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domingo, 30 de agosto de 2020

Assinar um jornalão brasileiro é bom para a democracia?

Fernando L'Ouverture

Tava pensando nesse papo de que assinar um dos três jornalões (ou os três) é "dízimo cívico" para manter a democracia operando.

Desculpem o meu francês, mas...meu cu.

Por quê? 

Por isso...

Também por isso...

E isso.

Teria muito mais.

Muito mesmo.

A verdade é que nenhum dos três jornais cumpre qualquer papel cívico que não tenha sido, historicamente, a corrosão dos valores democráticos na sociedade brasileira. 

O cinismo de que assinar um jornalão é defender a democracia ignora completamente o papel deles na corrosão da democracia brasileira, tanto no passado mais distante quanto no atual presente. 

Portanto, financiem a imprensa, sim. Em especial aqueles órgãos que não tem verba pública ou grandes anunciantes.

Mas ao assinar um jornalão, tenham certeza de que estão justamente assinando órgãos que ajudaram a destroçar a democracia brasileira. Não tem nada de cívico nisso. 


PS: "Ai, mas os bolsonaristas odeiam os jornalões".

Pois é, mas apoiam a ditadura.

Como os jornalões apoiaram.

(e ambos amam o Paulo Guedes, mas isso é outra história)

terça-feira, 7 de julho de 2020

Força, Covid!



O que Vera Magalhães e outros não entendem sobre o "força COVID" é que a linguagem do ressentimento tomou conta da política, da direita e da esquerda, do povão e da elite.

De minha parte, suspeito muito de quem escapar de 2020 sem ressentimentos ou mágoas.

Dito isso, meu único problema com o "força COVID" é que eu preferia uma justiça terrena e revolucionária, com todo respeito às justiças poéticas.

Vi agora o fio do @Pedro_Barciela e ele acerta muito nessa reflexão: o desprezo pela vida que Bolsonaro tanto manifestou agora se volta como desprezo pela vida do próprio Bolsonaro.

É isso.

sábado, 13 de junho de 2020

Racistas e escravagistas choram por estátuas de carrascos



Eu sei que ninguém aguenta mais que eu fale de estátua, mas vou lançar a BRABA:

Esse bando de gente que chora por estátua nunca derramou uma lágrima pra quando lugares de memória como terreiros são atacados, ou quando uma língua dos povos desaparece da memória da comunidade.

Choram por estátuas achando que estão defendendo o passado, mas nunca vi falarem qualquer coisa sobre o cais do Valongo MAIOR PORTO DE ESCRAVOS DAS AMÉRICAS ter sido soterrado por reformas urbanas.

Mais: estátuas de Zumbi dos Palmares foram constantemente vandalizadas na última década. Algum articulista escreveu um texto emocionado clamando a população que preservasse a memória do líder quilombola???

Eu poderia falar ainda mais sobre como esse país destrói monumentos e patrimônios (materiais e imateriais) e sobre como nossa grande imprensa nunca se importou com isso. Mas vou fazer outra pergunta: por que ela se importa AGORA?

Arrisco aqui uma hipótese: medo de protestos. Medo de serem identificados com o bolsonarismo. Querem conter as forças mais radicais no campo da oposição.

Mas isso é só o superficial. No fundo, isso só revela que pra essa gente, monumentalizar bandeirantes, senhores de escravos, oligarcas e ditadores não é um problema.

Chego a pensar que talvez se identifiquem com isso (não tem uma rede de rádio e TV que saúda esse passado?).

O que não é surpresa: a grande imprensa representa uma elite brasileira - que tem cor, caso seja preciso afirmar o óbvio.

Talvez por isso sua insensibilidade com os patrimônios e monumentos dos "de baixo". Talvez por isso seu medo de que questionemos seus queridos símbolos.

De novo, monumentos e patrimônios configuram um debate sobre o presente, sobre o que e como queremos lembrar do passado.

