Personagens são medíocres e boçais e tudo está escancarado
Dias depois de as queimadas na Amazônia terem transformado o dia em noite, desnorteada entre os manifestantes que se aglomeravam na avenida Paulista para protestar contra a política de destruição nacional perpetrada pelo governo Bolsonaro, uma mulher com os olhos injetados e a expressão desvairada avançava à maneira de um arauto do Apocalipse, perguntando a todos quando é que afinal íamos acordar da alucinação, entender que o presidente veio para acabar com tudo, e reagir em legítima defesa, pela nossa sobrevivência.
Estava mais louca do que eu. Para acalmá-la, tentei lhe mostrar que ali todo mundo já tinha entendido.
Na excitação do momento, as queimadas pareciam ter se convertido no que nos últimos anos se convencionou chamar de ponto de inflexão, uma viragem irreversível no caminho para despertarmos da alucinação na qual nos metemos como quem vota com os pés. Três semanas depois, já dá para dizer que não houve ponto de inflexão nenhum. A alucinação prossegue.
A mulher na manifestação me lembrou os personagens desamparados de Salinger, e sobretudo o seu “Nove Histórias”, que acaba de sair pela Todavia, em nova tradução do excelente Caetano Galindo. E a lembrança do conto que abre o livro (o extraordinário “Um Dia Perfeito para Peixes-banana”) me fez pensar num pequeno ensaio de Ricardo Piglia, “Tese sobre o Conto”, citação recorrente em oficinas literárias.
Segundo Piglia, todo conto conta duas histórias, uma aparente e a outra oculta ou secreta. Conforme a escola e o estilo do escritor, a relação entre as duas histórias se modifica, chegando a se inverter, como é o caso de Kafka.
Se hoje o Brasil fosse um conto, seria um conto ruim, com personagens medíocres e boçais, para dizer o mínimo, porque não há história oculta, não há segundo grau, tudo está escancarado diante dos nossos olhos e ainda assim, por razões que têm a ver com a miragem de interesses de classe, privilégios e pautas econômicas, seguimos nos recusando a ver e entender. O governo Bolsonaro é uma ofensa diária à inteligência dos brasileiros. Do que mais precisamos para enxergar que somos suas principais vítimas?
A falta ou a incapacidade de ler e reconhecer o segundo grau (a história oculta) é, aliás, a condição de reprodução da manipulação e de um mundo do qual foram banidas tanto a ironia como a contradição, onde a propaganda é entendida ao pé da letra.
Sem segundo grau, ironia e contradição, estamos condenados às fake news, à demagogia e ao conto do vigário. Não é fortuito que entre os focos prioritários da política de destruição bolsonarista estejam a educação e a ciência, instrumentos necessários para uma leitura crítica do mundo.
Num trecho de 1973 dos “Diários de Emilio Renzi”, agora discorrendo sobre o gênero do romance, Piglia se refere a um comentário de Brecht sobre Kafka. O autor de “A Metamorfose” não teria encontrado sua própria forma sem a passagem de “Os Irmãos Karamázov”, de Dostoiévski, na qual o cadáver em decomposição do monge Zossima, até então considerado um santo, começa a feder. Quando outro monge afinal se vê obrigado a abrir a janela, ninguém entende nada, embora não haja nada para entender. A dificuldade vem de estarem ali à espera de um milagre.
Piglia diz que “não entender o que está acontecendo é a chave dos textos de Kafka, centrados no anseio por uma transcendência que fracassa”.
De fato, há algo kafkiano em quem entrega a vida a religiosos charlatães, mas não é diferente, por exemplo, dos gays que depositaram em Bolsonaro uma esperança incompreensível, que nada tinha a ver com transcendência.
O caráter suicida ou masoquista dessa esperança deve ter ficado mais claro com o falso moralismo diversionista do prefeito do Rio e de seus aliados na Justiça carioca ao tentar censurar o beijo gay de uma história em quadrinhos, distorcendo a aplicação da lei a favor da discriminação, da ignorância e do obscurantismo. A princípio um tiro pela culatra entre os cidadãos de bom senso, ações como essa visam e conseguem, ainda assim, acirrar a violência e a homofobia na sociedade.
Como a louca da manifestação, não paro de me perguntar o que ainda falta para que esses eleitores comecem a sentir o cheiro da putrefação de um projeto de país endossado por eles, mas cujos cadáveres serão eles mesmos. O que falta para despertarmos da alucinação e reagirmos ao óbvio, em legítima defesa, pela nossa sobrevivência? O Brasil se tornou, de fato, um péssimo conto.
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