Eu soube da minha morte na terça-feira, por volta das 11 horas, quando, depois de meses afastado daquela rotina por causa da quarentena, fui até o banco da esquina receber meus proventos de pacato cidadão aposentado. Foi aí que o Instituto Nacional de Seguro Social, com a frieza federativa de sempre, sem o cuidado de enviar a coroa de flores preparatória, me deu a notícia tão temida. “A indesejada das gentes”, conforme disse Manuel Bandeira, me chegava no ar gélido de uma agência bancária.
Eu estava morto. Burocratas não usam essas expressões em seus comunicados eletrônicos, e eles preferiram dar o recado de que eu passara desta para pior com a exibição fúnebre dos meus fundos bancários, o cardiograma fundamental da existência prática. Estava lá na tela azul-triste do caixa. Zero de reais. No extrato da conta ainda havia uma tentativa de explicação suave, “Não movimenta”, um eufemismo que traduzi para o plano humano como uma espécie de “sem batimento cardíaco”. Game over, babau.
Eu imagino que todo o mundo esteja se considerando um pouco menos vivo do que estava na semana passada e, num momento desses, cercado de desgraça por todos os lados, ninguém se sentirá demasiadamente surpreso com a notícia de que saiu do grupo. Não tinha adiantado nada o meu esforço de atravessar as ruas com face shield e máscara dupla, muito menos besuntar o polegar de álcool gel para a senha digital.
“É, de fato, o senhor está morto”, me confirmou o gerente, analisando não os meus batimentos cardíacos, mas o extrato da conta. Educado, cético e cônscio dos tempos cheios de inesperados, eu preferi não desmentir o diagnóstico tão peremptório.
Eu tinha passado os meses da quarentena trancado em casa, na esperança de me tornar invisível ao vírus. Estava informado que, dado o estado geral do planeta, o INSS havia suspendido a prova de vida a que submete anualmente seus beneficiados. Poupava-os sanitariamente da aventura de ir até a agência e mostrar que tinham conseguido ficar fora desta moda, tão em voga e lamentável, de morrer de repente. Segundo a Previdência Social, vida bancária não é para um aposentado qualquer – de tempos em tempos, ele precisa dar provas que ainda está com o crédito positivado pelo Gerente Divino.
Eu não sabia que o INSS tinha declarado a pandemia extinta já no final de setembro e ordenado a volta de sua legião às agências. A notícia deve ter saído num dos jornais que aqui em casa, no pânico da purificação pelo álcool gel, ficaram encharcados e ilegíveis. Fiquei, assim, na ignorância de que o banco queria de novo o olho no olho da prova de vida – e, por isso, na ausência dela, o que estava depositado na conta desde o início da pandemia foi recolhido de volta aos cofres do INSS. Dinheiro fala e, na semântica da instituição, dinheiro parado quer dizer aposentado sepultado. Era o meu caso.
Eu estava previdenciariamente morto e, antes que algum fantasma malandro tivesse a ideia de se aproveitar da minha desdita, o instituto me zerou o extrato, negativou o crédito. O gerente avisou que cabe recurso. Cabe também confirmar a frase de um velhinho que dias atrás, também às voltas com a burocracia infernal e um Brasil sem pé nem cabeça, me disse enfastiado – uma vida até os 70 é suficiente, depois disso fica muito arriscado.
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