Ao menos fica evidente, nesse contexto, do que os jornalões querem lembrar. E também, claro, do que querem esquecer.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

As semelhanças entre a Coreia do Sul e o Brasil


O capitalismo sul-coreano, um breve fio

Fernando L'Ouverture

Uma amiga de SP acabou de dizer que para entender "Parasita", não precisa conhecer o capitalismo sul-coreano. Basta apenas abrir a janela e ver o caos da cidade - remetendo à icônica cena da enchente que o filme apresenta.

Eu concordo. Mas conhecer um pouquinho mais do capitalismo sul-coreano é importante. Até porque, há espantosas semelhanças na história da Coreia do Sul com o Brasil.

Entre 1963 e 1979, o país esteve sob governo do general Park Chung-Hee, num regime militar ditatorial.

Antes dele, a instabilidade política, a influência americana e a ausência de democracia eram constantes. De fato, até o assassinato de Park, era possível dizer que não havia democracia na Coreia do Sul, sendo um dos regimes mais corruptos e violentos do Extremo Oriente.

Quando Park é assassinado, em 1979, contudo, o regime não caiu de imediato. No ano seguinte, em 1980, estudantes protestam contra a ditadura exigindo o seu fim e acabam sendo reprimidos no "Massacre de Gwangju". Até hoje não há cifras precisas sobre o número de mortos...

A solução que o regime encontrou foi, por meio de voto indireto de um colégio eleitoral, eleger um outro militar Chun Doo-hwan, que teria mandato de sete anos e poderia fazer apontamentos indiretos burlando o sistema eleitoral.

Na prática, a ditadura perdurou até 1987.

Somente a partir de 1988 (ó a coincidência) que o regime sul-coreano mudou, de fato, para uma democracia liberal direta - ainda que o candidato eleito, Roh Tae-woo fosse ele também um militar.

1988 foi o ano que o regime, de fato, se abriu para o mundo. Quem é mais velhinho deve lembrar que Seul sediou as olimpíadas naquele ano, anunciando a nova fase política do país. Foi a última olimpíada da Guerra Fria e, ainda que com alguns boicotes, foi considerada um sucesso.

A economia sul-coreana dava cada vez mais passos largos. O protecionismo dos anos da ditadura estava sendo abandonado e as grandes empresas começaram a emergir com capacidade de competir em mercados como Taiwan e Singapura.

Os chamados "Chaebol" (재벌).

Assim como o capitalismo japonês se valeu de um sistema dual de proteção interna e crescimento de "gigantes nacionais", os sul-coreanos aplicaram a mesma fórmula. E em 1988, pela primeira vez, a Nissan conseguiu eleger uma bancada na Assembleia Nacional do país.

Políticas do tipo "too big to fail" foram rapidamente implementadas, com abundância de crédito vindo do Estado para as grandes empresas - que por sua vez foram engolindo as menores no mercado.

Geralmente se fala que o neoliberalismo só teve início na Coreia a partir de 1997 mas não é bem assim. Antes disso, as regulações financeiras praticamente se dissiparam e havia praticamente um regime dual de trabalho no país, com as grandes empresas do "Chaebol" tendo um regime próprio e "flexível".

Quando a crise de 1997 estoura, a Coreia do Sul sente forte o impacto, mas o receituário do FMI foi de manter a desregulação financeira. O resultado foi um empoderamento ainda maior dos Chaebol. E com isso, as regulações trabalhistas foram minguando ainda mais.

O Estado sul-coreano, na sua política de campeões nacionais, deixou essas empresas como Hyundai, Samsung e LG crescerem indeterminadamente. A crise, como era de se esperar, arrebentou financeiras menores às quais o Estado sul-coreano se recusou a resgatar.

Essa combinação entre campões nacionais e desregulamentação financeira foi muito bem sucedida na Coreia do Sul, mas seus impactos são tão danosos quanto no Brasil. Segundo Max Balhorn, 25,4% dos sul-coreanos eram autônomos em 2017.

A tendência é que o número cresça, claro. Ao mesmo tempo que as campeãs nacionais vão bem.

