sábado, 28 de dezembro de 2019

Exercícios de empatia


José Eduardo Agualusa

A maioria dos meus leitores são leitoras. Nada de surpreendente, visto que, em todo o mundo, as mulheres leem muito mais do que os homens. No meu caso, uma parte considerável dessas leitoras já ultrapassaram os setenta anos. Dei-me conta disso numa visita recente a Buenos Aires, que, com as suas 734 livrarias, 25 para cada cem mil habitantes (é a cidade do mundo com maior número de livrarias por morador), sempre me pareceu uma espécie de paraíso para os escritores.

Sentado a uma mesa da belíssima livraria El Ateneo Gran Splendid, olhando a plateia, percebi que os cabelos brancos dominavam. Quase sempre, as opiniões mais interessantes chegam-me ou de crianças ou de pessoas idosas. Aprendo muito sobre os meus próprios livros com quem os lê. Naquela noite não foi diferente. Conversamos sobre literatura, mas também sobre o estado do mundo. O que me impressionou, naquelas leitoras de longo curso, é que embora tivessem mais passado do que futuro, todas elas se mostravam preocupadíssimas com os dias que hão de vir.

— Gostei muito d’ “A vida no céu” — disse-me uma simpática senhora uruguaia, referindo-se a uma distopia para jovens que publiquei em 2013.

No romance, imagino que num futuro próximo os sobreviventes de um terrível dilúvio, resultante do aquecimento global, serão forçados a construir gigantescos balões e dirigíveis e a viver entre as nuvens.

— Não consegui dormir durante várias noites, pensando nos meus bisnetos, que irão pagar pelos erros que estamos cometendo hoje.

— A senhora já tem bisnetos? — Perguntei.

— Não. Não sou assim tão velha. Mas hei de ter.

Chama-se empatia à capacidade de nos colocarmos na pele dos outros. Uma pessoa capaz de se imaginar no lugar de uma outra, que ainda não existe, parece-me detentora da forma mais elevada de empatia. Para enfrentar o ano que começa na próxima quarta-feira — e os seguintes —, precisaríamos de grandes doses dessa forma de empatia. Precisaríamos em particular de dirigentes políticos capazes de tal talento. Precisaríamos que nos altos cargos governamentais estivessem pessoas como aquelas minhas leitoras.

Infelizmente, não temos essa sorte. Um sujeito como o presidente norte-americano, Donald Trump não só não lê nada, como manifesta o mesmo grau de empatia, e a mesma inteligência e discernimento, de uma pedra submersa. Donald não está só. Depois que se elegeu, multiplicou-se feito um câncer. Em 2020 teremos metástases dele por todo o planeta.

As democracias deveriam proteger-se sujeitando os candidatos a altos cargos governamentais a severos testes de empatia e gramática, e investindo mais no ensino básico. Não sei explicar o motivo, mas tenho reparado que entre os protoditadores do nosso tempo, as grandes deficiências de caráter estão normalmente associadas a um insuficiente domínio do idioma materno. Com um bom exame gramatical seria até possível prescindir da avaliação de empatia.

Não obstante a inquietação que me aflige, e que é muita, desejo a todos um feliz 2020! Exercitem a empatia: leiam mais.

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