quarta-feira, 19 de junho de 2019

Pondé chafurda no endosso aberto ou envergonhado à barbárie


Pondé e a barbárie

Em 22 de outubro de 2018, seis dias antes da eleição de Jair Bolsonaro, Luiz Felipe Pondé dedicou sua coluna nesta Folha ao assunto que considerou mais relevante naquela semana: o “fetiche gourmet” de uma declaração do músico Roger Waters, chamando o então candidato do PSL de fascista.

Já na última segunda-feira (17), pouco depois que o site The Intercept confirmou a degradação institucional do morismo/bolsonarismo, o alvo foi o que o colunista achou “essencial” no episódio —a legitimação do “terrorismo digital”, cujo ataque à Lava Jato interessaria a “políticos corruptos”, “intelectuais e artistas orgânicos que perderam a boquinha”, “professores irrelevantes”.

A figura de Pondé é simbólica de uma crise: a de certa direita brasileira que aderiu às guerras culturais importadas dos Estados Unidos a partir dos anos 1990. Ela chegou ao poder e, aparentemente, não sabe o que fazer disso em termos intelectuais. Seu método, que sempre foi o de afirmar valores por meio de ataques a valores opostos —o que podia ter algum charme de oposição sarcástica, vá lá—, há um bom tempo virou mero diversionismo ou combate a espantalhos.

No texto sobre Roger Waters, por exemplo, Pondé implicou com muitas coisas. Entre elas, o fato de o músico não ter “tempo e ferramentas específicas para construir um mínimo repertório para realizar uma cognição política minimamente consistente”. Mas não respondeu a uma pergunta simples: o termo “fascista” (ou "fascistóide", se nossa cognição optar por um preciosismo consistentemente mínimo) estava tão errado assim ao se referir a um candidato pró-tortura e contra minorias?

De modo semelhante, os meses posteriores à vitória do capitão inspiraram colunas sobre temas como a "ânsia de status" da esquerda ("pessoas bacanas” que aderiram à “moda brega dos vinhos”) e a divisão dos gêneros em banheiros ("o extermínio dos meninos heterossexuais na origem é a nova meta”).

Quanto a um presidente em guerra aberta com a educação, a ciência, o meio ambiente, a saúde, a cultura, os direitos humanos e o senso de ridículo, tudo levado adiante por sua equipe de idiotas convictos e oportunistas, a crítica que o articulista conseguiu fazer —das poucas, e salvo engano a mais severa— foi a de ele ser um “burro” que governa “como se estivesse num churrasco”.

É curioso como filósofos morais da moralidade alheia não percebem o quanto pode haver de projeção psicanalítica nesses juízos. Para Pondé, adversários ideológicos jamais agem por convicção. Tudo neles é jogo para a torcida, carreirismo, covardia.

Alguém que escreve o mesmo texto toda segunda-feira, por sua vez, não pensa também em agradar à plateia que formou? Não tem benefícios (espaço, convites para palestras, o pacote todo) por emprestar sua erudição à inflexibilidade dessas três ou quatro ideias básicas?

Como a direita econômica, que faz isso mirando supostos benefícios da agenda de Paulo Guedes, a classe cultural de Pondé chafurda no endosso aberto ou envergonhado à barbárie. Bolsonaro é mais que o tio burro do churrasco. Os valores que ele representa têm história, são bastante concretos e perigosos. É uma escolha moral dar atenção a eles ou preferir brigar contra alvos inofensivos.

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