Essa combinação entre neoliberalismo e o desenvolvimentismo focando em campeões nacionais é a história do capitalismo sul-coreano hoje e que o filme de Bong Joon-hon capta tão bem.

A Coreia do Sul virou um modelo para muitos dos liberais brasileiros, mas a verdade é que o liberalismo lá é relativo, pois o Estado intervém constantemente para manter a competitividade das "chaebol". Na verdade, o Estado sul-coreano é controlado pelas "chaebol".

No filme, sabem como isso aparece? Com a história de Geun-sae, que toda noite antes de dormir louva a história do CEO, dono da casa, o sr. Park. Os "chaebol" são vendidos como pequenos empresários que prosperaram com o trabalho duro.

Nada mais distante da realidade. Cada vez mais cidades como Seul se gentrificam e se tornam espaços segregados, onde as famílias ricas têm acesso a investimentos de saneamento e urbanidade, enquanto nas periferias alagamentos, enchentes e violência são recorrentes.

O fio, que era para ser breve, se alonga demais. Eu não quis ficar apontando aqui todas as semelhanças com a história recente brasileira, mas elas são relativamente fáceis de construir - nem precisa de muita imaginação.

O que é mais aterrador, contudo, é que o filme deixa muito claro que a história, que é uma história sul-coreana, passou a ter um alcance universal. Esse é o capitalismo hoje, mais do que nunca. A guetificação dos ricos se acentuou num plano nunca antes visto e o Estado foi efetivamente sequestrado por eles.

Alguém pode dizer: sempre foi assim. Mas a verdade é que numa perspectiva marxiana, o desenvolvimento do capitalismo foi reduzindo as diferenças, de tal forma que assim como Hollywood se viu em Seul, Seul também se vê em São Paulo.


Felipe Augusto Machado

Ao meu ver, as diferenças entre as trajetórias da Coreia do Sul e do Brasil são maiores do que as semelhanças, e ajudam a explicar os distintos estágios de desenvolvimento

A questão é que a correlação de forças entre Estado e Chaebols se alterou bastante ao longo do tempo.

No início, o Estado coreano conseguia disciplinar as estratégias dos Chaebols, pois administrava o comércio exterior e os fluxos de capital, com foco na industrialização e na segurança nacional

Teve até ameaças de prisão para alinhá-los aos Planos (Kim; Park, 2013).

Já no início dos anos 80, os Chaebols haviam crescido tanto que começaram a se rebelar contra a liderança estatal

Nesse contexto, iniciaram-se os primeiros movimentos pela desregulamentação econômica (Amsden, 1989; Studwell, 2013).

A capacidade do Estado de liderar o desenvolvimento começava a se reduzir

O poder dos Chaebols cresceu tanto que, em 1996, sua Associação chegou a preparar um Relatório defendendo a extinção de todos os Ministérios, exceto Defesa e Relações Exteriores (Studwell, 2013)

No Brasil, a chamada política dos campeões nacionais ocorreu em contexto completamente distinto.

Para começar, não houve coesão política em torno do objetivo de industrializar ou de dominar tecnologias estratégicas (vide "Programas para Consolidar e Expandir a Liderança" da PDP).

E, mesmo se houvesse, o poder de barganha do Estado pós-Consenso de Washington era muito inferior ao que o Estado coreano tinha.

As diferenças importam, pois só um deles atingiu a renda alta. E, apesar dos problemas apontados em “Parasita”, nossa desigualdade é de outra magnitude:

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Os supostos campos de concentração na China


Fernando L'Ouverture

(Não tão) breve comentário sobre a questão dos campos de concentração na China:

Eu estou ainda me atualizando sobre as notícias, mas é complicado. De um lado, há um esforço da imprensa ocidental de atribuir à China uma lógica racista sobre um regime autoritário.

Do outro, porém, há de fato uma preocupação policial do governo chinês sobre a região de Xinjiang, onde se concentra a maioria da população uighur.

