sábado, 6 de junho de 2020

Um pouco mais de oxigênio

Os Estados Unidos não podem ser considerados um país desenvolvido porque uma percentagem considerável dos seus habitantes vive no terror constante de ser importunada e morta por agentes da autoridade.

Sei que venho de um país do terceiro mundo porque tenho mais medo de policiais do que de ladrões. Nos Estados Unidos, uma parte importante da população atravessa o quotidiano com um sentimento semelhante. Os Estados Unidos, portanto, não podem ser considerados um país desenvolvido, ao menos para uma percentagem considerável dos seus habitantes, os americanos de ascendência africana, os quais, mesmo partilhando ruas, jardins e edifícios com os seus concidadãos de origem europeia, vivem no terror constante de serem importunados e mortos por agentes da autoridade.

É dificil respirar num contexto assim. O assassinato de George Floyd por um policial branco em Minneapolis veio, uma vez mais, expor as feridas seculares da desigualdade e do racismo. Desta vez a barbárie foi filmada e, em poucos minutos, graças ao imenso poder dos novos meios de comunicação, o mundo inteiro testemunhou a lenta agonia de George.

No meu círculo de familiares e amigos há quem acompanhe com enorme entusiasmo as manifestações que se propagam por diversas cidades americanas, e também europeias, em solidariedade com a sofrida comunidade afro-americana. Multiplicam-se os protestos, os debates, os manifestos. Eu próprio juntei a minha assinatura à de outros cem escritores africanos — entre os quais Pepetela, Ondjaki, Grada Kilomba e Kalaf Epalanga —, pedindo para que os governos africanos reconheçam as ligações antigas e profundas entre o continente e as comunidades africanas na diáspora, e apoiando a União Africana, na condenação do “terrorismo contínuo do governo dos Estados Unidos da América contra as pessoas afro-americanas”.

Entre os meus amigos, há quem acredite que esta rede global de movimentos solidários está no centro de uma revolução de mentalidades capaz de, finalmente, derrotar o racismo institucional, senão no mundo, ao menos nos Estados Unidos da América.

Não estou tão otimista. Vi revoluções apagarem-se, ainda antes que se extinguissem nas ruas as altas chamas da revolta. Vi revoluções devorando os próprios filhos, ao mesmo tempo que recuavam em todos os princípios e ideais.

Espero, contudo, que desta vez a humanidade consiga avançar alguns passos no processo coletivo de renovação de mentalidades. Os manifestantes não exigem muito: querem apenas que todas as pessoas sejam tratadas com idêntico respeito — como pessoas. Querem que os agentes da lei a cumpram. Policiais devem ser treinados para proteger vidas, não para as tirar.

O Brasil precisa desta revolução ainda mais do que os Estados Unidos. A trágica epidemia que estamos vivendo pode explicar a apatia ainda prevalecente, em contraste com o ativismo que continua a ocupar ruas e praças, não apenas nos Estados Unidos, mas também em Roma, Paris e Lisboa.

Enquanto escrevo esta coluna, George Floyd estará sendo assassinado por um policial nalguma esquina de uma grande cidade brasileira. A principal diferença entre os Estados Unidos e o Brasil no que diz respeito à descriminação racial é que no país de Obama a população afrodescendente constitui uma pequena minoria — 12,7 por cento. No Brasil, os afrodescendentes são a clara maioria. É essa maioria que não consegue respirar.

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