A divulgação das conversas da força-tarefa da Lava Jato com
o então juiz Sérgio Moro adquiriu tal magnitude que se tornou impossível, para
o establishment político e midiático, ignorá-las. A direita
extremada manda suas hordas, nas redes virtuais, redobrar a virulência nos
ataques ao “petismo” (categoria ampla que engloba todo o campo
democrático), lançar acusações contra Glenn Greenwald e preparar falsificações
para, a partir delas, tentar desmoralizar os diálogos autênticos. Ações de quem
está na defensiva e não vê como sair dessa posição.
No início relutantes, os meios de comunicação corporativos
acabaram tendo que noticiar o vazamento, mesmo que de forma tímida e enviesada. A tentativa de
minimizar o episódio, emblematizada pela reação inicial de Fernando Henrique
Cardoso (”tempestade em copo d’água”), logo mostrou fôlego curto. A natureza
dos crimes cometidos por Moro, Dallagnol e seus asseclas faz com que eles,
mesmo que não pareçam tão espetaculosos para os desavisados, sejam
imediatamente identificados como gravíssimos nos meios jurídicos. A
corregedoria do Ministério Público iniciou investigação sobre Dallagnol e mesmo
a OAB, cuja postura ao longo de todo o processo do golpe sempre foi de
cumplicidade ativa, pediu o afastamento dos implicados.
Os jornalões, que ontem tentavam esconder o episódio, hoje começaram a se
render. O Estadão ainda arranja uma manchete fora do tema,
mas O Globo diz “Conversas de Moro com procuradores e
ação de hacker serão investigadas”. Tenta o difícil caminho de colocar os
malfeitos da Lava Jato e o trabalho jornalístico do Intercept Brasil no
mesmo saco. A Folha escancara a crise: “Governo Bolsonaro
se blinda e adota cautela com Moro”.
Abre-se, então, a possibilidade de sacrificar Moro. Até
agora, o ex-juiz não conseguiu inventar uma linha de defesa razoável. Primeiro,
lançou uma nota cujo efeito principal foi confirmar a autenticidade dos
diálogos. Agora, esconde-se atrás de um insustentável “não vi nada demais”
- mas se alguém que era juiz não via “nada demais” em orientar um dos
lados de um caso que ia julgar, das duas uma: ou é mentecapto ou é cínico. Em
Manaus, ontem, deu chilique e interrompeu entrevista em que foi indagado sobre
o assunto.
O ex-justiceiro de Curitiba mostra, uma vez mais,
despreparo. E a posição de bode expiatório casa como uma luva para ele, por
dois motivos. Primeiro, embora sempre tenha sido apenas um peão, tornou-se
símbolo da Lava Jato e “herói” nacional. Se cair, dará a impressão de que
a justiça triunfa. Depois, porque todos já perceberam que é frouxo. Outro, em seu
lugar, já teria batido a mão na mesa e dito “se eu cair, eu explodo essa
zorra toda”. Moro não é desses. O primeiro e crucial dia da crise passou sem
uma manifestação vibrante de solidariedade do governo no qual ele teria entrado
como “avalista”.
É aí que os “isentos” se apresentam, para sugerir um
caminho. Trata-se de afastar Moro, mas manter de pé suas decisões. Um folclórico colunista conservador da Folha de S.
Paulo escreve hoje que, embora esteja demonstrado que “o ex-juiz e os
procuradores estabeleceram uma relação de proximidade absolutamente inadequada,
que dá substrato à suspeita, desde sempre levantada pela defesa do ex-presidente,
de que Moro não atuava com imparcialidade”, os julgamentos não devem ser
anulados, já que “não há sugestão de que Moro e os procuradores tenham
interferido na realidade fática das provas”. Se o raciocínio dele tivesse
lógica, poderíamos abolir a magistratura: a “realidade fática das provas”,
por si só, condenaria ou absolveria. Mas, na verdade, a “realidade fática das
provas” exige interpretação; por isso é que se cobra imparcialidade do juiz.
Quando esse juiz colabora com um dos lados e mesmo, detalhe que o jornalista
convenientemente ignora, reconhece privadamente que as provas que vai usar para
condenar são muito frágeis, não há como salvar o processo.