Mas afinal, qual é a "verdade"? A Ocidental ou a do Partido Comunista Chinês?

Bem, na condição de historiador, não dá para encarar essas questões como se a gente fosse um positivista do século XIX. Mas dá para pensar umas coisinhas aqui:

Primeiro, que essa ideia de perseguição aos muçulmanos precisa ser mediada. Desde o século VII, o Islã adentrou as fronteiras da China, durante a dinastia Tang. E nas dinastias seguintes, seguiram tendo entrada no antigo "Reino do Meio".

Os muçulmanos passaram a ser identificados como "hui" (ou "hui hui") e ganharam a concepção de grupo étnico, ainda que fossem muitas etnias (persas, árabes, uighurs, quirguistanis etc).

O reconhecimento existia e em diferentes dinastias, "hui" foram incorporados na estrutura burocrática do Império, ou mesmo no serviço militar.

Em 1862, com a chegada do imperialismo europeu na China, líderes "hui" organizaram rebeliões em várias províncias (inclusive Xinjiang).

Eram províncias onde havia contingente significativo de população "hui" e que agora rejeitavam a fragilidade do império Qing, denunciando sua incapacidade de proteger comunidades pastoreiras e mercantis dos ataques ocidentais.

A rebelião Dungan foi contida em 1877, mas com altíssimo custo para o Império Qing.

Com a Revolução Xinhua, em 1911, os "hui" foram elevados a condição de uma das cinco principais etnias do país, identificadas na bandeira republicana pela cor preta.

O regime republicano então passou a considerar os "hui" como grupo étnico que compõe a nação chinesa.

Na Revolução Chinesa, pelo menos até 1966, a comunidade "hui" foi inserida como "huimin", como grupo étnico reconhecido pelo Estado.

E, de fato, segundo o governo da RPC, existem 56 grupos étnicos reconhecidos, com direitos e deveres, pelo Estado chinês. Os "hui" compõem 0,79% da população total. E há toda uma discussão se "hui" não islamizados podem ser considerados "huimin".

Claro, a Revolução Cultural não ajudou muito essa galera. A perseguição ao islã foi, em larga medida, semelhante a do budismo, do confucionismo etc. Após 1979, porém, o governo de Deng começou um longo período de pedidos de desculpas e reparações às comunidades "hui" reprimidas.

E aí um parenteses importante: a RPC não persegue "os muçulmanos". Ela tem reprimido duramente os uighurs. Mas nem todo muçulmano é considerado uighur. E nem todo uighur é considerado "hui".

Aí a gente poderia discutir o que é um uighur, um grupo étnico de origem turca e que durante muito tempo foi visto como "hui" na China (diferenciado apenas pelo uso do turbante). Mas a partir de 1949, a RPC identificou os uighurs como grupo étnico diferente dos "hui".

(teria ainda outras coisas para falar sobre como os chineses lidaram com a questão étnica ao longo de seus muitos séculos de história, mas para ser sintético, basta dizer que a noção europeia de "raça" nunca fez muito sucesso entre as elites burocráticas chinesas)

Em linhas gerais, o desejo de separatismo dos uighurs é algo recente, ligado a movimentos como o Partido Islâmico Turco, um grupo clandestino que a RPC denomina como "terrorista" desde 1988 - e que desde 1998 possui laços com a Al-Qaeda. E é importante destacar isso.

O segundo ponto, voltando para o presente, sobre porque os uighurs são perseguidos, pode ser explicado por meios culturalistas, falando sobre como há uma preocupação ancestral na China na incorporação do outro.

Existe uma dicotomia chinesa chamada "Hua-Yi" que lida justamente com essa lógica, mas ao invés dela medir a civilização pelo fenótipo (oi, Europa), ela mede pela incorporação dos hábitos e dos costumes do "reino do meio".

Eu não gosto muito dessa explicação, porque ela tende a assumir que a lógica da RPC é a mesma dos antigos impérios dinásticos. E embora haja semelhanças, há também muitas diferenças. Não dá para descartar, mas ela pode ser problemática.

