sexta-feira, 21 de junho de 2019

Havendo lei, condenação de Lula é nula


Reinaldo Azevedo
Se o devido processo legal não existe, então tudo é permitido
Não reconheço a legitimidade do “DPPL”: o “Direito Penal Para Lula”. Reconheço a ordem democrática, de que faz parte o devido processo legal. A lei evidencia a nulidade do processo que resultou na condenação do ex-presidente. E caberá ao STF dizer se a Lava Jato está subordinada a essa ordem democrática e legal ou se também o tribunal se subordina à Lava Jato. Vamos ver.

O ministro Sérgio Moro, da Justiça, inventou uma nova categoria discursiva para tentar justificar as agressões à ordem legal que cometeu quando juiz da Lava Jato: trata-se da “fala quântica”, aquela que é e que não é, que existe e não existe, que é verdadeira e falsa. Tudo ao mesmo tempo. A trapaça retórica só engana os convertidos.

Por óbvio, a física não explica o drible na verdade que o ministro tenta dar porque falas quânticas não existem. Trata-se apenas da busca de uma zona intermediária entre a mentira e a verdade.

E qual é a verdade? Quando juiz, o doutor incidiu no inciso IV do artigo 254 do Código de Processo Penal, a saber: “O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes [...] se tiver aconselhado qualquer das partes”.

No que diz respeito ao ex-presidente Lula ao menos, as conversas entre Moro e Deltan Dallagnol, reveladas pelo site The Intercept Brasil, vão muito além do aconselhamento: trata-se de múltiplas ações concertadas entre o juiz e os procuradores.

Não só isso. Moro violou uma penca de artigos do Código de Ética da Magistratura, em particular o 8º: “O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.

E como é que o quântico ex-juiz pretende explicar o seu gato jurídico? Ora, ele não reconhece a autenticidade da troca de mensagens com Deltan, deixando no ar a sugestão de que pode ter havido adulteração, mas, numa atitude protetiva, assegura que, ainda que verdadeira, nada há de mais nas múltiplas agressões à ordem legal.

A mesma trilha que conduz ao esbulho dos direitos de Lula leva à anomia no direito penal. Se um juiz pode apresentar testemunhas à acusação; condescender com truques para fazê-la falar; anuir com procedimentos heterodoxos para imputar ao réu o que não evidenciam os autos nem a denúncia —caso do PowerPoint—; orientar a desmoralização pública da peça apresentada pela defesa e até interferir na escolha, ainda que por via indireta, do representante do MPF que vai participar de uma audiência, cabe indagar: o que é vedado ao juiz?

As coisas podem piorar. Aos senadores Moro sustentou que sua crítica ao desempenho da procuradora Laura Tessler foi inócua. Falso como nota de R$ 3. Conversa entre Deltan e o também procurador Carlos Fernando, que revelei com exclusividade no programa “O É da Coisa” e em meu blog, trata da substituição dessa profissional na primeira audiência de que Lula participou em Curitiba.

E que se note: Carlos Fernando deixou claro, com todas as letras, defendendo a substituição da procuradora, que “no [caso] do Lula, não podemos deixar acontecer” —no caso, deixar acontecer um desempenho considerado insatisfatório. Ou por outra: a mensagem originalmente enviada pelo então juiz a Deltan resultou no tal concerto entre juiz e procuradores contra o que eles consideravam ser o interesse do réu.

Ora, se o devido processo legal não existe, então tudo é permitido. Já não é suficiente que aquilo a que chamo “Papol” (Partido da Polícia) disponha de uma lei como a 12.850, que permite ao Ministério Público fazer gato e sapato do investigado, transformando delatores em verdadeiras armas contra alvos previamente selecionados?

Já não basta que juízes de primeira e segunda instâncias —e, com frequência, de terceira— tenham transformado o artigo 312 do Código de Processo Penal, que trata dos requisitos para a prisão preventiva, em matéria de livre interpretação, passível de devaneios os mais subjetivos, como se cada magistrado pudesse fazer uma leitura livre de arcanos que não deste mundo?

Estamos diante de uma escolha —e essa arbitragem será feita pelo STF: trata-se de decidir se, em nome do combate à corrupção, pode-se cometer uma penca de crimes. A propósito: se esse é um valor absoluto —e tudo, então, é permitido—, por que não havemos de perdoar as agressões à ordem legal cometidas em nome da justiça social?

Quem se atreve a escrever um ensaio explicando os caminhos virtuosos da barbárie redentora?

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