Luís Francisco Carvalho Filho
A polícia é "capaz de tudo". A afirmação é chocante —afinal, em tese, forças policiais existem para proteger— e parece exagerada. Mas não é.
A frase é fio condutor da série que estreou mundialmente ontem sobre cinco adolescentes condenados em Nova York por um crime que não cometeram: "Olhos que condenam" ("When They See Us"), direção de Ava DuVernay para a Netflix.
Neste célebre caso, o erro judiciário se explica pelo racismo e pela histeria coletiva. Quatro rapazes negros e um latino são suspeitos porque estão no Central Park fazendo bagunça em uma noite de abril de 1989. São obrigados a confessar.
A série tem o componente político da atualidade. Os personagens estão vivos e os Estados Unidos, na antessala da eleição presidencial.
Em meio à indignação provocada pelo ataque brutal contra a mulher branca e formada em Yale, surge o empresário arrivista Donald Trump investindo US$ 85 mil em matéria paga clamando pelo retorno da pena de morte e da "nossa polícia".
Mesmo depois da declaração da inocência dos réus, Trump reapareceria em 2016, não para lamentar o erro clamoroso, mas para legitimar a condenação, mesmo que o DNA do verdadeiro estuprador tenha sido localizado na cena do crime.
A polícia só não é "capaz de tudo" porque há instrumentos de proteção institucional. Sim, sempre haverá policiais corruptos e assassinos, mas o poder desmedido tornaria o aparelho repressivo implacavelmente arbitrário e absolutamente impune.
Suspeita tem limites, regras. Como agentes de segurança correm risco de vida no enfrentamento do crime violento, eles defendem a erosão do sistema de pesos e contrapesos.
Nos EUA, policiais alcançam imunidade ainda que o componente racial do abuso seja escandaloso. No Brasil, Bolsonaro empresta o peso da Presidência da República para proteção de policiais que matam por matar.
A Justiça não libertaria militares (exercendo poder de polícia) acusados de desferir 80 tiros contra o veículo de um magistrado, mas os liberta se os 80 tiros são desferidos contra o de uma pessoa qualquer.
A recente reportagem do programa "Fantástico" sobre reconhecimento de suspeitos no Brasil é sólida e didática.
O repórter lembra que cérebro não é câmara fotográfica e mostra como é passível de falha o olhar da testemunha. Indução voluntária ou involuntária da autoridade responsável pela investigação, diferentes graus de atenção, memória e rigor semântico, o desejo insondável de identificar alguém para mitigar os efeitos da agressão, tudo é capaz de embaralhar certezas e incertezas no processo criminal.
Em vez de aprimorar protocolos, para reduzir a incidência do erro (a pretexto de lutar contra a impunidade e de eliminar formalidades inúteis), os tribunais brasileiros têm visão complacente da atividade policial. Toleram desvios e violência desde que praticados contra pobres ou pretos.
O Código de Processo Penal estabelece que, antes do reconhecimento, a testemunha deverá descrever a pessoa a ser reconhecida. O segundo passo é colocar a pessoa a ser reconhecida ao lado de outras que com ela tiverem semelhança.
O roteiro é simples, mas não é obedecido por policiais e juízes. Segundo o entendimento jurisprudencial, o texto da lei é "recomendação", não "exigência". Como dá trabalho cumprir a lei, ainda que policiais e juízes sejam remunerados para isso, o reconhecimento é feito "nas coxas" e os equívocos se multiplicam.
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