Existe uma explicação econômica: a região de Xinjiang, desde 2010, passou a receber pesados aportes financeiros e teve construída, na cidade de Kashgar, a primeira Zona Econômica Especial que fica longe do litoral chinês.

Somado a isso, houve um enorme afluxo de "hui", que superou em larga escala os uighurs que ali viviam em termos de crescimento demográfico.

Esse afluxo de "hui" e o crescimento econômico da região supostamente teria deixado a população uighur a margem da nova pujança, o que gerou tensões de várias ordens.

E apesar da ZEE ter sido criado somente em 2010, a urbanização da região promovida por chineses "han", já a partir dos anos 1980, criou uma divisão social entre "han" urbanos e "uighurs" camponeses.

Tem também a questão política aí: essa relação tensionada gerou conflitos. Desde os anos 1990, grupos pan-islâmicos tem tido livre entrada entre os uighurs do que seria o Turquistão oriental (parte da província de Xinjiang).

Em 1996 o governo do PCCh prendeu cerca de 30 lideranças uigures durante o Ramadã e uma série de protestos e ataques terroristas tiveram início. Em 2001, no meio da euforia do 11 de setembro, a RPC já falava que havia células jihadistas atuando clandestinamente em Xinjiang.

Entre 2008 e 2009, os uighurs entraram em conflitos com os "han" em Xinjiang, em diversos protestos contra o governo chinês - inclusive criticando a exploração de trabalhadores migrantes uighurs em regiões como Guangdong.

Segundo o governo chinês, além do pan-islamismo, a influência de separatistas tibetanos tem se feito sentir na região, gerando instabilidade.

No final, todas essas explicações são parciais e não dão conta de entender o que está em jogo nesses conflitos.

Terceiro e último ponto (ufa!): até onde consigo ver, parece certo que o governo chinês viola direitos humanos no combate ao terrorismo de uighurs separatistas. Isso não implica, contudo, ser "anti-muçulmano" ou mesmo ser "anti-uighur".

Mas há questões econômicas e políticas que geram tensões inclusive entre grupos minoritários na região.

(basta lembrar que a intensa migração de "hui" em Xinjiang gerou novos conflitos e nos protestos de 2009, uighurs defenderam a morte não só de "han", mas também dos "hui")

Poderia dar o argumento "tu quoque", lembrando que Inglaterra, Estados Unidos, França, Bélgica e outros países do mundo ocidental não tem respeitado os direitos humanos no que se trata ao combate ao terrorismo.

Mas não gosto desse argumento - embora ele possa deixar claro que, se nos revoltamos com a situação chinesa, temos o imperativo moral de nos revoltar também com Guantanamo, Abu Gharib, entre outros.

Mas o "tu quoque" não explica nada. O separatismo uighur combinado com a formação de células jihadistas na China apresenta uma questão fundamental: como se formam esses grupos?

E aqui meu desacordo com a defesa apaixonada da RPC: Xinjiang é uma região profundamente desigual na China. E essa desigualdade se acentuou conforme o governo chinês deixou o capital fluir para lá. Como os marxistas bem sabem, o capital flui, mas de forma desigual e combinada.

Isso gerou acumulação de capital em grupos étnicos que, por sua vez, isolaram os uighurs do acesso não só ao econômico, mas também ao político. E foi esse cenário que jihadistas encontraram espaço para disseminar uma noção de separatismo religioso e fundamentalista.

Não dá para perder de vista também apoio de grupos insurgentes tibetanos e o apoio logístico da CIA e do Departamento de Estado americano - que financiam um "think tank" em prol do separatismo uighur chamado "World Uyghur Congress".

Mas esses grupos só conseguiram se fortalecer porque havia uma situação social propícia para a máquina de propaganda jihadista explorar fissuras nos discursos oficiais da RPC - em especial, o reconhecimento étnico e a igualdade social.

