domingo, 6 de dezembro de 2020

Sempre eles


Ugo Giorgetti

Jogo entre Flamengo e Racing foi uma boa ocasião para mais uma vez apreciar os argentinos

Deve fazer parte do calendário de qualquer torcedor que espere do futebol algo de inesperado, de insuspeito, de surpreendente, não deixar passar jogos contra times argentinos. Esses nossos vizinhos, tidos como homens sérios de ternos bem cortados, são especialistas em desmentir tudo o que o senso comum lhes atribui. Não são elegantes, são excêntricos muitas vezes, daí sim, de uma excentricidade que beira a elegância.

Nesse Flamengo e Racing a atração começava pelo treinador. Sobrenomes italianos são fáceis de pronunciar e de escrever. Não o do treinador do Racing. Chama-se Sebastián Beccacece, não o padrão italiano comum. Ele também é incomum. Difícil descrever sua aparência física. Poderia mais facilmente ser classificado como um jogador do clube a quem alguém, em desespero de causa, confiou o cargo de treinador subitamente, em pleno vestiário, no meio de uma partida perdida. Deu certo, mas nada mais diferente do que o aspecto usual de treinadores, principalmente os que fazem questão de ostentar autoridade.

Quando enquadrado mais ou menos perto de Rogério Ceni durante a partida, dava a impressão de um menino travesso perto de um adulto compenetrado. Mas ganhou o jogo e sua atitude, ao atirar-se no chão comemorando a vitória, completa sua aparência mais de boleiro do que de treinador. E o curioso é que não foi boleiro. Desistiu da carreira futebolística aos 21 anos e já quis ser treinador. Aprendeu com Bielsa e com nosso caro Sampaoli. Não lhe faltaram mestres em termos de excentricidade e de uma certa loucura.

O jogo contra a Flamengo foi uma boa ocasião para mais uma vez apreciar os argentinos. Não havia torcida em campo, mas eles trouxeram a sua própria. Ouviam-se gritos, protestos e instruções como num jogo comum. Descobriu-se depois que eram dirigentes argentinos, que nessa qualidade não podiam ser barrados do estádio, a incentivar seu time. Alguém já viu diretores de clubes brasileiros se esgoelarem nas arquibancadas proibidas unicamente para não deixar seus jogadores abandonados em terra estrangeira? Alguém aqui pensaria nisso?

De quebra, para meu infinito deleite, mostraram uma coisa há tempos um pouco desaparecida do futebol argentino. Muito tempo atrás eles eram tidos como grandes goleiros. Houve época em que falar de goleiro aqui era o mesmo que se referir a argentinos, pelo porte, pelas defesas, liderança e principalmente pela habilidade em sair do gol.

Muitos deles jogaram aqui, como José Poy, que reinou no São Paulo por muitos anos, o grande Cejas, no Santos, como Andrada no Vasco, que por pouco não impediu o milésimo gol de Pelé ao quase defender o pênalti. Houve ainda Dominguez e Fillol no Flamengo, este me parece o último grande goleiro da tradição argentina, pelo menos no meu conhecimento.

E eis que no Maracanã contra o Flamengo essa longa linhagem mostrou que ainda existe com uma atuação impecável de Arias, goleiro do Racing. Nunca tinha ouvido falar dele, mas dava para ver que, pela postura, pelo aspecto, por gestos, tinha tudo de um grande goleiro. Durante a partida acabou mostrando isso. Eu, que tenho o defeito de olhar detalhes, fui recompensado ao ver não apenas as grandes defesas que levaram os flamenguistas ao desespero, mas uma jogada simples, discreta, que pareceu comum, mas não a mim.

O Flamengo atacava furiosamente e, contra seus costumes, levantava as bolas para a área. Numa delas, cruzaram a bola na direção de um bolo insano de jogadores. Com calma impressionante, quase em câmera lenta, surgiram primeiro duas mãos, depois o resto do corpo do goleiro, que interrompeu a bola como por mágica. Uma simples saída do gol, mas que, para mim, restaurou a antiga tradição dos mestres arqueiros argentinos.

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