segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Os supostos campos de concentração na China


Fernando L'Ouverture

(Não tão) breve comentário sobre a questão dos campos de concentração na China:

Eu estou ainda me atualizando sobre as notícias, mas é complicado. De um lado, há um esforço da imprensa ocidental de atribuir à China uma lógica racista sobre um regime autoritário.

Do outro, porém, há de fato uma preocupação policial do governo chinês sobre a região de Xinjiang, onde se concentra a maioria da população uighur.

Mas afinal, qual é a "verdade"? A Ocidental ou a do Partido Comunista Chinês?

Bem, na condição de historiador, não dá para encarar essas questões como se a gente fosse um positivista do século XIX. Mas dá para pensar umas coisinhas aqui:

Primeiro, que essa ideia de perseguição aos muçulmanos precisa ser mediada. Desde o século VII, o Islã adentrou as fronteiras da China, durante a dinastia Tang. E nas dinastias seguintes, seguiram tendo entrada no antigo "Reino do Meio".

Os muçulmanos passaram a ser identificados como "hui" (ou "hui hui") e ganharam a concepção de grupo étnico, ainda que fossem muitas etnias (persas, árabes, uighurs, quirguistanis etc).

O reconhecimento existia e em diferentes dinastias, "hui" foram incorporados na estrutura burocrática do Império, ou mesmo no serviço militar.

Em 1862, com a chegada do imperialismo europeu na China, líderes "hui" organizaram rebeliões em várias províncias (inclusive Xinjiang).

Eram províncias onde havia contingente significativo de população "hui" e que agora rejeitavam a fragilidade do império Qing, denunciando sua incapacidade de proteger comunidades pastoreiras e mercantis dos ataques ocidentais.

A rebelião Dungan foi contida em 1877, mas com altíssimo custo para o Império Qing.

Com a Revolução Xinhua, em 1911, os "hui" foram elevados a condição de uma das cinco principais etnias do país, identificadas na bandeira republicana pela cor preta.

O regime republicano então passou a considerar os "hui" como grupo étnico que compõe a nação chinesa.

Na Revolução Chinesa, pelo menos até 1966, a comunidade "hui" foi inserida como "huimin", como grupo étnico reconhecido pelo Estado.

E, de fato, segundo o governo da RPC, existem 56 grupos étnicos reconhecidos, com direitos e deveres, pelo Estado chinês. Os "hui" compõem 0,79% da população total. E há toda uma discussão se "hui" não islamizados podem ser considerados "huimin".

Claro, a Revolução Cultural não ajudou muito essa galera. A perseguição ao islã foi, em larga medida, semelhante a do budismo, do confucionismo etc. Após 1979, porém, o governo de Deng começou um longo período de pedidos de desculpas e reparações às comunidades "hui" reprimidas.

E aí um parenteses importante: a RPC não persegue "os muçulmanos". Ela tem reprimido duramente os uighurs. Mas nem todo muçulmano é considerado uighur. E nem todo uighur é considerado "hui".

Aí a gente poderia discutir o que é um uighur, um grupo étnico de origem turca e que durante muito tempo foi visto como "hui" na China (diferenciado apenas pelo uso do turbante). Mas a partir de 1949, a RPC identificou os uighurs como grupo étnico diferente dos "hui".

(teria ainda outras coisas para falar sobre como os chineses lidaram com a questão étnica ao longo de seus muitos séculos de história, mas para ser sintético, basta dizer que a noção europeia de "raça" nunca fez muito sucesso entre as elites burocráticas chinesas)

Em linhas gerais, o desejo de separatismo dos uighurs é algo recente, ligado a movimentos como o Partido Islâmico Turco, um grupo clandestino que a RPC denomina como "terrorista" desde 1988 - e que desde 1998 possui laços com a Al-Qaeda. E é importante destacar isso.

O segundo ponto, voltando para o presente, sobre porque os uighurs são perseguidos, pode ser explicado por meios culturalistas, falando sobre como há uma preocupação ancestral na China na incorporação do outro.

Existe uma dicotomia chinesa chamada "Hua-Yi" que lida justamente com essa lógica, mas ao invés dela medir a civilização pelo fenótipo (oi, Europa), ela mede pela incorporação dos hábitos e dos costumes do "reino do meio".

Eu não gosto muito dessa explicação, porque ela tende a assumir que a lógica da RPC é a mesma dos antigos impérios dinásticos. E embora haja semelhanças, há também muitas diferenças. Não dá para descartar, mas ela pode ser problemática.

Existe uma explicação econômica: a região de Xinjiang, desde 2010, passou a receber pesados aportes financeiros e teve construída, na cidade de Kashgar, a primeira Zona Econômica Especial que fica longe do litoral chinês.

Somado a isso, houve um enorme afluxo de "hui", que superou em larga escala os uighurs que ali viviam em termos de crescimento demográfico.

Esse afluxo de "hui" e o crescimento econômico da região supostamente teria deixado a população uighur a margem da nova pujança, o que gerou tensões de várias ordens.

