Os primeiros dias de janeiro costumam estar cheios dessa gente renascida, ansiosa e irritada, que decidiu deixar de fumar, beber, e não aguenta o seu novo eu
Na maioria dos romances, os maus, os bons e os medíocres, alguém morre. Ou alguém que vai morrer, provisoriamente se salva. Quase sempre, o que salva o herói é o amor. Na vida real, infelizmente, é só uma questão de tempo até o herói enfrentar de novo a morte — e morrer. Por muito amado que o protagonista seja, por muito que ame, sempre morre. O fim nunca varia. A vida vem com spoiler.
A alternativa, a eternidade, parece-me ainda pior. Creio que conseguiria viver uns cinco mil anos sem me entediar, mas mais do que isso não. Ou seja: cinco mil anos vivendo como se não houvesse amanhã e depois o tédio infinito. Sinceramente prefiro a morte, contando que não chegue antes de 2100.
Na literatura existe a opção de interromper o trajeto do personagem antes que ele morra. Não é bem morrer, e também não equivale ao inferno da eternidade — digamos que se trata de uma suspensão. Chegando às últimas linhas, o protagonista permanece vivo, correndo atrás de um ônibus, pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que sobe. Ou então, viajando num barco, na companhia da mulher amada, numa viagem sem fim. Ei-lo, ordenando ao comandante que não regresse ao cais. “E até quando pensa o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho?” — pergunta o comandante. E o herói responde, impassível: “toda a vida.”
E toda a vida, que não termina jamais, corre Carlos da Maia atrás de um ônibus, seguido de perto pelo seu amigo João da Ega. Toda a vida se passeia o velho Florentino Ariza, de mão dada a Fermina Daza, subindo e descendo o eterno Rio Magdalena.
Agrada-me a ideia. Na última página da minha vida eu estaria dançando com a mulher que amo, enquanto uma orquestra tocaria alguma canção de Carlos Burity, de Bonga ou de Ruy Mingas, em todo o caso um bom semba angolano. Estaria até dançando relativamente bem, no compasso certo, para surpresa de todos os meus amigos, e, em particular, da mulher que amo.
Tendemos a olhar para os derradeiros dias de dezembro como sendo as últimas linhas de um capítulo desse livro maior, a nossa vida, cujo fim já todos conhecemos. É a maneira que encontramos de imaginar um epílogo menos definitivo. É também uma forma de imaginar um recomeço. Morremos a 31 de dezembro e ressuscitamos, renovados, na madrugada seguinte.
Os primeiros dias de janeiro costumam estar cheios dessa gente renascida, ansiosa e irritada, pessoas que decidiram deixar de fumar, de beber, de transar, de comer chocolate, eu sei lá, e não aguentam o seu novo eu. Evito sair de casa durantes essas sombrias semanas inaugurais. Felizmente, a maioria dos renascidos regressa em poucos dias ao conforto do corpo antigo, aos velhos e bons e confiáveis vícios, e logo sossega e volta a sorrir.
Nunca fiz parte de tal grupo. Tenho pouca fé em renascimentos. Em contrapartida, acredito na literatura. Daqui a escassos dias, quando for saltar de um ano para o outro, de uma década para a outra, estarei desejando que em 2020 a humanidade inteira encontre finalmente, como o herói de todas as grandes histórias, esse caminho único, capaz de nos salvar da morte. Ao menos, provisoriamente.
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