Ora, se os uighurs se sentiam preteridos em relação a grupos como os "hui" e os "han" e viam isso a partir do momento que a própria transformação econômica em Xinjiang estava a vapor, é sinal de que havia algo, de fato, a explorar.

Isso posto, não tem como garantir que a situação se resolva tão cedo. Xinjiang cresce em ritmo acelerado e a cidade de Kashgar chegou a ter crescimento econômico de mais de 17% ao ano - embora 2/3 da cidade tenham sido demolidos desde a última década.

E enquanto houver essa desigualdade, a força do separatismo étnico e religioso vai sempre encontrar combustível para se fortalecer, independente da repressão promovida pelo governo chinês.

E é isso. Parabéns para quem conseguiu chegar até aqui, porque esse fio foi longo mesmo. Mas espero que ele tenha aberto um pouco mais para o debate sobre a China hoje em dia.

PS: Sobre referências, a maioria delas vem de sites de notícias em inglês (inclusive a Xinhua, agência do governo chinês).

As referências sobre história podem ser vistas em livros como "Em busca da China moderna" e "The rise of modern China", embora elas deem conta somente da dinastia Qing em diante.

Xie-xie. :)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Congo, o horror do capitalismo


A história do Congo, desde 1880, é uma história de genocídios em prol da Segunda e da Terceira Revolução Industrial. Essa notícia só confirma isso. Apple, Google, Microsoft, todas dependentes do cobalto congolês:
Quando o país buscou se libertar por uma via socialista, foi impedido pela ação combinada não apenas da antiga metrópole belga, ou do neocolonialismo dos EUA, mas da própria ONU. E por que?  

Patrice Lumumba: the most important assassination of the 20th century 

Porque a República Democrática do Congo (antigo Zaire, antigo Congo, antigo Congo Belga) é o maior país da África subsaariana. E um dos mais ricos em recursos estratégicos do planeta. DR Congo: 


Foi vital no ciclo da borracha, entre 1890 e 1920, alavancando a indústria automobilística europeia.

Foi vital na produção de cobre para as potências capitalistas em guerra, entre 1920 e 1960.

Foi vital na produção de diamantes na informatização das indústrias nos anos 1980. 

E é vital hoje, para todo o ramo da tecnologia da informação.

Que nós não saibamos a quantidade de sangue que tem nos aparelhos que usamos (como o PC de onde eu escrevo agora), apenas comprova alguns dos pressupostos mais básicos de Marx sobre o capitalismo.

O preço do "progresso" material das indústrias no século XIX esteve diretamente ligado a genocídios e massacres em lugares onde a ideia de trabalho livre assalariado era uma quimera. Escravidão, trabalho infantil, castigos físicos, extermínio... 

Alguém pode dizer que o Congo não era "capitalista". Mas é incrível a quantidade de indústrias capitalistas que, ao longo dos últimos 150 anos, dependeram da extração de matérias-primas do maior país da África subsaariana.

E tem mais uma coisa: não sabemos nada sobre o Congo. 

É uma ignorância planejada. Bismarck falava, na mesma época, que havia duas coisas que o povo não precisava saber como eram feitas: políticas e salsichas. A síntese bismarckiana que vale para embutidos, vale também para Iphone, Windows, Google Play... 

Nossa ignorância sobre o Congo remete também ao romance de Joseph Conrad, "Coração nas Trevas". Conrad escreve o livro a partir de suas próprias memórias como marinheiro no delta do Congo...É uma obra ímpar da literatura mundial, denunciando os horrores do imperialismo. 

E creio que sua atualidade está dada ainda hoje. Assim como Kurtz se depara com a barbárie que ele mesmo submeteu os congoleses, se observássemos de perto o custo humano de nosso "progresso", creio que também ficaríamos balbuciando: "o horror, o horror".


PS: Foto de 1904. Pai observa pé e mãos de seu filho, decepados por não ter cumprido a cota de coleta de borracha.

PPS: Cartaz de propaganda da empresa francesa de pneus, Michelin, na Austrália (1922). A Michelin era uma das grandes compradoras de borracha congolesa.