E apesar da ZEE ter sido criado somente em 2010, a urbanização da região promovida por chineses "han", já a partir dos anos 1980, criou uma divisão social entre "han" urbanos e "uighurs" camponeses.

Tem também a questão política aí: essa relação tensionada gerou conflitos. Desde os anos 1990, grupos pan-islâmicos tem tido livre entrada entre os uighurs do que seria o Turquistão oriental (parte da província de Xinjiang).

Em 1996 o governo do PCCh prendeu cerca de 30 lideranças uigures durante o Ramadã e uma série de protestos e ataques terroristas tiveram início. Em 2001, no meio da euforia do 11 de setembro, a RPC já falava que havia células jihadistas atuando clandestinamente em Xinjiang.

Entre 2008 e 2009, os uighurs entraram em conflitos com os "han" em Xinjiang, em diversos protestos contra o governo chinês - inclusive criticando a exploração de trabalhadores migrantes uighurs em regiões como Guangdong.

Segundo o governo chinês, além do pan-islamismo, a influência de separatistas tibetanos tem se feito sentir na região, gerando instabilidade.

No final, todas essas explicações são parciais e não dão conta de entender o que está em jogo nesses conflitos.

Terceiro e último ponto (ufa!): até onde consigo ver, parece certo que o governo chinês viola direitos humanos no combate ao terrorismo de uighurs separatistas. Isso não implica, contudo, ser "anti-muçulmano" ou mesmo ser "anti-uighur".

Mas há questões econômicas e políticas que geram tensões inclusive entre grupos minoritários na região.

(basta lembrar que a intensa migração de "hui" em Xinjiang gerou novos conflitos e nos protestos de 2009, uighurs defenderam a morte não só de "han", mas também dos "hui")

Poderia dar o argumento "tu quoque", lembrando que Inglaterra, Estados Unidos, França, Bélgica e outros países do mundo ocidental não tem respeitado os direitos humanos no que se trata ao combate ao terrorismo.

Mas não gosto desse argumento - embora ele possa deixar claro que, se nos revoltamos com a situação chinesa, temos o imperativo moral de nos revoltar também com Guantanamo, Abu Gharib, entre outros.

Mas o "tu quoque" não explica nada. O separatismo uighur combinado com a formação de células jihadistas na China apresenta uma questão fundamental: como se formam esses grupos?

E aqui meu desacordo com a defesa apaixonada da RPC: Xinjiang é uma região profundamente desigual na China. E essa desigualdade se acentuou conforme o governo chinês deixou o capital fluir para lá. Como os marxistas bem sabem, o capital flui, mas de forma desigual e combinada.

Isso gerou acumulação de capital em grupos étnicos que, por sua vez, isolaram os uighurs do acesso não só ao econômico, mas também ao político. E foi esse cenário que jihadistas encontraram espaço para disseminar uma noção de separatismo religioso e fundamentalista.

Não dá para perder de vista também apoio de grupos insurgentes tibetanos e o apoio logístico da CIA e do Departamento de Estado americano - que financiam um "think tank" em prol do separatismo uighur chamado "World Uyghur Congress".

Mas esses grupos só conseguiram se fortalecer porque havia uma situação social propícia para a máquina de propaganda jihadista explorar fissuras nos discursos oficiais da RPC - em especial, o reconhecimento étnico e a igualdade social.

Ora, se os uighurs se sentiam preteridos em relação a grupos como os "hui" e os "han" e viam isso a partir do momento que a própria transformação econômica em Xinjiang estava a vapor, é sinal de que havia algo, de fato, a explorar.

Isso posto, não tem como garantir que a situação se resolva tão cedo. Xinjiang cresce em ritmo acelerado e a cidade de Kashgar chegou a ter crescimento econômico de mais de 17% ao ano - embora 2/3 da cidade tenham sido demolidos desde a última década.

E enquanto houver essa desigualdade, a força do separatismo étnico e religioso vai sempre encontrar combustível para se fortalecer, independente da repressão promovida pelo governo chinês.

E é isso. Parabéns para quem conseguiu chegar até aqui, porque esse fio foi longo mesmo. Mas espero que ele tenha aberto um pouco mais para o debate sobre a China hoje em dia.

PS: Sobre referências, a maioria delas vem de sites de notícias em inglês (inclusive a Xinhua, agência do governo chinês).

As referências sobre história podem ser vistas em livros como "Em busca da China moderna" e "The rise of modern China", embora elas deem conta somente da dinastia Qing em diante.

Xie-xie. :)

Um comentário:

  1. É notório o apoio dos EUA a grupos terroristas uigures. O objetivo na província de Xinjiang é a mesma daquele no Tibete: desmembrar a China. O governo chinês deveria retrucar na mesma moeda: fomentar o separatismo nos EUA. Existem muitas fraturas na sociedade norte-americana. Por exemplo: o meio-oeste, conhecido como o "Cinturão da Bíblia" odeia o Nordeste desenvolvido, laico e progressista.

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