não estão mais aqui e não temos muitas evidências sobre como eles eram ou como viviam, o que significa que eles podem ser o que quisermos que eles sejam. Somos livres para projetar boas qualidades, coisas que admiramos e nossos ideais neles".

Por mais de um século, a palavra “neandertal” foi sinônimo de baixa inteligência. No espaço de uma década, uma vez que se suspeitou da ligação genética com os europeus modernos, tudo isso mudou.

"Se fossem os aborígenes australianos que tivessem alguns ancestrais neandertais em vez dos brancos europeus, nossos primos neandertais teriam tido sua imagem tão extraordinariamente reformulada? Eles teriam sido recebidos com tantos abraços calorosos?"

"Os neandertais foram trazidos para o círculo da humanidade por terem um pouco de parentesco com os europeus - e se esqueceu que, há um século, foi sua suposta semelhança com nativos australianos que ajudou a expulsar estes últimos, seres humanos vivos e reais, deste circulo"

segunda-feira, 27 de maio de 2019

A revolução dos brancos


Leandro Fortes

Desde 2013, já era possível notar que essas manifestações de fascismo urbano eram, por assim dizer, piqueniques cívicos da classe média branca, racista e iletrada do Brasil.

O antipetismo alimentado pela mídia fez os pobres apoiá-las, mas não conseguiu manchá-las de pardo: durante todo o processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff, a histeria das ruas manteve-se branca, alva, em fantasias verdes e amarelas.

Mesmo fracassadas, as manifestações de apoio a Bolsonaro mantiveram esse padrão intacto. Mais ainda, filtraram esse fenômeno até o limite de qualquer percepção.

Nas ruas, nos pequenos e grandes grupos, eram sempre brancos e brancas em máscaras de ódio, rancor e tristeza. Uma gente tão infeliz que não causa espanto nenhum as opções que faz.

Essa gente horrível, plena de desgosto, ainda vive seu momento, embora seja óbvio o seu ocaso.

Ainda assim, me embrulha o estômago ver essa turba ignorante empunhando banners de vinil expondo a própria ignorância, disseminando ódio e intolerância, erguendo bonecos infláveis para disfarçar uma vida inteira de insignificância.

terça-feira, 30 de abril de 2019

Matar negro é adubar a terra

 Comentarista de arbitragem da Globo denuncia agressões racistas 

MÁRCIO CHAGAS DA SILVA para o UOL

Um dia meu filho de cinco anos me perguntou por que os pretos dormem na rua e são pobres. Expliquei que é um resquício da escravatura, que estamos tentando mudar isso, mas que é difícil. Não sei se ele entendeu. Às vezes nem eu entendo. Sendo negro em um estado racista como o Rio Grande do Sul, eu me acostumei a ser o único da minha cor nos lugares que frequento.

Fui o único negro na escola, o único namorado negro a frequentar a casa de meninas brancas e, como árbitro, o único negro apitando jogos no Campeonato Gaúcho. Hoje sou o único negro comentando esses jogos na TV local. Durante muito tempo, me calei ao ouvir alguma frase racista. Engolia, como se não fosse comigo. Mas era comigo. A verdade é que estou puto com os racistas. Todo fim de semana escuto gente me chamando de preto filho da puta, macaco, favelado. "Matar negro não é crime, é adubar a terra", eles dizem. Estou de saco cheio dessa história.

A galera saiu do armário total, não tem vergonha nenhuma. As manifestações racistas estão vindo cada vez mais ferozes e explícitas. O fato de eu estar na TV agride muito mais as pessoas do que quando eu apitava. O racista não aceita que você ocupe um espaço que você não deveria ocupar.

Dá vontade de sair na mão com esses caras, mas sei que se eu fizer isso vou perder a razão.

Em um Avenida x Internacional, em Santa Cruz do Sul, o juiz marcou um pênalti que não aconteceu e eu comentei no ar que o pênalti não aconteceu. Um torcedor foi no meu Instagram e escreveu: "Não gosta de ser chamado de preto, mas tá fazendo o quê aí?" O que tem a ver a minha cor com o meu comentário? Outro cara me chamou de "crioulo burro" e um terceiro disse que, se pudesse, me enfiaria uma banana no rabo. Os caras escrevem isso em público, com nome e sobrenome. Já acionei o Ministério Público.

Caxias do Sul, para mim, é uma das cidades mais terríveis para trabalhar. Há algumas semanas, fui transmitir um jogo no estádio Alfredo Jaconi e passei uma tarde inteira ouvindo xingamentos. Tive que ouvir que era um preto ladrão, que estaria morrendo de fome se a RBS, a Globo local, não tivesse me contratado, que eles tinham trazido banana pra mim. A cada cagada que o árbitro fazia em campo, eles se voltavam contra mim na cabine e xingavam. Eu virei um para-raios pro ódio deles.