Do Twitter, vem a contribuição daquele que é a encarnação
brasileira da personagem de Macedonio Fernández, “el hombre que será
Presidente y no lo fue“: “Antes
que as paixões contra ou a favor do ex-presidente Lula - o mais notável
atingido pela Lava Jato - venham aqui defender cegamente seus interesses,
lembrem-se de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Palocci… todos esses poderão
se beneficiar com o que está acontecendo“. Portanto, para Ciro, a
manutenção de “homens maus” presos compensa a violação de todas as regras
do correto processo judiciário. Falando para um público diferente, ele admite
que a prisão de Lula pode ser injusta, embora seja o preço a pagar pela punição
dos outros, mas na essência sua postura não difere do amoralismo da
extrema-direita punitivista.
Os diálogos publicados até agora mostram com clareza uma
conspiração entre Judiciário e Ministério Público para condenar Lula. Caso
mostrem trama igual contra outras pessoas, as condenações precisam também ser
revogadas - mesmo que se trate de Eduardo Cunha. Ao contrário do que Ciro
insinua, a campanha “Lula livre” não se baseia numa suposta imunidade do
ex-presidente, mas na defesa do direito de defesa e das regras do justo
processo penal.
Também a ex-senadora, ex-ministra e ex-líder política se
manifestou. Uma longa nota, resumida, num tuíte, à ideia de que “não se pode ter dois pesos e duas medidas“. Enigmático,
como de costume, mas a leitura da nota, com ênfase em evitar
que “possíveis erros sirvam de pretexto para desconstruir a luta
anticorrupção”, mostra que a opção é também afastar ou até punir Moro e
Dallagnol, mas manter Lula preso. A “luta anticorrupção” é alçada à
posição de valor máximo; em nome dela, todos os direitos podem ser atropelados.
Fernando Henrique Cardoso, por sua vez, no final do dia de
ontem abandonou o discurso da “tempestade em copo d’água” para, quem
diria, aderir à linha de Marina Silva. Em um tuíte que aparentemente não diz
nada, conclama - ou seria cancloma? - um “grande acordo nacional”: “É
hora de juízo: sem entendimento perderemos o bonde da história“.
O “entendimento”, parece claro, é entre os artífices do golpe, para evitar
que a exposição da podridão da Lava Jato prejudique os frutos alcançados até
aqui.
Quem desvela melhor a estratégia é outro colunista da Folha,
que adverte para o “falso dilema”. Diz ele: “No jogo amarrado da polarização, o público é
levado a escolher entre o atropelo do devido processo legal e a impunidade pura
e simples“. Em vez disso, “é preciso articular uma posição independente na
qual se reconheça a gravidade do que foi revelado pela Operação Lava Jato, a
atribuição da responsabilidade política de quem governava durante o período e a
necessidade de que a investigação e o julgamento dos ilícitos aconteçam dentro
dos parâmetros da lei e da Constituição“.
São palavras bonitas, mas carentes de sentido. O que foi
revelado pela conspiração Lava Jato é indissociável de seus métodos.
Se o julgamento estava enviesado, se havia predisposição para condenar mesmo
com evidências frágeis e impermeabilidade aos argumentos da defesa, não há
caminho possível exceto a anulação do processo. Ortellado ridiculariza o fato
de que a esquerda apresenta os diálogos publicados no Intercept Brasil como
provas cabais “da parcialidade da Lava Jato, do caráter político do julgamento
do ex-presidente Lula e de que o impeachment de Dilma Rousseff foi efetivamente
um golpe parlamentar”. Ele pode falar à vontade em “disputa de
narrativas”, mas não muda o fato de que, sim, os diálogos provam tudo isso.
O caminho sugerido agora pelos pretensos isentões é esse:
punir os punitivistas para manter o punitivismo. Isso não serve para o campo
democrático. É preciso restaurar a vigência dos direitos e das garantias. É
preciso anular as condenações tendenciosas e injustas. E é preciso desmitificar
o discurso do “combate à corrupção”, que convenientemente esquece o
caráter estrutural da relação entre capital e Estado e serve apenas para
destruir a democracia.
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