Um dia, em um Juventude x Internacional, a arbitragem estava tendo uma péssima atuação. Houve um pênalti não marcado para o Juventude, e uns torcedores que ficavam perto da cabine se viraram para mim dizendo coisas como: "E aí, preto safado, vai falar o quê agora?" Eu já tinha dito no ar que o juiz tinha errado ao não marcar o pênalti. O clima já estava pesado desde o começo, e eu me segurava para não descer lá e ir pro soco com os caras, mas é tudo que eles querem, não é?

Uma mulher com uma criança de colo se virou para mim e começou a xingar: "Negro de merda, macaco, fala alguma coisa". Ela veio em minha direção, achei que ia me dar uma bofetada ou cuspir na minha cara, que é uma coisa que eles costumam fazer na serra gaúcha.

"O que eu fiz para você", perguntei quando ela se aproximou.

"Você não está vendo que ele está roubando, que não marcou o pênalti?", perguntou de volta, apontando ao árbitro em campo.

"Moça, tudo que você está falando eu disse na transmissão. Por que você está dizendo essas coisas para MIM?"

"É que você colocou ele lá", ela respondeu. E eu tive que explicar que quem escala os árbitros é a Federação Gaúcha e que eu não tenho nenhuma influência sobre ela.

No intervalo, um rapaz que estava com a namorada virou e disse: "Aprendeu direitinho como roubar o Juventude, né, preto de merda? Se não fosse a RBS, estaria na Restinga roubando ou morrendo de fome." Os racistas costumam usar o bairro periférico e violento da Restinga, em Porto Alegre, para me atacar. Quando essas coisas acontecem, os colegas brancos dizem para eu deixar pra lá, que eu sou maior que isso, que estamos juntos, que bola pra frente. Juntos no quê? Deixar pra lá como? Quem sente a raiva e o constrangimento sou eu. Como "estamos juntos"?

Depois de muito tempo ouvindo esse tipo de coisa, eu desenvolvi uma forma de defesa, que também é uma forma de ataque. No final do jogo, quando um cara disse que tinha trazido uma banana ("porque eu sei que tu gosta"), eu falei que gostava mesmo. "Já brinquei muito de banana com tua mãe." Os amigos dele riram, e o cara saiu com o rabo no meio das pernas.

Tem um motivo de eles sempre se referirem a bananas quando querem me agredir.

No dia 5 de março de 2014, o Esportivo jogou contra o Veranópolis, em Bento Gonçalves, uma cidade perto de Caxias, também na serra gaúcha. Essa é a região mais racista do estado. Logo que saí do vestiário já fui chamado de macaco, negro de merda, volta pra África, ladrão. Falei pros meus colegas:

"Se nem começou o jogo os caras já estão assim, imagina no final."

Acabou a partida. Jogando em casa, o Esportivo venceu por 3 a 2, e não teve nada anormal no jogo: nenhuma expulsão, nenhum pênalti polêmico, lance de impedimento controverso, nada. Mesmo assim os torcedores se postaram na saída do vestiário para me xingar.

A uma distância de uns dez metros, questionei um senhor que estava com o filho:

"É isso que você está ensinando pro seu filho?"

"Vai se foder, macaco de merda."

"Uma ótima semana pro senhor também", respondi e desci ao vestiário. A polícia não fez menção de interpelar os torcedores, mas registrei os xingamentos na súmula.

Tomei meu banho, esperei meus colegas e saí do vestiário pra pegar meu carro, que estava em um estacionamento de acesso restrito à arbitragem e funcionários dos clubes. Encontrei as portas do carro amassadas e algumas cascas de banana em cima.

Ao dar partida no carro, ele engasgou duas vezes. Na terceira tentativa, caíram duas bananas do cano de escapamento. Alguém colocou duas bananas no cano do escapamento. Meu colega Marcelo Barison ficou horrorizado.

Caminhei revoltado para o vestiário. O atacante do Esportivo Adriano Chuva, negro, me pegou pela mão e me levou um pouco mais afastado. Ele disse que ali aquilo era normal. "Você tem que ver o que eles fazem com a gente no centro da cidade." Ele dizia que os negros do time preferiam jogar fora de casa para não ser chamados de macaco em seu próprio estádio.

Ao chegar em Porto Alegre, refleti sobre o que deveria fazer. Encaminhei um texto para uns jornalistas que eu conhecia, e o caso veio a público. Francisco Novelletto, o presidente da Federação Gaúcha, me ligou, dizendo que eu deveria tê-lo procurado antes de falar com a imprensa, porque a denúncia estava prejudicando a imagem do campeonato. Ele disse que poderia pagar para consertar meu carro.

"Não quero seu dinheiro, quero respeito", eu lembro de ter dito. Novelletto também sugeriu que se eu continuasse com a denúncia, isso poderia prejudicar a minha carreira. Eles fazem essa chantagem emocional. Eu continuei com a denúncia.

No Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o Esportivo perdeu três pontos por causa desse jogo e acabou rebaixado naquele campeonato. Até hoje, quando querem me atacar, os racistas dizem que fui eu quem rebaixei o clube. Mas eu não rebaixei ninguém. O que eu fiz foi denunciar o ataque absurdo que sofri. O clube nunca entregou a pessoa que colocou as bananas no meu carro.

Ao longo do processo, me senti desamparado e desvalorizado pela federação. Eu tinha 37 anos e era aspirante à Fifa, imaginava que ainda podia ter uma carreira internacional. Mas, por causa desse episódio, fiquei tão de saco cheio que resolvi largar o apito. Apitei a final do campeonato e parei. Até hoje não posso pisar na federação. A federação nunca mais teve um árbitro negro.

Na esfera cível, processei o Esportivo por danos morais. Durante o julgamento, o advogado deles debochou do racismo que sofri no estádio. "Chamar negro de macaco não é ofensivo", ele disse. "Ofensivo é amassar o carro porque, como diz a propaganda do posto Ipiranga, todo brasileiro é apaixonado por carro." Essa frase me fez decidir abandonar o futebol. Em janeiro deste ano, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou o clube a me pagar R$ 15 mil. Até hoje não pagaram.

Eu refleti muito antes de vir aqui contar tudo isso. No futebol, existe uma tendência ao silenciamento quando o assunto é racismo. Muito jogador negro que passa por isso prefere ignorar os ataques temendo ter problemas na carreira se abrir a boca. Outro dia um jogador saiu de campo na Bolívia. Todos deviam fazer o mesmo, principalmente os medalhões.

Eu posso até me prejudicar no trabalho, mas resolvi comprar a briga porque nos fóruns que reúnem negros, costumamos dizer que os racistas podem nos fazer duas coisas: ou eles nos matam ou eles nos adoecem.

Eu me recuso a morrer ou adoecer. Prefiro lutar. Quando esses ataques acontecem, minha mulher, que é negra, me dá a força que ela consegue. Ela sabe muito bem o que é isso. Meus filhos ainda não sabem. Eu fortaleci a consciência da minha negritude principalmente pelo rap, ouvindo aquela música, analisando aquela letra e me identificando com aquela situação retratada.

Os racistas não sabem, mas eles só fortaleceram minha consciência racial. Eu falo pro meu menino que ele é lindo. Enalteço o nariz e o cabelo "black power" dele, digo para ele sempre valorizar a negritude que ele tem. Minha filha tem dois anos e vou procurar fazê-la ter orgulho de si mesma, assim como eu tenho da nossa raça.

Minha briga é por mim, mas também por eles. Os racistas não vão nos matar.


Fotos de Tiago Coelho/UOL

sábado, 26 de janeiro de 2019

Racismo estrutural

2its do deboche

Não vejo esse programa, mas ao ver esse vídeo decidi discutir o racismo e o machismo que saltam aos olhos:

1-Uma das mulheres condiciona o ocorrido a "alguma coisa que a mulher pudesse ter feito"

2-A outra mulher diz que ao saber do crime esperava que fosse um "faveladão"

O machismo reproduzido pela garota do vídeo é claríssimo, mas eu irei me ater ao meu lugar de fala de homem negro e discutir o racismo que é apresentado no vídeo. Muitas mulheres discutirão o vídeo com muito mais propriedade que eu em relação ao machismo.

Ao suspeitar que o agressor era um favelado a moça se espanta por não ser este um homem negro. Ela diz: "era um branquinho, morou na Austrália, não é possível que ele fez isso".

O estereótipo de agressor permitido parece ser somente um homem negro. Isso frustrou sua expectativa.

O homem branco da conversa então conclui que não sendo o agressor um homem negro, este só poderia ser um louco. O branco tem seu crime atenuado por ser um portador de sofrimento mental que, por sua vez, necessita de tratamento. Caso fosse um homem negro, seria um marginal.

Da mesma forma que o ladrão branco e rico é cleptomaníaco, o assassino branco deve ter alguma doença mental. O corpo negro é sistematicamente vinculado ao marginalizado.

O racismo que existe na nossa sociedade tem muitas caras, nem sempre ele é uma ofensa racial, um xingamento explícito. Às vezes é uma concepção em relação às expectativas. Ser negro e estar em uma posição fora da marginalidade incomoda pois tira as pessoas do conforto histórico

Ser um homem negro pobre no Brasil, só não é mais desgastante do que ser uma mulher negra e pobre, pois estas são ainda subjugadas por serem mulheres neste mundo patriarcal machista.

A esteriotipação do corpo negro é um problema estrutural na sociedade. As pessoas dizem fazer sem perceber ou mesmo sem querer ofender. No entanto, isso ofende, isso nos torna a priori bandidos, e só se provamos o contrário podemos alcançar a dignidade que é nata para os brancos.